Leonardo Gazzi Costa

 

O escritor e filósofo Michel Houellebecq nos ensina que “…só a literatura pode dar essa sensação de contato com outro espírito humano[…]. Só a literatura permite entrar em contato com o espírito de um morto, da maneira mais direta, mais completa e até mais profunda do que a conversa com um amigo.”1 David Foster Wallace se enforcou em sua casa em Pomona, Califórnia no dia 12 de setembro de 2008. Vencedor do prêmio Salon Book e finalista do prêmio Pulitzer é reconhecido como o escritor mais importante e influente de sua geração2.  O escritor através das 1079 páginas  de sua obra prima Graça Infinita (1996) nos aproxima do usuário de droga de maneira a tornar o contato uma experiência empática vivaz. Há uma amplificação quase microscópica e obsessivamente descrita da mente do usuário criando uma  atmosfera que beira a vivência real do ocorrido. O  ensaio que segue busca, por meio das palavras de Wallace, levantar questões sobre o conceito de identificação e expor as vicissitudes da toxicomania uma patologia tão inclinada a apresentar uma ausência de linguagem, expressão e subjetividade. Pelos olhos do personagem Don Gately participamos do AA de Boston onde conceitos como narcisismo, negação e identificação ganham permissão para se mostrar não apenas como saber, mas também como sabor:

“Gately está sentado bem na frente na primeira fila, tão perto do púlpito que consegue ver a lasquinha “de alfaiate” nos incisivos descomunais do presidente, mas ele gosta de se torcer e ficar vendo todo mundo chegar e andar por ali sacudindo água de cima da roupa, tentando achar um lugar vago.  O coroquinha com roupa de faroeste conclui sua exortação inicial, pede o primeiro Momento de Silêncio, lê o Preâmbulo do AA, saca um nome aleatório do chapelão que está segurando, exagera no esforço de apertar os olhos para ler, diz que gostaria de chamar o primeiro orador aleatório do Básico Avançado desta noite e pergunta se o seu camarada de Grupo John L. está no salão, aqui, hoje. John L. levanta para ir ao púlpito e diz: “Está aí uma pergunta que antes eu não conseguia responder”. O que recebe risos, e a postura de todo mundo fica sutilmente mais relaxada, porque está claro que John L. já tem algum tempo de sobriedade e não vai ser um desses oradores do AA tão assolados por um nervosismo autoconsciente que acabam deixando a empática plateia nervosa também. Todo mundo na plateia está buscando total empatia com o orador; assim eles vão poder receber a mensagem AA que ele veio transmitir. Empatia, no AA de Boston, é chamada de Identificação. Aí John L. diz o seu primeiro nome e o que ele é, e todo mundo diz oi. Os conselheiros dos residentes da Casa sugerem que eles sentem bem na frente do salão onde possam ver os poros do nariz do orador e tentar se Identificar em vez de Comparar. De novo, Identificação significa empatia. Identificar-se, a não ser que você esteja decidido a se Comparar, não é uma coisa muito difícil, aqui. Porque se você senta bem na frente e presta bastante atenção, todas as estórias de declínio, queda e rendição dos oradores são essencialmente iguais, e iguais à sua: prazer com a Substância, aí muito gradualmente menos prazer, aí um prazer significativamente menor por causa dos pequenos apagões em que você de repente acorda no meio da estrada andando a 145 km/h acompanhado de pessoas que não conhece, noites em que você acorda numa roupa de cama estranha ao lado de alguém que nem se assemelha a qualquer espécie conhecida de mamífero, apagões de três dias de que você sai e precisa  comprar um jornal até para saber em que dia está; sim aos poucos um prazer cada vez menor mas com certa necessidade física da Substância agora, em vez do antigo prazer voluntário; aí num dado momento de repente simplesmente pouquíssimo prazer, combinado com uma terrível necessidade cotidiana que te põe as mãos tremendo, aí o pavor, a angústia, fobias irracionais, vagas lembranças de prazer que parecem sirenes, problemas com vários tipos de autoridades, dores de cabeça de agarrar os joelhos, leves convulsões e a litania do que o AA de Boston chama de Perdas..

