Dezembro de 2020 – Vol. 25 – Nº 12

Luis Arenales – Psiquiatra – CREMESP 56849
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Nelma Botti  – Psicóloga – CRP 06/26.403-5
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 Resumo: O estudo de caso pesquisa um tema pouco discutido na clínica psiquiátrica, a fofoca. O objetivo era investigar a sua relação com aspectos da psicopatologia e estabelecer se algum fenômeno clinico pudesse engendrar a fofoca. Para discorrer sobre esta relação foi revisto o fenômeno da fofoca, o diagnóstico clinico, personalidade, diagnóstico dinâmico, e finalmente analisado a relação de causalidade entre o diagnóstico e a fofoca. Como conclusão, a fofoca está relacionado a propria normalidade humana, mas também preenche necessidades e lacunas que a personalidade dependente e depressiva necessitam para alimentar sua auto estima e serem aceitas por seu grupo social.

 

 

 

Introdução. A relação entre a fofoca e sua relação com a prática clínica psiquiátrica é minimamente discutida. No caso clinico apresentado analisamos o fenômeno fofoca e sua relação com o diagnóstico psiquiátrico, estudo de personalidade e os critérios dinâmicos para o diagnóstico.

Fofoca, como definição, é uma comunicação interpessoal, comentando sobre uma terceira pessoa de forma positiva ou negativa, mas sem a presença desta1,2. Apesar de seu manifesto sentido pejorativo, a fofoca é um fenômeno humano, não é patológico e faz parte da nossa conversação atingindo até 70% de todo nosso tempo de conversa3. O motivo desta comunicação humana está ligado à sua função social e evolutiva. Com a linguagem podemos rastrear amigos, anunciar as vantagens da amizade ou suas desvantagens, buscar conselhos sobre problemas pessoais e policiar os não cooperadores (free rides), que seriam as pessoas nada altruístas, que só desejam benefícios da sociedade, mas não querem pagar os custos4,5. Portanto a fofoca não é algo antissocial, mas sim para o social, pois facilita a cooperação tendo como principal função a avaliação da reputação de seus membros6.

A fofoca também se presta para desabafar as emoções. Mas se o receptor da fofoca perceber que ela (fofoca) está sendo produzida por razões egoístas, este poderá julgar desfavoravelmente a pessoa que a produziu e consequentemente levar a uma perda de sua coesão para seu grupo social7.

Relato de Caso. A insistente narrativa de falar de terceiros (sem a presença dos mesmos), associado ao sofrimento frente a uma percepção de exclusão do grupo social e humor depressivo foi observada no caso clinico descrito a seguir.

Mulher, de 60 anos, casada, com três filhos, adultos, independentes e seguindo a vida longe de casa. Reside somente com o marido, que trabalha e retorna a casa no fim do expediente. Com a anamnese, história de vida, e o exame psíquico, a paciente cumpre os critérios para o diagnóstico de Depressão Recorrente moderada pela CID 108. Foi medicada com antidepressivo e ansiolítico com melhora. Além dos sintomas da depressão, dizia que a vizinhança a humilhava, que os parentes a excluíam dos encontros familiares, e quando presente nestas reuniões percebia ser “maltratada”. Em todas as consultas falava, criticava, comentava sobre esse entorno (parentes/vizinhos). Esse sentimento não se caracterizava como um quadro de delírio de referência ou persecutório. Havia também, um sentimento de querer fugir do mundo, que chegava a um prenuncio de comportamento suicida, mas deslizava mais para um devaneio diurno, de um desabafo de sua tristeza e vazio pessoal. Também relatava isolamento, “pouco saio de casa”. Era uma ladainha interminável de queixas dos outros; até que chegou ao meu conhecimento (literalmente como uma fofoca), um comentário de um familiar sobre a paciente, mencionando a palavra “fofoca”.

Aplicando os critérios da CID 108 e DSM59 – sessão II para Transtorno de Personalidade, a paciente se classifica como Transtorno de Personalidade tipo dependente e ansiosa (tipo misto, f60.8 na CID 10 e 301.89 na DSM5).

Para um estudo mais específico dos traços de personalidade, na CID 1110,11 e na DSM 5 (seção III – modelo alternativo) emprega-se a classificação dimensional da personalidade. Com esses critérios, observamos na paciente: transtorno de personalidade leve, com qualificador de afetos negativos, como depressão, angustia, baixa autoestima, desconfiança, tendência a guardar rancores, e sobrevalorizar além do real os leves sinais como insultos das pessoas. Esta última característica pode indicar sua sensibilidade e preocupação com sua condição frente a parentes e vizinhança, sempre atenta e vigilante. Na DSM 5 no qualificador/domínio “Distanciamento versus Extroversão”, podemos observar mais um detalhe da personalidade da paciente: sentimento de ser maltratada e perseguida pelos outros.

Também foi aplicado o SWAP-20012,13,14, onde mostrou a personalidade tipo Dependente com traços tipo depressivo e hostil externalizante.

