Referência : Martine Fournier, Les Grands dossiers des sciences humaines n° 47, Juin-Juillet-Août 2017

Foi na segunda metade do século 19 que nasceram os primeiros trabalhos sobre a psicologia da criança.

Em 1877, Charles Darwin (1809-1882) publica Esquisse biographique d’un petit enfant, a partir da observação de seu filho. Nos Estados Unidos, Grandville Stanlay Hall (1844-1924) funda, em 1893, a National Association for the Study of Children.

Em 1904, Alfred Binet(1857-1911) elabora com Théodore Simon « l’échelle métrique d’intelligence » que vai dar lugar ao famoso Q.I.(quociente intelectual), cujo objeto é a descrição sistemática das capacidades mentais das  crianças em função de suas idades.

No início do século XX, duas correntes se afrontam de maneira radical : o comportamentalismo, ou ciência  do comportamento, pretende que a inteligência é o fruto de aprendizagens acumulados, obtidos pelo condicionamento. Os defensores do inato consideram que ela é o produto de capacidades naturais sobre as quais não se pode agir, mas o século vinte também viu nascer concepções construtivistas da inteligência.

 

Para Jean Piaget (1896-1980), considerado como o grande psicólogo da criança no Século vinte, a inteligência se desenvolve por meio de interações entre as estruturas mentais e o meio ambiente.

Dois outros celebres pesquisadores, Henri Wallon(1879-1962) e Lev S. Vygotski criticam entretanto Piaget por não levar suficientemente em conta a influência do meio social no desenvolvimento da criança.

A teoria de Piaget, questionada desde o início, foi consideravelmente invalidada pelas pesquisas do fim do vigésimo século. Ela se tornou, entretanto, um modelo de base para as numerosas pesquisas em psicologia cognitiva que se multiplicaram nos últimos trinta anos.

 

Pesquisadores mostraram notadamente as capacidades precoces da criança de mamãe; outros preferem estudar estratégias do aprendizado, muitos ainda defendem a existência de ‘’inteligências múltiplas, sem falar dos que se interessam pelo papel das emoções e as relações afetivas…

Os trabalhos sobre os distúrbios da criança (autismo, dislexia, desatenção …) são, também, o objeto de pesquisas fecundas, graças notadamente aos avanços das neurociências.

 

PROFESSOR  JOSÉ LUCENA DA MOTA SILVEIRA

No livro intitulado  ”Apport de la psychanalyse à la sémiologie psychiatrique”, dirigido pelos psiquiatras franceses Georges Daumézon e Guy Benoit (Editora Masson, Paris, 1970), tive a ocasião de escrever um artigo abordando a  maneira como a psiquiatria brasileira, ou seja como alguns eminentes psiquiatras brasileiros compreenderam, acataram, integraram ou rejeitaram  as inovadoras contribuições da psicanálise.  

Comecei apresentando um curto resumo sobre a história da psicanálise no Brasil, onde ela chegou desde 1919, quando Franco da Rocha, Professor de psiquiatria na Faculdade de Medicina de São Paulo, pronunciou uma conferência na qual ele mostrou a importância dos trabalhos de Freud para a compreensão do delírio, dos sonhos e das obras literárias.

Citei também o Doutor Durval Marcondes, médico em São Paulo, o qual, sensibilizado pela conferência de Franco da Rocha, fundou em 1927, a primeira Sociedade Brasileira de Psicanálise. E não esqueci o célebre psiquiatra Juliano Moreira, que se tornou, em 1929, presidente da Sociedade de Psicanálise do Rio de Janeiro.

 

No referido artigo, evoquei também outros psiquiatras de renome, como Antônio Austregésilo, Maurício de Medeiros, Darcy Uchôa, Pacheco e Silva, Prado Galvão, William Asmar, Mário Yahn e Nelson Pires, citados no trabalho mencionado por suas contribuições à nossa disciplina e suas posições com relação à psicanálise. 

 Enfim, destaquei importantes contribuições  de figuras representativas da  Escola de Psiquiatria de Recife, especialmente José Otávio de Freitas  e José Lucena da Motta Silveira,  sem esquecer de mencionar Galdino Loreto  e Zaldo Rocha.

Quero relembrar aqui haver escrito o referido artigo em 1969, dois anos após minha chegada em Paris, e que, por razões óbvias, não pude evocar os trabalhos de outras colegas pernambucanos como Paulo Sette, Othon Bastos, José Lins de Almeida, Tácito Medeiros,  Affonso Barros de Almeida, Cheops Cavalcanti e Arnaldo Di Lacio.