“Aí um belo dia eu perdi o emprego por causa da bebida.” John L., de Concord, tem uma pança imensa e pênsil, e praticamente nenhuma bunda, do jeito que a bunda de uns velhões mais altos parece chupada pra dentro do corpo e reaparecer na frente como pança. Gately, na sobriedade, faz abdominais toda noite com medo de que isso de repente aconteça com ele, à medida que os trinta anos se aproximam. John L. tem o maior molho de chaves que Gately já viu na vida. Elas ficam num desses chaveiros destacáveis de zelador que se prendem a uma presilha da calça, e o orador sacode as chaves distraído, sem perceber, seu único piparote de chapéu para o nervosismo em público. Ele também está usando calça cinza de zelador. “Perdi a porra do emprego”, ele diz. “Quer dizer, eu ainda sabia onde o emprego estava e coisa e tal. Eu simplesmente cheguei um dia que nem todo dia e tinha outro cara no meu emprego”, o que ganha mais risos. […]

“Quando eu estava bêbado eu queria ficar sóbrio e quando eu estava sóbrio eu queria  ficar bêbado”, John L. diz; “Eu vivi desse jeito durante anos, e eu digo a vocês que isso não é vida, isso é uma porra de uma morte-em-vida.” — aí uma dor psíquica inacreditável, uma espécie de peritonite da alma, agonia psíquica, medo da insanidade iminente (por que é que eu não consigo largar se eu quero tanto largar, a não ser que eu seja louco?), episódios de desintoxicações e reabilitações hospitalares, brigas em casa, decadência total das finanças, Perdas domésticas finais –

“Aí eu perdi a minha mulher por causa da bebida. Quer dizer, eu ainda sabia onde ela estava e coisa e tal. Eu só cheguei lá um dia e tinha outro cara na minha mulher”, o que não ganha tanta risada assim, mas muitos gestos doloridos de aquiescência: muitas vezes é a mesma coisa com todo mundo, em termos de Perdas domésticas. [..]

“Uma porra de uma morte-em-vida, meu, aquilo nem parece vida mesmo, no fim eu estava um morto-vivo, e não um cara vivo de verdade, e eu digo pra vocês aqui que a ideia de morrer nem se comparava à ideia de viver daquele jeito por mais cinco ou dez anos e morrer só depois”, com cabeças na plateia que concordam alinhadas como um campo varrido pelo vento; rapaz, e como eles conseguem se Identificar. [..] Você não é único, eles vão dizer: essa falta inicial de esperança une cada alma aqui nesta ampla sala fria com um bufê de saladas. Eles são tipo sobreviventes do Hindenburg. Cada reunião é um reencontro, depois que você já passou algum tempo aqui.  [..]

