30/11/2011
Li no Jornal do Brasil de ontem a entrevista de José Padilha que estou te enviando agora. A entrevista pode -e deve- ser debatida, discutida, contestada, aprofundada em certas passagens. Mas, de uma maneira geral, o diagnóstico que ele fez sobre o surto de violência atual é correto. E o tratamento que propôs, eu o assinaria com as duas mãos, como dizem por aqui. Talvez estendendo- o ao país inteiro, pois o que ocorre no Rio pode acontecer nas outras grandes cidades brasileiras. Abraços, Eliezer.
Cristina : Eliezer, a operação espetacular foi um “ parto da montanha”, igualzinho a Guerra de Canudos e a do Iraque que, no final, prendeu um punhado de homens desnutridos e famintos. Conselheiro havia morrido de diarreia e Sadam Husseim, apavorado, estava escondido em um buraco na terra.
Vi na televisão um bando de homens de calção fugindo a pé do morro do Cruzeiro, ladeira abaixo. O grande e caríssimo aparato montado foi inútil. Um hospital de campanha moderníssimo nunca teve ninguém para atender. O hospital Getúlio Vargas não recebeu maior volume de feridos e logo desativou o alarme vermelho, voltando a atender normalmente a população. O número de presos foi pífio. Ninguém se entregou. Poucos feridos. A droga foi encontrada em boa quantidade. Os traficantes não.
O terror dos iraquianos e a rebeldia dos sertanejos ou a marginalidade dos bandidos favelados do Rio de Janeiro continuam intactos. Escondidos na complexidade da natureza humana.
Maria Cristina,
Sobre a conferência que você fez na Academia brasileira de letras, gostaria de comentar duas passagens:
1)“Freud, como quase todo escritor (…) preocupava-se vivamente com o julgamento do porvir’’.
Então lhe pergunto: porque é que alguém escreve? Escritores dizem que sempre gostaram de escrever, de expressar-se por meio de escrita para serem amados e, sobretudo, reconhecidos. O psicanalista e escritor, J.B. Pontalis, destaca os dois sentidos da palavra ‘’reconhecido”: ‘’como pessoa e por uma pessoa, por um único interlocutor ou por muitos’’. Mas ser reconhecido não é somente o objetivo de quem escreve. Portanto, notou que quando era menino não se sentia reconhecido por sua mãe, mas somente pelo pai.
Pensei em falar na ânsia que têm os escritores de serem reconhecidos, na « imortalidade » prometida pelas academias. O escritor é tido como imortal e assim é chamado pelos seus pares e críticos (lembre-se que você falava para uma academia de imortais). Shakespeare resolveu contar a ” dark lady” para torná-la imortal, e conseguiu.
Esta luta pelo julgamento da posteridade é a preocupação maior dos escritores — desde Homero onde o poeta ganha o Olimpo, lugar onde habitam as divindades greco-latinas e transforma-se em estrela ou semideus. A mesma coisa com o cientista, por exemplo. Neste, frequentemente, atingir a solução do problema que o move é, em si mesmo, sua recompensa. O atleta visa superar os recordes. Pensei no escritor, na multidão de literatos, na busca do julgamento do porvir. Freud se sabia excelente escritor. Foi nesta categoria que o identifiquei. Será que todo este povo foi desaprovado pela mãe?
Escrever pode ajudar a pessoa ‘’a se descobrir, se definir, se estruturar interiormente, adquirir uma autonomia de pensamento, liberar suas inibições, tornar seu pensamento e seus sentimentos mais claros, descobrir a beleza, dar forma à sua imaginação criadora.’’
Isto aconteceu comigo. A palavra me fez desabrochar.
Donde tirei esta frase? De um atelier de escritura para crianças de 7 a 14 anos. O nome do atelier? La Plume enchantée! (“A Pena de escrever encantada”). A caneta maravilhosa… As crianças despertam suas capacidades criativas neste atelier de escritura espontânea. Escrever se aprende e quanto mais cedo melhor. Pontalis abriu as portas da Nouvelle Revue de Psychanalyse a jovens analistas porque notou “que eles tinham qualquer coisa para dizer, mas se sentiam incapazes de escrever”. Teria a ver com o complexo de castração?
Penso que o domínio da linguagem é uma expressão mais adequada e próxima do fenômeno observado por mim na libertação de minha mente pela escrita. A linguagem provocou grandes repercussões no cérebro humano. Marcou o aparecimento do homo sapiens na escala evolutiva. Atua vigorosamente na neuroplasticidade da evolução da pessoa.
O antônimo da criação literária não seria a esterilidade (impotência) literária? Mas às vezes simplesmente por preguiça: « Ici venu, l´avenir est paresse/ l´amertume est douce et l´esprit clair (Paul Valéry. Cimitiére Marin, reproduzido de memória) .Para produzir literatura é preciso obstinação. Uma personalidade mais astênica pode escolher a doce preguiça.
2) Donde vem sua vocação de psiquiatra e escritora? Notei suas explicações: menina curiosa sobre o psiquismo humano, ávida de leitura, você descobriu muito cedo que a literatura é um formidável celeiro de informações sobre a natureza humana. Destaco ainda a exaltada admiração que a leitura de Freud lhe despertou na adolescência, talvez até no seu talento literário.
Quando era menino também li muito. Recordo-me haver lido uma boa parte do ‘’Tesouro da Juventude’’, enciclopédia de 18 volumes. Acho que lia ainda mais quando estava doente. Minha vocação médica surgiu deste passado, do medo de morrer, das angústias de meus pais quando um filho adoecia-minha irmã mais velha morreu aos 3 anos de uma disenteria…E porque a França? A Ditadura foi uma das razões que me levaram a deixar o Brasil. Mas meu pai falava muito de Pasteur, criticava o anticlericalismo e agnosticismo de Voltaire…E, no Tesouro da Juventude, havia um capítulo sobre rudimentos da língua francesa, fábulas de La Fontaine e de Esopo que eu adorava.
Continuei lendo muito, mas não escrevi livros. Faltou-me sem dúvida o talento. Teria eu escrito algum se tivesse voltado para o Brasil? Talvez eu tenha ficado entre as duas línguas, navegando de uma para outra, amando a brasileira, admirando a francesa (e vice-versa), sem privilegiar nenhuma. Você teve a sorte de ficar no Brasil e, assim, fiel à língua materna, às suas origens.
Ainda é tempo de voltar ‘’a última flor do Lascio inculta e bela, há um tempo esplendor e formosura’’, que é a língua portuguesa.