Setembro de 2020 – Vol. 25 – Nº 9

Caliel Ribeiro Simas*; Márcia Gonçalves **

Introdução:

Hipócrates já havia descrito a “loucura da bile” e relatado os sintomas da icterícia em 350 a.C. (1). Com o passar dos séculos, o entendimento acerca da histologia hepática permitiu a determinação das vias e a sistemática orgânica deste órgão.

É sabido que o fígado é responsável por milhões de reações bioquímicas que garantem a sustentação da vida humana. Uma vez desenvolvida uma hepatopatia, este deixa de exercer suas funções adequadamente, levando a desdobramentos prejudiciais ao organismo, como acúmulos de toxinas, hipoalbuminemia e hipovitaminose. Neste sentido, o tecido hepático é essencial a homeostasia do organismo humano.

As doenças relacionadas ao fígado são classificadas como sistêmicas, seja pelo acúmulo de bilirrubina por causas hepáticas, infecções ou o desenvolvimento de cirrose. Nesta visão, as neuropatias e transtornos mentais orgânicos por causas hepáticas se tornaram foco de estudos tanto na neurologia quanto na psiquiatria (2).

Com manifestações clínicas que vão desde a perda da capacidade de memória e da velocidade de raciocínio, até a desorientação no espaço e tempo, a encefalopatia hepática, também denominada de encefalopatia portossistêmica, é um dos desdobramentos mais recorrentes dos estágios graves das doenças incapacitantes do fígado. Representando a 2ª principal causa de internação de pacientes cirróticos, perdendo apenas para a ascite (2,3)

Na psiquiatria, a atenção especial que as encefalopatias hepáticas demandam são relativas aos transtornos, ou síndromes, mentais orgânicas. Resultantes do acúmulo de toxinas produzidas em todo o organismo e que não são mais metabolizadas pelo fígado, ressaltando-se a amônia. A hiperamonemia gera transtornos que podem ser desenvolvidos por pacientes crônicos e agudos. Essas síndromes orgânicas, em grande parte reversíveis, apresentam-se por meio de demências primárias ou secundárias, além da possibilidade de desencadear outras doenças, como o Alzheimer, doença de Pick, delírios e psicoses. (3,4)

Neste sentido, compreender e analisar os mecanismos funcionais do tecido hepático, bem como suas disfunções é fundamental ao sucesso no tratamento do hepatopata. A neurologia e a psiquiatria, ramos tão próximos na medicina, se confundem no tratamento de encefalopatias hepáticas, unindo forças e viabilizando a progressão do paciente.

 

Metodologia:

O presente estudo foi realizado por meio do levantamento de artigos em português e inglês disponíveis nas bases de dados PUBMED, SciElo e Google Acadêmico, bem como canais oficiais relativos à psiquiatria e saúde. A pesquisa foi realizada pelos descritores: liver diseases, cirrhosis, hepatites, hyperammonemia, encephalopathy e transtornos orgânicos.

 

Discussão:

Principais patologias e causas de comprometimento tissular hepático.

                O fígado é um órgão vital. O entendimento acerca da fisiologia hepática é essencial para a compreensão dos processos patológicos que acometem o órgão. Como uma das maiores vísceras do corpo humano, o fígado tem como principais funções a secreção da bile, a regulação do metabolismo dos carboidratos, proteínas e lipídeos, além do armazenamento de glicogênio. Pode-se citar também, a degradação e secreção de hormônios, a metabolização de xenobióticos e o auxílio ao sistema imune. (2, 5).

                Um dos principais mecanismos que garante o aporte de energia necessária ao metabolismo do organismo, mesmo em situações de privação alimentar, é o estoque de glicogênio através de reações orgânicas denominadas glicogênese e gliconeogênese. O fígado pode armazenar glicose em sua forma condensada ou ainda produzir glicogênio a partir da conversão de aminoácidos e lipídeos, além de sintetizar e secretar lipoproteínas de baixa densidade, e albumina que são convertidas em lipoproteínas séricas, sendo a principal fonte de colesterol para diversos outros tecidos (2, 5, 6).

As hepatopatias inviabilizam a síntese proteica no fígado, resultando numa hipoalbunemia, situação que resulta em anasarca, característica em pacientes cirróticos. O fígado também é responsável pela formação corpos cetônicos a partir do acetoacetato, beta-hidroxibutírico e acetona, por meio da acetil-coenzima A (Acetil-CoA). O aumento do nível sérico destes compostos acidifica o sangue sanguíneos, e interfere nos tampões biológicos e no funcionamento do sistema nervoso, dificultando sinapses e propiciando as encefalopatias. (2, 5, 7).