Para o estudo dinâmico da personalidade, apesar das limitações de sua tradução para o português, foram aplicados dois critérios: o OPD-215 e o PDM-216. E as observações de outros autores que enfocaram o estudo de personalidade baseado nestes dois sistemas dinâmicos17,18,19.20,21

Na análise da OPD 2, com o sistema de cinco eixos diagnósticos, observamos que na vivencia da doença – eixo I, a paciente mostra percepção de seu sofrimento depressivo, com uma gravidade media. Porém sua explicação para o sofrimento está nos fatores externos, ou seja, o problema está no “outro” (“o inferno são os outros”). Desta forma, a paciente mentaliza menos seus problemas, o que indicaria uma baixa aceitação para o procedimento psicoterápico (a própria paciente externalizava sua negativa em buscar um acompanhamento psicoterápico). No quesito relação, Eixo II, o marcante foi a percepção constratransferêncial de desinteresse e tédio que a paciente provocava no médico. No eixo III – Conflitos, observamos aspectos evidentes de conflito de submissão, onde passa grande tempo de seu cotidiano revendo como dominar ou submeter-se as pessoas ao seu redor. E sentimentos de fracasso no relacionamento para com as outras pessoas. No eixo IV – Estrutura, com os conceitos psicanalíticos de relações com os objetos e self, observamos um nível médio de organização, com boa identidade, mas a percepção do outro é marcada pela interpretação que este a desvaloriza e lhe produz sofrimento. Ficou evidente sua baixa capacidade de empatia e baixas representações positivas do outro. No eixo V, diagnóstico psiquiátrica, já mencionado: depressão recorrente moderado e alteração leve da personalidade.

 

No PDM-2, a metodologia está em quatro grandes eixos: Eixo I – Nível neurótico de organização. No eixo II, uma personalidade dependente, com um padrão passivo agressivo para com os familiares e vizinhos. No eixo III, observamos um prejuízo moderado no funcionamento mental.  No eixo IV – O diagnóstico é o mesmo, ou seja, Transtorno depressivo recorrente. Também existe o eixo V, pautado para questões culturais, mas nada digno de nota.

 

Discussão. Em suma, encontramos uma paciente com diagnostico de Transtorno do Humor – Depressão Recorrente, associado com transtorno de personalidade tipo Dependente / Ansiosa, com traços de hostilidade externalizante e depressiva. Mostra-se com uma dinâmica marcada por uma baixa percepção de seu comportamento, onde o mundo detém a culpa pelo seu sofrimento. Mantem uma ansiedade de abandono, um medo de não ser querida, não ser amada por seus entes queridos, principalmente marido e filhos.

E distinto de outro estudo, não foi constatado no quadro clinico a presença dos traços de personalidade narcísica como um fator de produção da fofoca22.

A partir desta personalidade, podemos inferir que a paciente busca obter no exterior (mundo social) provisões para alimentar a sua autoestima23. Assim, ela insiste em perscrutar e comentar sobre a vida de outras pessoas como alimento para si própria. Desta forma a fofoca poderia ser entendida, nesta personalidade, não como uma forma de manipular as pessoas, algo hostil, mas como uma proteção para si própria de ataques a sua autoestima24. A questão é que esse comportamento, a fofoca, produzia um rebote de desinteresse por parte da sua família, que se esquivavam de convidá-la para eventos sociais e a excluíam sempre que possível. Produzia-se assim um ciclo repetitivo de rejeição e mais reação da paciente buscando uma maior dependência para com as pessoas de seu convívio social.

Podemos entender também a fofoca, na paciente, como um prazer e poder imediato frente a comunicação verbal de um fato. Esta interpretação é compatível com a aplicação da teoria do enquadramento para entender a fofoca, onde existiria um hedonismo na pessoa que produz a fofoca, algo além do próprio conteúdo denotativo da fofoca25.

Outro aspecto da psicopatologia da paciente era “que pouco saía da casa”, o que nos remete a uma comparação para com a personagem de literatura, a Tia Léonie. Essa personagem, de Proust, em um progressivo isolamento social culmina em uma vida de clausura em seu quarto, contemplando e observando o mundo. Restava-lhe apenas as fofocas trazidas pela empregada da casa26. E em comparação a paciente, a personagem Léonie mostrava, com sua curiosidade e comentários sobre a vida dos outros, um reflexo, uma forma de aliviar sua estreita e melancólica forma de vida.

Mas superar essa forma de comunicação, esse ciclo de fofoca, não parecia possível durante as primeiras consultas. Lembrando que na avaliação da personalidade da paciente, utilizei o relato de terceiros para entender sua condição. E desta forma não havia como introduzir e modular esse comportamento disfuncional como pauta na entrevista clínica, pois seria literalmente uma fofoca.

Finalizando, esse estudo da psicopatologia da fofoca, um fenômeno banal, conduziu uma revitalização na paralisia contratransferencial que a paciente produzia, deixando-a mais humana e compreensível.

 

 

1.Dicionário Houaiss da língua portuguesa.  Editora Objetiva. Rio de Janeiro. 2001 – 1ª Edição.

 

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  3. Junhui Wu et al. Reputation, Gossip, and Human Cooperation. Social and Personality Psychology Compass, 2016: 350–364.
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