Abril de 2021 – Vol. 26 – Nº 04

Fernando Portela Câmara, MD, PhD
Diretor do Instituto Stokastos

Summary. The Covid-19 pandemic led governments to adopt standard measures to
contain contagion and minimize damage, but some of these measures are just memes
from pseudoscientific conjectures. They continue to be imposed for political reasons.

Keywords – Lockdown, memes, social catastrophe

Depois de ser alardeado em todas as mídias e levar governos a agir de forma restritiva
contra a população, não se ouviu mais falar na urgência do “achatamento da curva” da
Covid-19 a partir do mês de junho de 2020, após a experiência do confinamento social
(“lockdown”) ter demonstrado seu fracasso. A ordem ouvida em toda parte era:

“Fiquem em casa!”

A estratégia de “achatamento da curva” é uma ilação que preconizava o confinamento
radical para baixar o número de infecções diárias. “Achatar a curva” manteria a
demanda hospitalar sob controle, regulando a ocupação de leitos de UTI sem colapsar.
Ora, isso não leva em conta as capacidades de cada população em função do seu
tamanho e disponibilidade de leitos. No Brasil, muitos municípios tinham muito poucos
leitos de UTI ou nenhum. Além disso, a atabalhoada medida não levou em conta o
tempo em que um doente grave ocupa um leito (que pode levar até três, quatro ou mais
semanas). Essas considerações perdem seu valor ao constatarmos que a lógica de
achatamento da curva foi uma falácia, uma pseudociência criada sem nenhuma base
empírica. De fato, nunca se apresentou um gráfico com dados quantitativos reais.
Por outro lado, a adoção de medidas de distanciamento social, uso de máscaras,
higienização e restrição da mobilidade para certos locais são, contudo efetivas em
reduzir o contágio, sem o inconveniente de colapsar a sociedade. Ao colocar todos em
confinamento toda população sem testar e separar os infectados e suspeitos em
quarentenas, o “lockdown” agravou o contágio e levou a problemas econômicos e
sociais graves.

Das várias contradições epidemiológicas da Covid-19, duas contribuíram para ampliar a
tragédia: confundir a epidemiologia da Covid-19 com a da gripe, e a imposição de
“achatar a curva”, jargão para o confinamento compulsório da população. Essa medida,
na verdade, foi inspirada em um meme criado por pessoas não ligadas a governos e sem
formação e experiência epidemiológica. O meme teve sua origem na era Bush, em um
estudo do CDC [Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA] sobre uma

possível pandemia de influenza, reforçada posteriormente pelo sucesso do filme
“Contágio”. Era um estudo puramente conceitual, sem considerar cálculos ou dados
específicos, e a mídia contribuiu para “colorir” ainda mais o medo coletivo. Essa ideia
foi adotada na Covid-19 antes mesmo de se planejar estratégias racionais com base nos
fatos (Tucker, 2020).

A substituição do lockdown por quarentena de infectados e suspeitos teria sido a medida
mais acertada e mais eficiente, embora sua eficácia para infecções respiratórias não seja
satisfatória. O lockdown só é possível na parcela da população que é suficientemente
organizada e capitalizada para manter-se em isolamento por longos períodos. O Peru foi
um exemplo dramático dos efeitos do lockdown na população de um país pobre com um
sistema de saúde pública deficitário. Seguindo as recomendações da OMS, o governo
peruano decretou um lockdown rigoroso, com fechamento das fronteiras, toque de
recolher e permissão para sair de casa apenas para serviços essenciais. A medida durou
mais tempo que os demais países e o resultado foi o contrário do esperado (BBC, 2020):
alto índice de fatalidades com um excesso de mortalidade entre março e maio, muito
além do esperado para um ano normal. A falha na medida estava essencialmente nos
fatores sócio-econômicos: 40% da população não têm geladeira para estocar alimentos,
sendo obrigada a sair diariamente para fazer compras nos mercados, cujos funcionários,
segundo um levantamento, tiveram ou estavam com a Covid-19 numa proporção que
variava de 40% a 86%. Eles transmitiam o vírus para os clientes e estes espalhavam o
patógeno em suas casas. 70% dos peruanos eram trabalhadores informais que
precisavam sair de suas casas e tomar ônibus todos os dias; a maior parte das pessoas
precisava ir aos bancos que tem sempre filas cheias; 12% das famílias são muito pobres
e vivem em casas superlotadas (BBC, 2020). Vemos assim que os fatores propícios para
a transmissão do SARS-Cov-2 e rápida seleção de cepas mais infecciosas estavam
presentes e foram favorecidas pelo lockdown.