                Dentre as principais causas do comprometimento tissular hepático, destaca-se a cirrose. De natureza difusa e degenerativa, é caracterizada pela substituição da arquitetura normal do fígado por tecido fibroso, essa substituição impede o bom funcionamento do tecido, comprometendo suas funções vitais. (8).

                O álcool pode ser prejudicial:  A metabolização do álcool está baseada no aumento dos processos de oxidação no tecido hepático. Esse fenômeno se dá, principalmente pela metabolização do etanol em etanoldeído, que libera dinucleotídeo de nicotinamida e adenina (NADH) durante o processo. Esse acúmulo de NADH, somado a acetil-CoA, formado a partir da metabolização do acetaldeído, interfere no ciclo do ácido cítrico, aumentando a chamada “energia vazia”, e inviabiliza a produção de adenosina trifosfato (ATP) na célula. Uma vez que os hepatócitos estão neste processo de oxidação e interferência energética causada pelo etanol, a concentração das espécies reativas de oxigênio (ROS) também aumenta, causando mais danos celulares ao tecido, iniciando o processo de lesão e cicatrização, que leva a formação do tecido fibroso (6, 8).

                As hepatites também representam uma importante causa de cirrose hepática, sendo a do tipo C a de maior prevalência clínica entre os acometidos. As hepatites podem ser divididas em agudas e crônicas, 20% dos casos crônicos são representados pelas hepatites A e B, sendo raras as manifestações extra-hepáticas nestes tipos. No que tange a hepatite C, esta apresenta uma maior prevalência dessas manifestações, estando presentes em cerca de 74% dos casos. No entanto, estima-se que apenas cerca de 15% dos pacientes que apresentam as manifestações extra-hepáticas possuem impactos neurológicos, quando estes ocorrem destacam-se as neuropatias periféricas (9).

                Os desdobramentos extra-hepáticos das hepatites virais normalmente estão associados a inflamação causada com desdobramento de destruição tissular pelos fatores inflamatórios, e destaca-se a icterícia, que pode levar ao acúmulo de bilirrubina no sistema nervoso central (SNC), levando à encefalopatia. Essa intoxicação pode progredir com sintomas demenciais, manifestações epilépticas, hidrocefalia e doença encefalovascular isquêmica. Os portadores do vírus HCV também demonstraram surgimento de sintomas menores, como vertigem, hipocinestesias, dificuldade de coordenação motora e neuropatias ópticas inflamatórias (9, 10).

                É importante destacar que o fígado também é responsável pela segunda maior reserva de ferro do organismo, além do armazenamento de vitaminas lipossolúveis, como a A, D e B12. Sendo também responsável pela degradação e excreção de hormônios e de xenobióticos. Neste sentido, a destruição tissular do fígado que ultrapassa seu limiar de regeneração, leva ao acúmulo desses compostos, propiciando a intoxicação de diversos tecidos, como o nervoso (5, 9, 10).

Fisiopatologia da amônia; O catabolismo proteico e a formação dos corpos cetônicos, se baseia na desaminação de aminoácidos e a consequente formação de amônia. Este composto nitrogenado hidrofóbico de fácil difusão no organismo é metabolizado no fígado, mecanismo denominado ciclo da ureia, que ocorre exclusivamente nos hepatócitos objetivando a geração de compostos menos tóxicos. O ciclo da ureia baseia-se na enzima glutamino sintase (GS), que converte a amônia e o glutamato em glutamina, e na enzima glutaminase (PAG) que realiza o processo inverso (11).

                As patologias que acometem o tecido hepático acabam por destruir os hepatócitos, impossibilitando também suas vias bioquímicas, causando assim a hiperamonemia. A chamada “teoria da amônia” (3), é hoje a hipótese mais popular para as encefalopatias por causas hepáticas. Essa teoria se baseia na explicação acerca da interferência do composto nos mecanismos iônicos e moleculares. Sob essa visão, a amônia como gás (NH3) atravessa a barreira hematoencefálica por simples difusão, já sua forma iônica (NH4+) tem propriedades semelhantes ao íon potássio (K+), que a permite competir com este por seus canais específicos, interferindo nos potenciais de ação neuronais (13).

