Dezembro de 2020 – Vol. 25 – Nº 12

Walmor J. Piccinini

 

Ainda assim, na seleção, ordenação e interpretação de interpretações que foram selecionadas, ordenadas, e interpretadas, historiadores são, estritamente falando, não historiadores, mas “historiografistas” (no sentido no qual o termo se refere aos historiadores de histórias).

Uma quarta característica distintiva dos dados históricos é que eles muitas vezes intencionalmente escondem tanto como eles revelam. Atores, testemunhas oculares e cronistas (como os próprios historiadores) disfarçar, embelezam e distorcem”.

 

A historiografia oficial da psicanálise no Brasil tem crescido substancialmente nos últimos anos. Vou seguir por um caminho um pouco diferente que se baseia em pesquisa e vivências pessoais. Cyro Martins já escreveu e falou sobre o início da psicanálise no estado.  Como todos os fatos extraordinários, muitas vezes acontece um incidente, um fato que desencadeia toda uma cadeia de acontecimentos.  Já existiam algumas vozes falando em psicanálise, Martin Gomes, Dyonélio Machado e um que não é citado é o Dr. Lauro de Oliveira Pimentel cuja tese de doutoramento que publiquei em www.polbr.med.br/ano11/wal0511.php naquela tese ele defende a psicanálise como método de persuasão. Graças ao MUHM publiquei o texto completo da tese que está na URL acima referida. A Tese foi apresentada na Faculdade de Medicina de Porto Alegre em 1916 e é curioso que seu nome tenha sido apagado da história.

Vou citar apenas um parágrafo:” BREUER e SIGMUND FREUD, professores em Viena e edificadores de uma nova doutrina, relativa ao tratamento e á analise das neuroses e da qual tratarei proximamente em um dos capítulos deste modesto trabalho, concebem as psiconeuroses como uma anomalia do desenvolvimento genital, a qual é ignorada do próprio indivíduo que d’ela não se apercebe. E’ uma anomalia psicogenital dissimulada, mascarada pela influência deformante da Censura, é o estado negativo da perversão. As psiconeuroses, representadas pela histeria e pela obsessão, resultam, na opinião dos abalizados fundadores da psicanálise, de complexos mal recalcados, remontando pelo passado individual até à juventude”. (Lauro de Oliveira Pimentel)

Voltando aos acasos, certo dia Cyro e Mário Martins que dividiam consultório na Galeria Chaves, receberam um vendedor argentino de livros e assinaturas de revistas. Trazia os dois primeiros números da Revista Argentina de Psicoanálisis que começou a ser editada em 1943. Mário que já desejava abrir novos horizontes na sua atividade de psiquiatra começou a folheá-las e viu uma oferta de Bolsa de Estudos da Fundação Francisco Munhoz para formação em psicanálise em Buenos Aires. Foi um raio de luz que se acendia. Mário escreveu para a Fundação, depois para Angel Garma que o aceitou em análise didática e lá se foi para Buenos Aires com mulher e filhos. Era o ano de 1945, a guerra mundial havia terminado, mas não era fácil viver em Buenos Aires. Além da bolsa levava seu salário de psiquiatra do Estado. Além dele, outros brasileiros seguiram o mesmo caminho Walderedo Ismael de Oliveira, Alcyon Baer Bahia e o casal Perestrelo.

A formação de Mário na APA foi surpreendentemente rápida, em dois anos foi analisado por Garma e já voltou habilitado para as funções didáticas. Nos primeiros tempos da APA os tratamentos e a formação eram mais curta e eram aceitas mulheres professoras. Em 1948 as normas se tornaram mais rígidas e, por fim, em 1951 só médicos passaram a serem aceitos em treinamento. Por pressão do Ministério da Saúde, os candidatos deveriam ter pelo menos o título de Agente Psiquiátrico. Garma, revalidou seu título de médico logo que chegou em Buenos Aires. Marie Langer que era médica na Áustria, achava humilhante ter que fazer o curso de Agente Psiquiátrico para poder trabalhar.

Quando perguntam quando começou a psicanálise em Porto Alegre, costuma se dizer que foi em fevereiro de 1947 quando Mário Martins recebeu seu primeiro paciente que foi Ernesto La Porta. A esposa de Mário Martins também voltou analista de Buenos Aires, ela era professora primária e se tornou analista de crianças. Jorge Balan em seu livro sobre os primórdios da APA conta que os primeiros analistas   argentinos se reuniam para estudos e as mulheres ficavam fazendo chá e conversando. Lá pelas tantas elas exigiram participação e nasceu assim uma série de mulheres psicanalistas, Arminda Aberastrury que era mulher de Pichón Riviere, Matilde Rascovsky que era mulher de Arnaldo e outras mais que foge do nosso intuito de contar a história.

