Agosto de 2020 – Vol. 25 – Nº 8

Walmor J. Piccinini

 

O distanciamento do convívio social em me dado a oportunidade de muitas e ecléticas leituras, bem como lembrar antigas vivências. A leitura de um artigo de 2003 de Cristiana Facchinetti e Carlos Ponte: “De barulhos e silêncios: contribuições para a história da psicanálise no Brasil” (https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/26020) me fez lembrar acontecimentos do início da psicanálise no Rio de Janeiro. Devo confessar que eu tinha uma fantasia muito idealizada da figura do analista. Não me passava pela cabeça vê-los como seres humanos com todos os defeitos inerentes a esta condição. Quando pensava no Rio de Janeiro as primeiras pessoas que me vinham a mente eram o Professor José Leme Lopes e seu escudeiro João Romildo Bueno que seriam psiquiatras em contraposição ao Professor Eustachio Portela Nunes e Walderedo Ismael Oliveira que seriam os paladinos da Psicanálise.

A História da Psicanálise no Rio de Janeiro teve muitos problemas desde seu início e pelo número de grupos psicanalíticos parece que continua a tê-los. Os dois primeiros didatas foram Max Burke e Werner Kemper. Burke veio de Londres onde fez a sua formação, mas de origem era polonês, seu nome verdadeiro era Max Bibowsky. Um terceiro grupo foi formado pelos “argentinos”, Alcyon Bahia, Walderedo Ismael de Oliveira, Danilo Perestrello e Maria Alzira Perestrelo. Estes quatro receberam uma bolsa da Fundação Francisco Muñoz de Buenos Aires e foram para a Argentina buscar sua formação analítica. A rivalidade entre os dois primeiros grupos era bastante acirrada e desleal. Max Burke era considerado “louco” e Werner Kemper era tachado como “nazista”. Este problema de origem seguiu até o episódio Amílcar Lobo que examinaremos em outra oportunidade.

Neste artigo vou examinar as origens da formação analítica por não médicos, por psicólogos e assistentes sociais e até mesmo leigos no Rio de Janeiro. Sobre William Kemper sugiro a leitura de um artigo de Hans Füchter com o título “O caso Werner Kemper: Psicanalista, seguidor do nazismo, nazista, homem da Gestapo, militante marxista?!” que pode ser encontrado em: http://egp.dreamhosters.com/encontros/mundial_rj/download/1_Fuchtner_22220803_port.pdf

Vou me deter num acontecimento policial. Por denúncia de charlatanismo feito por candidatos em análise pelos inimigos de Werner Kemper ele foi preso. Não havia regulamentação da profissão de psicanalista e Kemper não tinha revalidado seu título de médico no Brasil. E além deste fato ele tinha incorrido na ira dos seus adversários por ter permitido que sua mulher Anna Kattrin Kemper, que era Grafologista, se tornasse analista. Imaginem a situação, o analista didata da Sociedade de Psicanálise do Rio de Janeiro, preso como charlatão. Seus analisandos se mobilizaram e rapidamente conseguiram que o Ministério da Saúde, dirigido pelo Professor Maurício de Medeiros, determinasse que os psicanalistas, independente do fato de serem ou não médicos pudessem exercer a especialidade.

Em novembro de 1955, o grupo dos analisandos de Burke – o argentino e os psicanalistas que voltaram da Inglaterra – articularam um front contra o grupo de Kemper, unindo-se ainda a alguns membros desse mesmo grupo,

insatisfeitos com a prática de Katrin Kemper como psicanalista.

“Os psicanalistas do Instituto Brasileiro de Psicanálise, de acordo com depoimento de Mário Pacheco de Almeida Prado, denunciaram Kemper pelo trabalho ilegal como médico e ele foi preso por algumas horas (Prado, apud Vianna, 1994, p. 163; vide também Viana, 1994, p. 158). Sua prisão e a condição de ilegalidade que pesava sobre as sociedades psicanalíticas, que permitiam a qualificação de não médicos, foram os elementos que motivaram a movimentação política daqueles que se viam ameaçados. A reação do grupo manifestou-se no sentido de pressionar os poderes públicos à resolução dos entraves decorrentes da legislação, até que nova lei regulamentasse a atividade de psicanalista.

A reação, articulada por psicanalistas ligados a Kemper, obteve sucesso e se materializou na publicação, em 6 de junho de 1957, do Aviso Ministerial número 257 do Ministério da Saúde, que facultava aos “leigos” o exercício da psicanálise sob determinadas condições (Ponte,1999, p. 122).

A movimentação do grupo de Kemper em torno das autoridades estatais pode ser percebida pelo teor da carta enviada a Adelheid Koch, presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, pelo Ministro da Saúde do período, Prof. Maurício de Medeiros.

Na carta, datada de julho de 1957, Medeiros, reconhecido no meio psicanalítico como um entusiasta da psicanálise, responde de modo afirmativo à consulta realizada pela Drª Koch sobre a possibilidade do exercício legal da atividade de psicanalista por profissionais leigos em medicina.

Vejamos: Senhora Presidente,

Atendendo a sua solicitação para que fosse tornada extensiva aos seus membros leigos a medida tomada para os colegas do Distrito Federal, comunico a V.Sa. que nesta data estou transmitindo ao Serviço de Fiscalização da Medicina cópias das

normas abaixo transcritas estabelecidas por este Ministério sobre o exercício da psicanálise pelos psicanalistas leigos. (…) Julgo ter atendido assim a consulta de V.Sa., não apenas quanto aos psicanalistas leigos que trabalham para este centro

como para quantos se encontrem nas mesmas condições e se enquadrem nas prescrições ora fixadas. Sirvo-me do ensejo para apresentar-lhe minhas cordiais saudações. Maurício de Medeiros (Carta transcrita in: Ponte, 1999, p. 121 – grifo nosso).

Assim, o aviso ministerial de 1957 contornou a questão, instituindo normas a serem seguidas pelo Serviço de Fiscalização da Medicina, e que parcialmente permitia a análise leiga (Aviso Ministerial, nº 257, de 06/06/57, In:

Ponte, 1999, p. 122).” (Facchinetti e Ponte).

No Rio Grande do Sul, nesta época, a psicanálise dava os primeiros passos e existia a exigência de que o candidato fosse médico. Mário Martins voltou de Buenos Aires, Argentina como didata apesar de sua formação ter durado dois anos. Trouxe sua esposa como analista de crianças, mesmo ela sendo psicóloga. Em 1957 eu começava o segundo grau e em 1960 entrei na Faculdade de Medicina. Não tinha ideia do que fosse psiquiatria, muito menos da psicanálise.

Similar Posts