                Dentre os diversos efeitos negativos que o acúmulo da amônia pode gerar ao tecido encefálico, evidencia-se a redução da atividade mitocondrial, a diminuição dos potenciais pós-sinápticos, com consequente depressão generalizada ao SNC, o aumento na captação de triptofano e redução de ATP por gasto em transporte ativo. Também se destaca o aumento na formação de glutamina, pela desregulação do balanço da desaminação do glutamato, propiciando o consequente aumento da osmolaridade intracelular dos astrócitos, causando edema no tecido encefálico e consequente aumento da pressão intracraniana (2, 7, 13, 14).

                Outro ponto é a oxidação das fitas de RNA por intoxicação pela amônia. Descrita pelo hepatologista alemão, Görg Boris, em 2008, essa intoxicação poderia afetar a expressão de genes, síntese local de proteínas e levar a mutações a longo prazo (15). Por estes e outros motivos apresentados, dentre as manifestações sistêmicas que as hepatopatias causam, o acúmulo de amônia é a que mais oferece risco ao sistema nervoso central do paciente hepatopata (2, 13).

 

Encefalopatia hepática

                As encefalopatias hepáticas são complicações graves frequentemente relacionadas aos quadros de cirrose. Quanto sua classificação fisiopatológica, podemos dividi-la em episódica, sendo relativa aos episódios agudos; persistente, quando relacionadas a um estado crônico; ou mínima, também denominada subclínica, que ocorre de maneira menos intensa e possui boa progressão clínica. A do tipo A quando relacionada a insuficiência hepática aguda; B quando associada ao by-pass porto-sistémico na ausência de doença hepática intrínseca, ou tipo C, associado a cirrose (16, 17).

                As principais causas dessas encefalopatias, como já citadas anteriormente, estão relacionadas ao estado de inflamação e degeneração tecidual, como nas hepatites virais e cirrose, impedindo o bom funcionamento do órgão. Mesmo sendo doenças passíveis de controle em ambiente hospitalar, a recorrência dessas manifestações faz com que o risco de dano ao tecido encefálico aumente à medida que não há a estabilidade da hepatopatia (13).

                Clinicamente, a encefalopatia hepática é caracterizada pela presença de distúrbios nas funções cerebrais, tais como hiper reflexibilidade, hipertonia, convulsões, alterações encefalográficas inespecíficas, alterações de personalidade, no estado de consciência, das capacidades motoras e do ciclo de sono e vigília, desorientação no espaço tempo, coma e óbito. Mesmo as alterações morfológicas não sendo as mudanças mais presentes no tecido encefálico, podem ocorrer a formação de edemas pela maior concentração de amônia e desregulação do metabolismo do glutamato neste tecido (3, 6).

                A nível de exame clínico, pode-se citar a presença de sinais tais como incapacidade de manter braços e mãos parados em abdução, sinal de Babinski positivo, hipertonia e hiperreflexia, decorrentes de disfunção extrapiramidal. Em análise por meio da eletrofisiologia, nota-se alterações clássicas não especificas, como ondas trifásicas de alta amplitude e baixa frequência em eletroencefalograma, que desaparecem em estado comatoso, representando um mal prognóstico. Exames de imagem demonstram que alterações físicas são as menos comuns, quando presentes se relacionam aos edemas (2, 3, 7).

 

Transtornos mentais orgânicos

Os transtornos mentais orgânicos são caracterizados por serem decorrentes de disfunções metabólicas, principalmente relacionadas ao fígado, uma vez que este é responsável pela metabolização de diversos compostos no organismo. O cadastro internacional de doenças (CID), editado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e atualizado pela última vez em 2018, classifica os transtornos mentais orgânicos de F00 à F09. Foram levados em consideração os principais transtornos orgânicos relacionados a pacientes hepatopatas que desenvolvem encefalopatias por intoxicação de metabolitos hepáticos, em especial a amônia. (6, 7, 18).

F 04, denominada “Síndrome amnésica orgânica não induzida pelo álcool ou por outras substâncias psicoativas”, pode ser descrita como comprometimento das memórias recente e remota, com preservação da memória imediata e da capacidade de aprendizagem.

F 05, “Delirium não induzido pelo álcool ou por outras substâncias psicoativas”, se refere a síndrome cerebral orgânica sem etiologia específica, caracterizando-se pela presença de perturbações da consciência, da atenção, da percepção, do pensamento, da memória, do comportamento psicomotor, das emoções e do ritmo sono-vigília.

F 06, “Outros transtornos mentais devidos à lesão e disfunção cerebral e a doença física”, faz referência a um transtorno cerebral devido a doença sistêmica que acomete secundariamente o cérebro.