Outro orador do Grupo Básico Avançado, cujo primeiro nome Gately perde no grande Oi da plateia mas cuja inicial final é E., um sujeito ainda maior que John L., um irlandês com green-card, de bonezinho e suéter do Sinn Fein, com uma barriga que parecia  um saco balouçante de farinha e uma bunda plenamente visível para equilibrar as coisas, está dividindo a experiência da sua esperança listando as dádivas que se seguiram à sua decisão de Entrar, meter a rolha no jarro e deixar a tampinha no frasco de cloridrato de fentermina, parar de fazer longas rotas de caminhão por estados ininterruptos de noventa e seis horas de pé na tábua e psicose química. As compensações pela sua abstinência, ele enfatiza, foram mais do que só espirituais. Só no AA de Boston é que você ouve um imigrante de cinquenta anos falar comovido da sua primeira evacuação sólida na vida adulta. “Ó queu era dispirrá purtudo na privada tinha década. Eu tarra pruibido dintrá imbanhero diposto daqui té em noviorque tinha anos. O papel diparede dutoelete lá dicasa tarra quitarra caíno assim meinroscado da parede, sacumé. Maisaí um dia… eu nunca queu vô misquecê. Foi uma semana izatinha dipois deu vim recebê a minha fichinha dinoventadia. Eu tarra trêis mêis sóbrio. Tarra lá nutronincasa, sacumé. Senhintrá em mais grandes detalhes, eu pruduzi quinem dissempre e… e eu fiquei tão chocado quera dinão criditá nusuvido. Era um baruio tão discunhicido assinquidicara eu achei quitinha era dirrubado a cartêra na privada, sacumé. Eu achei queu tinha era dirrubado a cartêra na privada juro pela minha mãe mortinha. Intão não é queu midobro numeio dujuelho e dô umolhadinha nuiscuro da privada, e não miacredito numeusolho. Aí minha gentiboa eu caio dijuelho duladaprivada e dô umolhada diverdade.  Cum amor mesmo, sacumé. E meusamigo tarra além daminhas força dizê diverdade. Eruncocô na privada. Uncocô diverdade. Era firme ipuntudinho e só untantinhassim dobradulado. Aquilo paricia… cunstruído invêis dispirrado. Era a cara queu sintia nufundumeupeito qui Deus quiria quiuscocô tivesse. Meusamigo, esse meu cocô praticamente tinha coração. Eu fiquei ali dijuelho e gradici umeu Pudê Supiriô, queu prifiro chamá umeu Pudê Supiriô de Deus, e eu tô agradecendo meu Pudê Supiriô dijuelho deisdessedia, dimanhã e dinoite e naprivadatomém, deisdesse dia.” O rosto de couro vermelho do homem reluz durante toda a estória. Gately e os outros Bandeiras Brancas caem de costas, riem de se dobrar, um cocô que praticamente tinha coração, uma ode à bosta firme; mas os olhos foscos de certos recém-chegados encarquilhados das últimas fileiras se abrem numa Identificação muito particular e numa possível esperança, mal ousando imaginar… Uma certa Mensagem tinha sido Transmitida.  […]