 

Dito isto, gostaria de evocar aqui, em poucas linhas, a relação do Professor José Lucena com a psicanálise.

Em primeiro lugar porque ele cercou-se de uma equipe de psiquiatras abertos às ideias freudianas e que praticavam psicoterapias dinâmicas, como Galdino Loreto, Zaldo Rocha ou Paulo Sette.

 

Em segundo lugar, porque o Professor José Lucena integrou conceitos psicanalíticos de maneira muito pertinente, utilizando-os em seus trabalhos, inclusive em sua tese para professor catedrático. Refiro-me ao artigo:‘’Modificações psicológicas observadas no decorrer do choque hipoglicêmico de Sakel’, trabalho publicado em Neurobiologia, n° 2, tomo  XV, páginas 343-344, Recife, 1952.

 Sua tese foi escrita em grande parte no Hospital Henri Rousselle, em  Paris, segundo as informações que me foram dadas por nosso colega Affonso Barros de Almeida.

Que disse José  Lucena neste trabalho, marcado pela ideia freudiana de regressão ? Ele empregou a expressão ‘‘regressão ontogênica’’ para explicar a observação que fizera em pacientes despertando do coma insulínico. Assim, durante um certo tempo, estes pacientes apresentavam uma linguagem regressiva, infantil.

Ele  falou também de outro tipo de regressão, observada nos mesmos pacientes, consistindo num  retorno  a um forma de personalidade primitiva.

Outra noção psicanalítica empregada por José Lucena é a de ‘’repressão’’, como podemos ler no trabalho que ele fez com Zaldo Rocha :‘’Aplicação do teste de Szondi em pacientes que apresentam convulsões no decurso da insulinoterapia’’Neurobiologia, n° 4, páginas 343-344, Recife, 1953).

 Neste artigo,  José Lucena e seus colaboradores escreveram que ‘’os epilépticos fazem um esforço considerável para reprimir a exteriorização da agressividade, isto é para não se deixar levar por  uma  explosão emocional’’. É evidente que  ‘’explosão emocional’’  de que fala corresponde à ‘’repressão afetiva’’ ou dos afetos  de Freud, isto ‘’uma operação psíquica consistindo em inibir ou suprimir determinados afetos ressentidos como insuportáveis’’.

Homem de grande cultura geral, aberto às correntes mais diversas da psiquiatria, o Professor José Lucena se exprimia muito bem em várias línguas, donde as frequentes  referências em seus artigos a trabalhos escritos em inglês, francês, alemão e espanhol. Francófilo, foi várias vezes a Paris, encontrando Georges Daumézon, redigindo até a sua tese no hospital dirigido por este grande psiquiatra francês.

 José Lucena também encontrou  no referido hospital, Jacques Lacan, o conhecido psicanalista que desejava ir a Recife naquela época, projeto que não pode ser realizado. Ele encontrou Henri Ey no hospital dirigido por Georges Daumézon. Como explicar de outra maneira a importância adquirida pelos trabalhos de Henri Ey, o sucesso de seu famoso ‘’Manuel de Psychiatrie’’ no serviço dirigido pelo Professor José Lucena? Como explicar o interesse de Othon Bastos pelos trabalhos de Henri Ey ? E o estágio que fez no serviço do Mestre francês?

 Henri Ey ia a cada semana dar cursos, apresentar ‘’casos’’ e animar seminários no hospital Henri Rousselle. Ele era amigo de Daumézon, que conhecia muito bem José Lucena. Foi assim que Affonso Barros de Almeida e eu mesmo fomos estagiar no serviço do doutor Georges Daumézon, graças a influência do Professor José Lucena. E foi assim que tantos outros colaboradores do Professor começaram a se interessar pela psicanálise e foram fazer cursos em Paris, entre eles José Lins de Almeida e as psicólogas Ivone Lins e Edilnete Sampaio.

Naquele período em que estagiei no serviço do Professor José Lucena, cujo centenário  está sendo  festejado, a psicanálise começara a adquirir muita importância, inspirando os jovens estagiários mas também os docentes, assistentes e psicólogos que faziam parte da equipe que ele dirigia. E não foi por acaso que a pedopsiquiatria, que deve tanto à psicanálise, tivesse adquirido sob a égide de Zaldo Rocha, o estatuto que hoje é o seu, suscitando inúmeras vocações. 

Por todas essas razões, associo-me aos colegas que, em Recife, prestaram uma justa e merecida homenagem ao homem de cultura, ao psiquiatra e ao professor José Lucena da Motta Silveira, pelo papel primordial que desempenhou na história da psiquiatria pernambucana e brasileira.