F 07, “Transtornos de personalidade e do comportamento devidos à doença, a lesão e a disfunção cerebral”. Diz respeito aos transtornos orgânicos da personalidade e ao transtorno efetivo orgânico do hemisfério direito do cérebro.

F 09, “Transtorno mental orgânico ou sintomático não especificado”, determinado pela presença da psicose orgânica e sintomática de natureza sistêmica.

 

Conclusão:

Dentre os impactos que as encefalopatias hepáticas trazem ao cérebro, os transtornos orgânicos são as morbidades mais frequentemente analisadas na psiquiatria. Mesmo que presentes na minoria dos casos, representam um alto risco ao paciente hepatopata, sendo de fundamental importância ao tratamento do paciente, evita-las. Sob essa perspectiva, torna-se necessários maiores estudos relativos aos impactos sistêmicos dos transtornos hepáticos, tomando como princípio a toxicidade da amônia e sua interação com os canais de potássio do sistema nervoso.

Referências:

  1. Esther A. Davidson. PSYCHIATRIC ASPECTS OF LIVER DISEASE. Boston: From the Department of Medicine, Postgraduate Medical School of London, Harvard Medical School and the Boston. Boston, Massachusetts, 1956.
  2. Schinoni M. Hepatic Phisiology. Salvador, BA, Brazil: Faculdade de Medicina da Bahia da UFBA, 2006.
  3. Eelco FM. Hepatic Encephalopathy. England: New England Journal of Medicine, 2016.
  4. Almeida, Osvaldo. Mini exame do estado mental e o diagnóstico de demência no Brasil. Arq. Neuro-Psiquiatr., São Paulo. 1998.
  5. Guyton & Hall. Tratado de fisiologia medica. 11ª edição. Mississippi: Editora Saunders Elsevier, 2006.
  6. Devlin, Thomas M. Manual de Bioquímica Com Correlações Clínicas. Editora Blucher, 7ª Ed. 2011.
  7. Kumar, Abbas, Fausto, Mitchell. Robbins Patologia Básica. Editora Saunders Elsevier. 2008.
  8. I. B. Gonçalves, Lisa. Alcoolismo e Cirrose Hepática. Portugal, Covilhã: Universidade da Beira Interior. 2009.
  9. Bichuetti D. B., Bulle Oliveira A. S. Neurologic manifestations of viral hepatites. Revista Neurociências. Volume 13, 2005.
  10. Martinelli A. L.C., Carneiro M. V., Lescano M. A. L., Souza F. F., Teixeira A. C. Acute Complications Of Chronic Liver Diseases. Departamento de Clínica Médica. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto -USP. Ribeirão Preto, SP. 2003
  11. Oliveira Santos I., Gomes Bezerra A. R., Wilton da Silva J., Vilarins de Souz C., Xavier Ferreira C. M, Pereira Melo A. M. Fisiopatologia Da Encefalopatia Hepática. Centro Universitario Tiradentes. Alagoas, AL, Brasil. 2017.
  12. Faint Victoria. The pathophysiology of hepatic encephalopathy. British Association of critical care Nurses, Nursing in Critical care. England. 2006.
  13. Arruda Massinha P. S. Encefalopatia Hepática Porto-Sistémica. Faculdade De Medicina Da Universidade De Coimbra, Coimbra. 2010.
  14. Cintra do Prado F., Almeida Raimos J., Valle J. R. Atualização Terapêutica. Editora Artes Medicas. São Paulo – SP. 2003.
  15. Görg Boris. Ammonia induces RNA oxidation in cultured astrocytes and brain. Hepatology. Alemanha. 2008.
  16. Romero-Gomez M. Role of phosphate-activated glutaminase in the pathogenesis of hepatic encephalopathy. Metab Brain Dis. 2005. página da web: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16382342/. Acessado em 21/08/2020.
  17. Damiani D., Laudanna N., Barril C., Sanches R. Encephalopathies: etiology, pathophysiology, and clinical management of some major forms of disease presentation. São Paulo, SP. Hospital do Servidor Público Estadual (HSPE). 2013.
  18. Araújo Pereira A., Transtornos mentais orgânicos X Transtornos mentais funcionais: aspectos semiológicos e evolutivos relacionados ao diagnóstico diferencial. Faculdade de Ciências Médicas – UNIFENAS. Belo Horizonte – MG.

* Graduando do 5º período de medicina – Universidade de Taubaté

** – Professsora coordenadora da disciplina de psiquiatria, psicologia médica e psicopatologia da UNITAU

 

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