Um outro médico gaúcho também estava em Buenos Aires em análise era o Dr. José Jaime Lemmertz, era analisando de “Luís (Lucio) Raskovsky, irmão do Arnaldo que tratou Cyro Martins quando este foi fazer sua formação. Do Rio de Janeiro o Dr. Celestino Prunes, que era professor do Departamento de Medicina Legal da Faculdade de Medicina, voltou como didata depois de se analisar com Werner Kemper. Este quarteto constituiu o núcleo fundador da que depois viria a ser a Sociedade de Psiquiatria de Porto Alegre. A este grupo inicial foram se ajuntando seus candidatos e outros nomes de expressão na medicina riograndense.

Esta era a realidade gaúcha para ser psicanalista era necessário ser médico e ter curso de psiquiatria. Na época não existiam outras profissões da área psicológica e não se pensava em análise leiga.

Estudando-se a genealogia dos nossos analistas vamos encontrar fatos interessantes. O primeiro é que Karl Abraham que era médico e trabalhou em Burghosli, analisou Theodore Reik que era filósofo e que analisou Angel Garma que era médico e este por sua vez analisou Mário Martins, também médico.

Mário Martins analisou Ernesto La Porta, Paulo Luiz Vianna Guedes, David D. Zimmermann, Sérgio Paulo Annes, Luiz Carlos de Almeida Meneghini, Isaac Pechansky, Ruth Stein Maltz, Marcelo Blaya e Darcy Abuchain. (todos médicos)

Hanns Sachs* (discípulo de Freud, era advogado) analisou: Rudolph Loewenstein que era médico e que analisou: Paul Schiff que analisou: Celes Ernesto Cárcamo que analisou: Luiz Raskovsky que analisou: José Jaime Lemmertz, médico

Karl Abraham (discípulo de Freud) analisou: Theodor Reik que analisou:
Angel Garma que analisou: Arnaldo Raskovsky que analisou:
Cyro Martins que analisou: Fernando Luiz Vianna Guedes, Moises Roitman, Ellis D’Arrigo Busnello, Sylvio Raya Ibañes, Marco Aurélio Rosa, Curt Schwartz, Luiz Carlos Osório, Maria Geraldina Viçosa e Roaldo Machado.

Karl Abraham e Hanns Sachs* (discípulos de Freud) analisaram:
Müller-Braunschweig que analisou: Werner Kemper que analisou:
Celestino Moura Prunes que analisou: Emília Pinto Messias.

*Hanns Sachs (Viena, 10 de janeiro de 1881 — Boston, 10 de janeiro de 1947) foi um dos primeiros psicanalistas e amigo pessoal próximo de Sigmund Freud. Tornou-se membro do Comitê Secreto de Freud de seis em 1912, Freud descrevendo-o como um “em quem minha confiança é ilimitada, apesar da escassez de nosso conhecimento”. [1]

Theodore Reik- Uma vez nos Estados Unidos, Reik se viu rejeitado da comunidade dominante de psicanalistas médicos porque não possuía um diploma de médico. Em resposta, ele passou a fundar um dos primeiros centros de formação psicanalítica para psicólogos, a Associação Nacional de Psicologia para Psicanálise, que continua sendo um dos maiores e mais conhecidos institutos de treinamento psicanalítico da cidade de Nova York.

Como parte do conflito de Reik com a comunidade da psicanálise médica, ele participou da primeira ação judicial que ajudou a definir e legitimar a prática da psicanálise por não médicos. Seu legado para a psicanálise não médica nos EUA é, portanto, importante: que a formação de analistas não médicos, como psicólogos e assistentes sociais, é agora amplamente aceita, é significativamente devido aos esforços de Reik.

Rescaldo de guerra

Durante a Primeira Guerra Mundial, Reik foi mobilizado e teve que enfrentar a experiência de desamparo insuportável encontrado na guerra de trincheiras. A partir dessa experiência, Reik contribuiu para um artigo de Freud, publicado em 1919, “O Estranho” (referindo-se, em parte, ao que é horripilante); e alguns anos depois, em um texto chamado “O Temor” escrito em 1924 e publicado em 1929. Reik faz uma ligação entre os vários aspectos da neurose traumática, conforme disseminado nos artigos escritos de Freud, e sugere sua própria análise posterior; Freud reconheceu a pertinência do artigo. Em um livro, publicado em 1935, Reik discute o temor de confrontar pensamentos, do ponto de vista do psicanalista (Tréhel, G. 2012).

