Junho de 2020 – Vol. 25 – Nº 6

Fernando Portela Câmara, MD, PhD, Prof. UFRJ

 

Pandemia são eventos inesperados. Começam insidiosamente, os hospitais ficam lotados, as mortes explodem e o pânico toma conta de todos. Em artigos anteriores (Câmara, 2020a, 2020b) mostrei como nesses eventos a racionalização, como defesa psíquica ante o horror da mortalidade, traveste-se em esperança e o uso e abuso da palavra “ciência” passa a dominar inúmeros sofismas, como um clamor por intervenção divina. “Temor de castração”, diria Freud, entre uma baforada e outra. O mesmo drama repete-se desde a Antiguidade, Idade Média e Idade Moderna. O mesmo discurso e as mesmas reações; um déjà vu!

Há sempre as receitas infalíveis, o remédio que expulsa o mal, as revoltas contra quarentenas forçadas, e, em meio a discussões de quando isso vai acabar ou o que fazer para não sucumbir ao contágio. Os fatos se sucedem até que a pandemia perde gradualmente sua força e acaba. Talvez retorne mais tarde, em algumas ondas para preencher lacunas anteriormente deixadas, lugares e cidades ainda não visitados, ou persista em focos esporádicos, aqui acolá, até se extinguir… e não é impossível que, alternativamente, desapareça subitamente, do mesmo modo como começou. Nada sabemos dessa pandemia que ora passamos; é um vírus novo, estamos aprendendo ainda sobre ele, não é podemos prever até onde irá, ao menos nesse momento.

Durante a pandemia da gripe espanhola em 1918-1919, no Brasil já se recomendava o uso do quinino. Todas as casas tinham esse remédio milagroso, usado e abusado em uma época em que a malária podia estar em toda parte e os artríticos proliferavam. Alias, ter uma farmácia doméstica era item presente em todo lar: um armário na parede, branco, com uma cruz vermelha pintada. Hoje a farmacinha tem mais recursos – os antiparasitários sintéticos hidroxicloroquina, ivermectina, a nitazoxanida, o mebendazol -, mas também serão esquecidos, pois no final a esperança em comprimidos será descartada: prazo de validade vencido.

Era a própria autoridade dos inspetores de saúde pública que recomendava aos cidadãos o uso do quinino, como se pode ver em um comunicado aos jornais durante a “espanhola” (ver figura abaixo). A isso se ajuntavam as medidas de restrição de deslocamento, distanciamento social, quarentena, e o uso obrigatório de máscaras. Em alguns lugares, como em São Francisco, EUA, formou-se uma “liga anti-máscaras” que protestava contra o uso obrigatório, alegando “violação de direitos constitucionais”. Tiraram-se as máscaras e a mortalidade voltou a crescer. São Francisco foi o estado americano que mais registrou casos da “espanhola”.

Percebe-se que nada há de novo nessa pandemias. As promessas de vacinas e medicamentos antivirais raramente se realizam, e são as medidas tradicionais de higiene, distanciamento social e máscaras que dão algum resultado. O mundo envelhece, mas a psique é sempre a mesma, precisa agarrar-se em algo para sobreviver ao naufrágio da alma. As orações e as súplicas aos anjos atualizam-se na esperança do remédio da moda, da vacina que não vem, dos soros milagrosos; o rito protetor do sinal da cruz se materializa em máscaras e a penitencia em isolamento; deuses e moléculas trocam papeis no drama milenar que apenas se atualiza segundo a época e as crenças. Mas será o próprio vírus, cumprindo seu ciclo inelutável de ascensão e declínio, que mitigará todo sofrimento.

Nihil novum sub solem

 

Referências citadas:

Câmara FP. A gripe espanhola no Brasil e o caso dos coronavírus, Psychiatry On-Line Brazil, Abril, vol. 25, no. 4, 2020a

https://www.polbr.med.br/2020/04/01/a-gripe-espanhola-no-brasil-e-o-caso-do-coronavirus/

Câmara FP. A pandemia esquecida. A cólera no Brasil, Psychiatry On-Line Brazil, Maio, vol. 25, no. 5, 2020b

https://www.polbr.med.br/2020/05/01/a-pandemia-esquecida-a-colera-no-brasil/

 

 

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