Abril de 2020 – Vol. 25 – Nº 4

Fernando Portela Câmara – MD, PhD, Prof. da UFRJ

 

Começou como uma simples gripe no inverno de 1917. Foi chamada de febre dos três dias e se assemelhava a uma gripe “forte” com a qual as pessoas já estavam acostumadas. Contudo, na primavera de 1918, uma segunda onda da doença retornou com fúria letal, matando cerca de 100 milhões de pessoas em todo o mundo. Os médicos e cientistas não acreditavam tratar-se de uma gripe, mas de uma nova doença. Alguns a chamavam de broncopneumonia, sem especificar a etiologia, desconhecida na época; outros achavam ser dengue, cólera, tifo ou botulismo. Os mais realistas consideravam-na uma pandemia não identificada, e os que a chamavam de “gripe” usavam esse nome entre aspas, para deixar claro que não tinham certeza disso.

Tão estranha e mortal era essa doença de origem desconhecida, que rumores e ilações sobre ela não tardaram a circular entre as pessoas. Começou-se a associar sua origem a uma guerra biológica perpetrada pelos alemães, então inimigos na I Guerra Mundial que acontecia. Corria o boato de que a aspirina, do laboratório alemão Bayer, estava contaminada com um micróbio causador da doença; ou então que submarinos alemães haviam disseminado os germes, pelo ar, nas costas dos EUA e países aliados europeus. O fato é que a doença foi associada à guerra, e os germes, propagados pelos soldados que voltavam para suas cidades de origem. Realmente, foram os contingentes militares que espalharam a doença, primeiramente nas tropas, e depois para a população civil. Guerras e epidemias costumam andar juntas e formam uma equação bem conhecida desde a Antiguidade, como assinala o legislador hebreu: “Deus manifesta Sua Ira com pestilências e pela espada” (Êxodus 5:3).

Os sintomas da doença não eram, de fato, os da gripe comum. O sujeito era acometido de uma febre alta, súbita, dor de cabeça intensa, mialgias, profundo mal-estar, delírios, calafrios profundos e muita ansiedade. Algum tempo depois, horas ou alguns dias, vinha uma tosse com escarro sanguinolento, o rosto ficava arroxeado, denunciando o sofrimento respiratório, e os pés, enegrecidos (trombose por coagulação intravascular disseminada). A insuficiência respiratória tornava-se intensa, com a saliva tingida de vermelho saindo pela boca, até que, por fim, morria-se afogado no líquido avermelhado que inundava os pulmões.

Ao contrário da gripe comum, a alta taxa de mortalidade não se concentrava nos extremos da curva etária – > 65 anos < 2 anos –; o pico central estava na faixa dos 20-40 anos de idade, totalizando 50% de todos os casos. A taxa de mortalidade caiu 10 vezes na faixa > 65 anos ao contrário da gripe comum, a onda virulenta da pandemia de 1918 correu na primavera, e não no inverno.

A tão temível gripe espanhola atacou o mundo em três ondas entre 1918 e 1919. Apesar da mortalidade em torno de 2,5%, em nível global isto traduz um número enorme de pessoas, em torno de 100 milhões. Essa foi uma das razões de a influenza de 1918 só ter sido percebida quando o número de mortes começou a aumentar de modo alarmante. Foi o caso entre nós, pois as pessoas liam as notícias de uma doença desconhecida atacando a população da Europa e EUA, mas não realizavam que tudo aquilo poderia acontecer por aqui, até que, subitamente, os mortos começaram a se amontoar no Brasil também. A leitura dos jornais de época na Biblioteca Nacional nos proporciona a sensação de como foi viver aqueles meses críticos no Rio de Janeiro. Quando começaram, os casos de influenza foram considerados, no início, como naturais, pois a gripe não era doença rara, mas sazonal, e vez por outra atacava com força, obrigando as pessoas ao leito. Foi assim que a pandemia começou, e logo as pessoas começavam a sucumbir pela gripe que ficaria conhecida aqui como “A Espanhola”.