Quando a paz foi finalmente restaurada, um comitê dirigido por Julius Tandler foi organizado em Viena para investigar crimes cometidos; Julius Wagner von Jauregg participou como membro. Naquela época, a prática médica em lugares dirigidos por Wagner von Jauregg e Arnold Durig havia sido desacreditada por um ex-cliente, Walter Kauders. Sigmund Freud foi apontado como testemunha especializada nos cuidados médicos prestados aos neuróticos de guerra. Em fevereiro de 1920, a comissão deu seu parecer e, em outubro de 1920, apresentou formalmente suas conclusões. Outro assunto abalou a capital austríaca. Em novembro de 1924, Durig pediu a Freud que escrevesse uma avaliação especializada sobre a questão da análise leiga — ou seja, análise praticada por indivíduos que não são médicos. Em dezembro de 1924, durante uma sessão do Conselho Estadual de Saúde de Viena, Wagner von Jauregg pediu uma lista das instituições que utilizam a psicanálise. Reik foi identificado como não certificado medicamente. Em fevereiro de 1925, ele foi, por decreto oficial, proibido de continuar praticando medicina; e em 1926, Newton Murphy, ex-cliente de Reik, se voltou contra ele, processando-o por tratamento prejudicial [1] — Freud assumiu publicamente a defesa de Reik, reagindo escrevendo para Tandler. Os dois casos apresentaram semelhanças. Especificamente, eles ocorreram durante o mesmo período e na mesma cidade, Viena; cada um deles se referia à prática dos cuidadores; e eles implicaram os mesmos indivíduos que estavam em autoridade. [2]

Entre os tratados por Reik em seu período vienense estava o filósofo Frank P. Ramsey, durante uma estadia prolongada em Viena para esse fim. [3]

  • O artigo de Reik sobre ‘Surpresa’ na psicanálise mostrou-se significativo para W. R. Bion, que considerou surpresa no desconhecido um elemento essencial de progresso na análise. Sua ênfase em estar aberta à surpresa, e as artes da escuta na análise foram tomadas pelo teórico psicanalítico francês Jacques Lacan, e anteciparam desenvolvimentos recentes na psicanálise dos EUA, como sua ênfase atual na intersubjetividade e contratransferência.
  • Reik apresentou uma crítica contundente à teoria freudiana tradicional em Um Psicólogo Olha para o Amor (1944). Freud acreditava que o amor é sempre baseado em alguma forma de desejo sexual. Reik argumentou, pelo contrário, que o amor e a luxúria são distintos forças motivacionais.

Psicanálise profissão de homens

O grupo das quartas-feiras era constituído por amigos de Freud, nem todos médicos. As primeiras dissensões começaram neste grupo. William Steckel foi quem sugeriu a formação do grupo e foi o primeiro a percorrer o caminho de paciente a aprendiz, depois colega e, finalmente, inimigo. Depois dele Alfred Adler logo rompeu com Freud. As primeiras mulheres a integrar o grupo foram Ana Freud e Melanie Klein. Ambas não eram médicas, eram educadoras e desenvolveram uma intensa disputa sobre a análise de crianças. Theodor Reik que era psicólogo foi acusado de praticar irregularmente a Medicina. Em defesa a ele e as duas mulheres, Ana e Melanie, Freud escreveu um artigo defendendo a análise leiga em 1926.

Melanie Klein sentiu que não havia espaço para ela em Viena, mudou-se para Berlim onde também sua vida não foi fácil e terminou indo para Londres sob a proteção de Ernest Jones. A disputa entre Ana e Melanie seguiu acirrada. O movimento psicanalítico estava dividido. As armas eram a intriga e o isolamento dos adversários. Melanie acusava Freud de ter analisado a própria filha, a situação se agravou quando foi descoberto que as teorias de Melanie Klein eram fundamentadas na análise do próprio filho Erich. Edgard Glover e a filha de Melanie Klein Melitta Schidberg eram adversários de Melanie e defendiam Ana Freud. A chegada de Freud em Londres, mesmo contra a vontade de Melanie Klein, acalmou os ânimos.

A psicanálise além de enfrentar as resistências naturais teve que assimilar as divergências entre as duas importantes mulheres. Um outro fato pouco comentado é que Stalin declarou a psicanálise uma profissão burguesa e a proibiu na URSS. Muitos analistas eram comunistas e se calaram. Na Argentina Jorge Thenon (1901- ) e Gregório Berman1894, ilustres psiquiatras que eram defensores da psicanálise, sob a diretriz de Moscou passaram a se opor tenazmente. No Brasil, os analistas comunistas se calaram.

O novo grupo formado em Porto Alegre buscava se legalizar na poderosa (International Psychoanalytical Association (IPA). De início foi tentada a filiação via APA, mas não foi permitido, depois foi tentado Via São Paulo, mas os paulistas criaram muitos obstáculos.

O Dr. José Jaime Lemmertz foi enviado para São Paulo para negociar a associação do grupo de Porto Alegre, voltou desanimado, pois São Paulo exigia que para serem aceitos deveriam fazer um ano de supervisão com didata paulista e apresentar um caso. Foi um balde de água fria nas pretensões do grupo gaúcho. O tempo passa, a Sociedade Gaúcha de Psicanálise se viu diante de inúmeros analistas retornados da Argentina e repete a conduta dos paulistas exigindo reavaliação destes analistas. A consequência foi a formação de nova Sociedade Psicanalítica em Porto Alegre. Ironias à parte, ligada a São Paulo.

(Alguns dados fui buscar na Wikipedia a quem agradeço).

 

 

 

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