A transmissão do novo coronavírus foi apressadamente confundida com a da influenza,
um equívoco que trouxe um problema crítico, pois ao adotar o modelo da influenza por
princípio não ficou claro se estávamos em uma pandemia. Em razão disso houve um
atraso em declarar o estado pandêmico. Não se tinha parâmetros pandêmicos para uma
coronavirose, cujas características epidemiológicas não são exatamente as mesmas da
gripe. A epidemiologia dos coronavírus tem uma peculiaridade característica: i) os
surtos se iniciam em clusters de pessoas que se comunicam e estão em estreito contato,
os chamados “eventos superdisseminantes”; ii) enquanto a maioria dos infectados
transmite o vírus para uma, duas ou nenhuma pessoa, um pequeno número deles repassa
o vírus para muitos outros, os “superdisseminadores”.

Por exemplo, os asilos de idosos é uma aglomeração, e se um dos cuidadores for um
superdisseminador, a maioria dos idosos será infectada. Isso contribuiu muito para a
mortalidade da Covid-19 como se observou na Suécia, Itália, Nova York e em outros
lugares. Esse padrão de transmissão heterogêneo – em clusters -, é característico dos
coronavírus, em contraste com o padrão difuso da gripe.

Lugares muito frequentados favorecem uma eficiente disseminação do vírus. Um bar
movimentado, uma boate, um asilo, um congresso, um casamento, um campeonato, são
exemplos de lugares cheios de pessoas próximas e falatório, condição ideal para
espalhar o vírus. Ambientes fechados e uma circulação de ar deficiente favorecem ainda
mais o contágio, permitindo que uma nuvem de gotículas formada das conversações
permaneça em suspensão no local por tempo suficiente.

O modelo de propagação de uma coronavirose é conhecido como “incêndio na floresta”,
uma imagem que ajuda bastante a entender o padrão de contágio e as medidas para
reduzi-lo. Quanto mais juntas às árvores, maior a propagação do fogo quando uma
faísca incide no local; e quanto mais distanciadas, menor a chance de propagação. Aqui
e acolá, arvores que estão mais juntas (clusters) podem iniciar um incêndio a qualquer
momento. Evitar aglomerações e respeitar a norma de distanciamento social é uma
medida mitigadora efetiva, e, embora não elimine a chance de contágio, reduz
significativamente sua chance; por esse mesmo raciocínio, havendo infecção, haverá
uma maior chance de a carga viral ser pequena, reduzindo a chance de uma forma grave
da doença. Ao restringir nossas atividades em uma parte do nosso cotidiano, podemos
reduzir a maior parte dos riscos.

Por fim, outro equívoco que contribuiu para a mortalidade, foi à decisão de orientar as
pessoas com sintomas considerados leves a ficarem em casa, aconselhando-as a
procurar o serviço médico somente no caso de agravamento do quadro com
comprometimento respiratório. Sabe-se hoje que sintomas leves podem estar associados
a comprometimento pulmonar grave, com hipoxia, sem que o paciente se queixe disso
(“happy hipoxemia”). Isto já é um indicativo para internação hospitalar.
Em tempos de pandemia, as medidas de proteção individual e restrições sociais são
importantes fatores mitigadores quando a sociedade responde ao esforço. Entretanto, o
contágio é uma força impetuosa e sutil que segue um curso catastrófico até se esgotar,
como muitos fenômenos na natureza. A única defesa efetiva que a humanidade conhece
por experiência é a barreira imunológico. A vacinação em massa, quando possível, é a
única saída.

Referências
BBC. Coronavírus: por que um lockdown rigoroso não impediu explosão de casos no
Peru, BBC/UOL, Junho 26, 2020
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2020/06/26/coronavirus-por-que-um-
lockdown-rigoroso-nao-impediu-explosao-de-casos-no-peru.htm (acessado em
24/08/2020)
Tucker JA. The 2006 origins of the lockdown idea, American Inst. For Ecnomical
Research, May 2020, https://www.aier.org/article/the-2006-origins-of-the-lockdown-idea/
(acessado em 24/08/2020).

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