Maio de 2021 – Vol. 26 – Nº 05

Sérgio Telles

Christian Dunker – conhecido psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da USP e presença na mídia – organiza de forma criativa essa abrangente história da depressão ao dispô-la como uma biografia com episódios intitulados de forma sugestiva, que atiçam a curiosidade do leitor.

Inicia a biografia com os nobres “antecedentes familiares” da depressão: a melancolia e a tristeza (acídia), descritos por Aristóteles e por monges medievais, bem como por escritores como Richard Burton (“A anatomia da melancolia”, de 1621).

O “nascimento” da depressão se dá em 1785, quando William Cullen retira a melancolia de suas origens ilustres e a inscreve no domínio da medicina, transformando-a numa das “doenças dos nervos”. O aparecimento da “depressão” coincide com a instalação do romantismo nas artes, o que dá oportunidade a Dunker de estabelecer aproximações entre o transtorno e vários artistas, como Turner, Edvard Munch, Edward Hopper, Lewis Carroll, Samuel Beckett e Van Gogh.

Sua “infância infeliz” se caracteriza pelo período em que não tinha uma existência própria e era apenas um coadjuvante dos grandes quadros de sofrimento mental. Dentro do referencial freudiano de “Inibição sintoma e angústia”, ela continuou sendo a “irmã do meio”, entre os “sintomas verdadeiros e a caçula malcriada chamada Angústia” (p.38). Apesar de ter recebido grande prestígio na obra de Melanie Klein, apenas a partir dos anos 1950 passou a receber atenção e cuidados específicos.

É quando ocorre o “rapto da depressão pela nova psiquiatria”. Os aportes crescentes e complexos da psicanálise ao acervo da depressão foram deslocados por outras narrativas criadas pelas mudanças nas relações sociais concernentes ao trabalho e à organização econômica (guerras, crises financeiras etc.). Concomitantemente, surgiram os novos antidepressivos, dando relevo máximo à depressão no interior da clínica psiquiátrica, quando ela passa a ser considerada a expressão mais frequente de transtorno psíquico individual e social. Entretanto, as promessas das neurociências e as explicações sobre os neurotransmissores progressivamente perderam força, gerando grande frustração (p.72-74).

Assiste-se assim à “ascensão e queda da rainha depressiva”. O conflito interno – central para a psicanálise – perde a importância e é transferida para os conflitos com a realidade externa. Supostamente a depressão viria de fora, de problemas neuroendócrinos cerebrais ou de pressões econômicas ou socioculturais, isentando o sujeito de qualquer participação pessoal em sua condição depressiva. As terapias cognitivas comportamentais ensinam técnicas para controlar o pensamento. Se, no século XIX, a moralidade pública e econômica exigia contenção, restrição e poupança, o neoliberalismo ordena consumir, gozar e gastar, determinação que o deprimido não acata, deixando-o isolado socialmente. Aos poucos, a depressão perde sua posição de “rainha” e fica relativamente normalizada, representando a forma mais frequente e socialmente tolerada do sofrimento psíquico, da mesma forma como a neurose antes ocupava esse mesmo lugar. É interessante notar que a potência dos antidepressivos parece decrescer à medida em que as patentes caducam e os preços caem, o que evidenciaria a mão da indústria farmacêutica.

Apoiando-se na diferença estabelecida por Walter Benjamin entre vivência (Erlebnis) e experiência (Erfahrung), Dunker adota um estilo mais ensaístico em “Depressão em tempos de felicidade compulsória”, discorrendo de forma crítica e divertida sobre algumas das formas muito familiares de depressões compartilhadas no dia a dia, a começar por aquela desencadeada pela quarentena imposta pela covid. Aborda então a “depressão do fim ano” (parente da “mania da sexta-feira”, da “angústia do domingo” e da “melancolia da segunda”) e a “depressão política”.

O leitor se beneficiará com a vasta gama de informações sobre aspectos históricos, médicos, psiquiátricos, psicanalíticos e socioculturais da depressão. Dunker também mostra as dificuldades no estabelecimento do diagnóstico das doenças mentais, que mal se adequam ao conceito de doença física em medicina, dado que lhes faltam marcadores biológicos e a aferição dos sintomas depende dos relatos dos pacientes, da observação subjetiva de suas funções psíquicas ou de seus comportamentos objetivos. As tentativas de deixar mais objetivas as descrições diagnósticas em psiquiatria tiveram relativo sucesso, o que não impediu que a última versão (a quinta) do DSM – Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, feito pela Associação Americana de Psiquiatria e usado globalmente – tenha recebido unânimes críticas e censuras pela criação excessiva de novos transtornos, dando um caráter patológico a circunstâncias normais próprias da vida.

 

(*) Publicada no jornal Valor Econômico no dia 26/03/2021

 

 

Similar Posts