 

AS DOENÇAS MENTAIS SÃO UNIVERSAIS?

Eliezer de Hollanda Cordeiro

Ouvi a entrevista  Diagnostiquer une maladie psychiatrique, est-ce possible? (Pode-se diagnosticar uma doença psiquiátrica?),  dada pelo psiquiatra Boris Cirulnyk à jornalista Marie Odile-Monchicourt ,da rádio  estatal  France-Info

 

Ele aborda a questão do diagnóstico em psiquatria, precisando  que “diagnosticar  é  uma  tarefa quase impossivel para os psiquiatras  que ignoram a dimensão cultural da doença mental.’’

Ele dá exemplos: certas civilizações consideram ‘‘a epilepsia (perda de consciência e convulsões) de maneira positiva, como prova de que o paciente tem dons extraordinários e que foi escolhido por divindades por suas boas qualidades. Ao contrário, outras civilizações estigmatizam  a epilepsia, julgando que tais pessoas  são endemoniadas.’’

A melancolia – a morte psíquica antes da morte corporal- e, sobretudo a depressão,’’ sempre foram vistas de modo diferente ,em função do contexto cultural.’’ Os psiquiatras  que levam em conta a transculturação, devem fazer como os antropólogos que vão pessoalmente aos países que querem estudar.

 Eles podem constatar  que  as sociedades aceitam a existência  dos loucos, embora nem todas lhes dêm  o mesmo estatuto.’’Quando lemos os registros de pacientes hospitalizados em Dakar, percebemos que, antes da colonização, não havia nenhum diagnóstico de depressão”. As pessoas não se sentiam excessivamente culpadas  como as do mundo ocidental, elas sentiam-se  dominadas por entes sobrenaturais, etc.

Também a depressão era vista em pessoas bastante tranquilas que não  eram levadas para o hospital.

A esquizofrenia, ‘’um termo inventado pelo  Suíço Bleuler no século XIX, existia anteriormente sob o nome de demência precoce. Sobre esta doença, ‘’o psiquiatra  francês Henri Baruch  escreveu que,  da mesma maneira que a sífilis desapareceu com a descoberta dos colibacilos, a esquizofrenia vai ser curada quando os germes responsáveis pela sua causa forem encontrados. ‘’ 

Boris Cirulnyk cita um dos redatores que está preparando o futuro DSM V.

Para o redator,  o novo manual  ‘’não vai servir  prá nada’’ (do ponto de vista classificação das doenças). Ele talvez sirva para aumentar a venda de medicamentos pelos  laboratórios e para que  as companhias de seguros aumentem os  seus preços. No melhor dos casos, o futuro DSM V poderá  aumentar  as  indenizações  das  pessoas sofrendo de uma doença psiquiátrica’’. 

Uma prova dos erros do DSM: até recentemente, a homossexualidade era considerada uma doença mental.  Bastou uma simples pressão  dum lobby sobre  o Congresso dos Estados Unidos para que a homossexualidade fosse  removida  do DSM.  

Em conclusão, a melancolia, a esquizofrenia, as perversões, as depressões também dependem de mitos e preconceitos culturais. É preciso que os psiquiatras  se entendam e façam uma classificação que leve em conta esta dimensão cultural negligenciada.  Donde a idéia de um encontro internacional reunindo  psiquiatras que representem culturas de todos os continentes.  Somente assim seria posssivel  encontrar a boa interpretação do contexto  cultural, permitindo  um diagnóstico  aceito por todos. 

 

A SAÚDE MENTAL EM ATOS

Da clínica ao político

Jean Furtos e Christian Laval (sob a direção)

Erès, 2005 25 euros

Os autores deste livro testemunham de uma  preocupação coletiva relativa à  saúde mental, exprimindo-se de diferentes maneiras, através de práticas concretas: a saúde mental em atos.

A clínica é questionada a partir de duas opções contemporâneas que levam em conta seus efeitos psíquicos: a do indivíduo realizado enquanto valor social e a da espiral do economismo como nova ordem do mundo, produtora de precariedade e de pobreza.

Nesta configuração, a preocupação com a saúde mental abre um espaço de discussão entre clínica e política, com suas múltiplas interrogações sobre as respostas coletivas às novas formas de injustiça social.

 

Ao apresentar o desenvolvimento das ideias e das mentalidades em torno de práticas de saúde mental; ao referir-se  aos campos da clínica, da psicanálise, da economia, da filosofia, da sociologia, da medicina do trabalho, da antropologia…este livro tece uma teia complexa, bem distante das perfeições utópicas. 

 

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