As autoridades, temendo desabastecimento (naquela época tudo vinha de fora, desde a manteiga e o queijo, a livros e chapéus), não decretaram quarentena aos navios e reprimiram os rumores. Mas logo as notícias da “espanhola” começaram a ocupar o lugar de destaque antes dado às notícias sobre a Primeira Guerra Mundial. Não havia mais como negar que a gripe que estava grassando aqui era a mesma da Europa e EUA, “a mesma de 1889, as duas muito se assemelhando pelos sintomas, e vários autores acreditam movidas pelo mesmo germe”.

Teatros, cinemas, colégios, campos de futebol foram fechados. Os hospitais começaram a receber doentes aos montes, as autoridades da saúde pública recomendavam medidas de higiene. Armazéns, lojas, farmácias, mercearias, padarias cerravam suas portas por falta de funcionários, doentes, e os bondes paravam devido à falta de condutores e temor de contágio. Uísque, vinho do Porto e limões faltavam no comércio devido ao alto consumo, por se acreditar que “cortavam” a gripe, e os preços de mercado se tornaram exorbitantes. Não faltavam nos jornais propagandas de farmácias e produtos medicinais “eficazes”; receitas de “sábios pagés” e de “velhos escravos” eram publicadas pelos jornais, algumas mais letais que a própria gripe. Os bispos conclamavam os padres, através dos jornais, para não se esquivarem de rezarem missas, e à população, para rezar os terços; os centros espíritas recomendavam tratamento homeopático, infusões de ervas e orações; os jornais publicavam toda espécie de declaração, “descobertas” e listas de falecidos ilustres (muitos dos quais médicos famosos da cidade).

O pico da epidemia no Brasil foi em outubro de 1918. A população estava abatida pela influenza e pela mortalidade no seu auge. Outubro foi o mês da desgraça, mas já no final a mortalidade amainou, e em novembro caíra drasticamente. O noticiário voltou a falar novamente da guerra, que logo depois terminaria. O contágio aberto e sua rapidez contribuíram para abreviar a epidemia em pouco tempo, e a economia não sofreu graves danos.

Embora a “espanhola” tenha durado dois anos com três ondas pandêmicas, foi a segunda onda que causou grande mortalidade e terror. A agressividade dessa gripe ficou patente ao se computar a mortalidade geral da população por ano. Em sua tese doutoral, Vieira de Melo (1949) mostrou o efeito dessa gripe na cidade de Recife, então com 228 mil habitantes, ao computar os óbitos por ano na população geral:

. 1916, 7.561 óbitos;

. 1917, 2.853 óbitos;

. 1918, 9.163 óbitos, dos quais 2.052 por gripe.

Desse modo, o coeficiente geral de mortalidade, que era de 138 por 100.000 habitantes, passou para 900 em 1918, devido à “espanhola”, caindo para 127 no ano seguinte (1919). Foi somente pela verificação do índice geral de mortalidade da população que foi possível apreciar a ferocidade da pandemia, como em muitos outros agravos globais.

Talvez o que tenha contribuído para aumentar ainda mais a gravidade da gripe espanhola tenha sido a deficiente assistência médica à população, os tratamentos ineficazes aliados a medicamentos perigosos usados sem controle, conjugados a uma saúde coletiva debilitada por doenças crônicas, má qualidade da alimentação, infecções e parasitoses crônicas, tuberculose e bronquites, entre as mais frequentes, e o hábito de fumar e beber (o fumo e as bebidas da época eram de péssima qualidade e com aditivos muito tóxicos).

Agora tudo volta a se repetir, neste ano atribulado de 2020, com a pandemia de uma síndrome respiratória aguda grave, causada por um coronavírus, primo próximo do que em 2002 causou a temida SARS, felizmente contida a tempo. No Brasil, as mesmas reações da “espanhola” retornam, as mesmas medidas de isolamento – que, afinal, funcionam desde a Peste Negra –, a população dominada pela esperança de uma droga milagrosa que irá curar o mal, enfim, as promessas que ficam no ar, os milagres que não vêm, as preces nunca atendidas, tudo isso novamente percola a população. Alguns de nós morreremos, mas a população continuará com suas mazelas, horrores e mitos.

Nihil novum sub solem.

 

(Este artigo é parte de um capítulo do livro “Pandemias, Virulência e Catástrofes”, de Fernando Portela Câmara)

 

 

 

 

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