Sérgio Telles
Em suas provocações, o cineasta japonês Sion Sono ultrapassa limites com excessos que beiram o insuportável. Ainda assim, a bizarrice e distorcida estranheza de seu último filme, “The Forest of Love”, já disponível no Netflix, expõe recônditos aspectos da realidade sociocultural.
A ação do filme começa num colégio feminino, onde as alunas planejam encenar “Romeu e Julieta”. Duas meninas, Taeko e Mitsuko, se apaixonam por aquela que faria o papel de Romeu e que morre inesperadamente num acidente de trânsito. O trauma provoca um pacto suicida entre as colegas, que nem todas cumprem. Dez anos depois, Taeko é uma punk rebelde à beira da prostituição e Mitsuko vive como reclusa na casa dos pais ricos que a tiranizam. Nessa ocasião, a cidade onde vivem (Tóquio), está assustada com as ações de um serial killer que já eliminara várias mulheres.
Murata, um homem carismático e manipulador, que se apresenta como cantor, empresário, ex-aluno de Harvard e ex-funcionário da CIA, além de insinuar ser ele mesmo o procurado serial killer, resolve seduzir Mitsuko, de olho em seu dinheiro. Entrementes, dois jovens amigos de Taeko, que sonham ser cineastas famosos, encontram por acaso um rapaz que se diz recém-chegado à cidade e o convidam a integrar o grupo.
Em meio a várias peripécias, os jovens personagens planejam salvar Mitsuko das maquinações sociopáticas de Murata. Mas ao invés de salvá-la, o grupo (os três rapazes e as duas moças) cai paulatinamente sob o domínio de Murata, submetendo-se de forma absoluta a suas imposições loucas e destrutivas, aceitando passivamente um crescendo assustador de abusos psíquicos e físicos.
Os impasses criados por Murata chegam a um clímax em seu embate com o pai de Mitsuko. A degradação e despojamento de todos os signos de autoridade e poder a que foi submetido o levam a cometer suicídio. A mando de Murata, seu corpo e o de sua mulher passam pelo mesmo processo usado anteriormente com o corpo de Jay, um dos rapazes cineastas que ousara manifestar discordância – são esquartejados, eviscerados, fervidos e cozidos em panelas, batidos em liquidificadores e jogados no vaso sanitário. As partes duras, como os ossos, serão moídos, transformados em bolinhos a serem guardados em caixas de biscoitos.
Se no conteúdo manifesto essa conduta responde à necessidade de eliminar as provas do crime, a interpretação do conteúdo latente valoriza as associações na linha oral alimentícia, que nos remetem diretamente ao “Totem e Tabu”, de Freud.
Ali Freud mostra como a civilização se instala com o assassinato do mítico pai primevo e a ingestão de seu corpo num banquete totêmico, o que leva a uma identificação com esse pai amado e odiado e à consequente internalização da lei, que vai estruturar simbolicamente os mundos interno e externo.
O que vemos no filme de Sion Sono é uma completa inversão. Há ali o sacrifício do(s) pai(s)s e apenas o simulacro de preparação de um banquete totêmico, pois ele não se consuma. O corpo do pai não é ingerido e sim descartado, despejado na privada.
Sion Sono representaria com seu filme aspectos do momento atual da cultura. Ao contrário do modelo freudiano, em que o pai assassinado é ingerido no banquete totêmico, e disso decorre a introjeção da lei que estabiliza e organiza as realidades interna e externa, na contemporaneidade a autoridade paterna é rejeitada, destruída e espezinhada, literalmente jogada no vaso sanitário. Dessa forma, o parricídio não tem como consequência a instauração da lei e sim a instalação do caos e da destrutividade desenfreada.
Esse pode ser visto como o grande pano de fundo do filme de Sion Sono – a concomitância de desejos opostos e conflitivos: por um lado, a destruição do poder paterno na busca de uma liberdade ilimitada e, por isso mesmo, mortífera (Murata e o serial killer dizem ser “espíritos livres”, ao justificarem suas condutas); por outro, o anseio pela proteção de um pai autoritário que exige de forma sádica e louca a mais irrestrita obediência, como faz Murata. Tal dinâmica talvez explique a ascensão de líderes políticos totalitários e/ou populistas, com seus cultos à personalidade.
Sion Sono aborda outros temas do atual mal-estar na cultura, como a questão entre os gêneros. As mulheres expressam a rejeição ou o ódio aos homens através do lesbianismo ao qual estão fixadas e a misoginia dos homens, seu ódio contra as mulheres se configura na atuação do serial killer. Num outro diapasão, Sono menciona as antinomias entre arte e realidade, mentira e verdade, as vicissitudes do artista, as pressões na busca da fama e da celebridade.
Apesar de um tanto longo (2 horas e meia) e de cenas ultrajantes, “The Forest of Love” é um filme que merece ser visto.
(*) Publicado no suplemento EU&FS do jornal Valor Econômico em 08/11/2019, sob o título “Um mundo cheio de caos e destruição”