[…] talvez a melhor oradora desta noite do Básico Avançado, outra novata, uma menina redondinha e cor-de-rosa totalmente sem cílios e com os dentes podres de uma viciada em freebase, sobe lá e fala com um sotacão sem r do sul de Boston sobre ter se visto grávida com vinte e fumar pedras de cocaína freebase que nem uma alucinada durante toda a gravidez mesmo sabendo que fazia   mal para a criança e querendo desesperadamente largar. Ela conta que a sua bolsa rompeu e as contrações começaram tarde da noite no quarto de um abrigo estatal quando ela estava bem no meio de uma pedra que tinha passado a noite fazendo coisas incrivelmente sórdidas e degradantes para poder comprar; ela fazia o que tinha que fazer para se chapar, ela diz, mesmo grávida, ela diz; e diz que nem quando a dor das contrações ficou insuportavelmente forte ela conseguiu abandonar o cachimbo de freebase para ir dar à luz na clínica gratuita, e que ficou sentada no chão do quarto do abrigo estatal e fumou durante todo o trabalho de parto  e que ela tinha acabado parindo um bebê natimorto bem ali sozinha deitada de lado que nem uma vaca no tapete do seu quarto, durante o tempo todo sem parar ainda enchendo compulsivamente o cachimbo de vidro e fumando; e que o bebê emergiu todo seco e duro que nem um cocozinho constipado, sem nenhuma umidade de proteção e sem nenhum material pós-parto vir atrás dele, e que o bebê emerso era minúsculo, seco, todo murcho, da cor de um chá bem forte, e morto, e também não tinha rosto, não tinha desenvolvido in utero nem olhos nem narinas e só um hinfenzinho desbeiçado de uma boca […] a boca da oradora é um arco espasmódico de sofrimento; a menina finalmente apagou, ainda umbilicalmente ligada ao bebê morto; e que quando ela recobrou a consciência novamente à impiedosa luz do meio-dia do dia seguinte e viu o que ainda pendia por um cordão murcho das suas entranhas vazias ela conheceu pessoalmente o lado bem pontudo de uma flecha de responsabilidade, e que enquanto olhava pasmada à luz do dia para o bebê natimorto murcho e sem rosto ela sentiu uma dor e um ódio tão grande de si própria que erigiu uma fortaleza de completa e negra Negação, tipo Negação total. Ela segurou a coisa morta e a enrolou exatamente como se estivesse viva em vez de morta, e começou a carregar a coisa com ela aonde quer que fosse, exatamente como imaginava que as mães devotadas carregavam os seus bebês com elas aonde quer que fossem, com o cadáver sem rosto do bebê completamente velado e oculto por um cobertorzinho cor-de-rosa que a prenhe mãe viciada   tinha se permitido comprar nos sete meses […] isso é que é Negação, essa garota estava numa Negação coisa-seríssima; […] ela e seu bebê foram apreendidos e o conteúdo do cobertor foi mais ou menos recomposto e enterrado num caixão que a oradora lembra ser do tamanho de um estojinho de maquiagem Mary Kay, e a oradora foi medicamente informada por alguém com uma prancheta que o bebê tinha sido involuntariamente toxificado até a morte em algum ponto do seu desenvolvimento para virar um menininho; e a mãe,   depois de uma dolorosa curetagem por causa da placenta presa que vinha carregando nas entranhas, passou então os próximos quatro meses na ala fechada do Metropolitan State Hospital de Waltham, MA, psicótica com culpa ligada à Negação e abstinência de cocaína e um dilacerante ódio de si própria; e que quando ela finalmente recebeu alta do Met State com o seu primeiro cheque do seguro de invalidez mental ela […] bebeu e bebeu e acreditou do fundo do coração que nunca ia parar ou engolir a verdade, mas finalmente ela chegou aonde tinha que chegar, ela diz, a engolir, a verdade responsável; […] e aí então olha ela aqui, pedindo desculpas por ter falado tanto, tentando falar de uma verdade que ela espera um dia engolir por dentro. Para poder só tentar viver. Quando ela conclui pedindo que eles rezem por ela aquilo quase não parece jacu. Gately tenta não pensar. Aqui não há Causas nem Desculpas. É simplesmente o que aconteceu. A oradora final é verdadeiramente nova, pronta: todas as defesas foram incineradas. De pele lisinha e cada vez mais cor-de-rosa, no púlpito, com os olhos bem apertados, parece que ela é que é o bebê.”4

A narrativa trazida por mim aqui buscou transmitir essa experiência de identificação entre os frequentadores do AA e levantar questões sobre este processo de mudança psíquica. No AA de Wallace o membro é solicitado repetidamente a despertar para sua história e a transformá-la em uma narrativa significativa, a ouvir as histórias dos outros e a identificar-se com elas. Há uma ênfase na escolha individual e numa diminuição da própria vontade em prol não de um poder totalitário, mas sim em prol dos outros membros e dos 12 passos do programa3. Seguindo esta ideia, acrescento que Freud nos traz a hipótese de que o amor/libido é um dos responsáveis pela força das ligações que unem os grupos. Segundo ele “as relações de amor constituem também a essência da alma coletiva. [..] evidentemente a massa se mantém unida graças a um poder. Mas a que poder deveríamos atribuir esse feito senão a Eros, que mantém unido tudo que há no mundo? [..] se o indivíduo abandona sua peculiaridade na massa e permite que os outros o sugestionem, que ele o faz porque existe nele uma necessidade de estar de acordo e não em oposição a eles, talvez, então, “por amor a eles”5. Voltando a narrativa, os usuários do fundo do salão estão tomados por camadas belicosas de tentativas de afastamento do afeto e por anulações da linguagem e da comunicação com seu próprio mundo interior. Com isso, se processa um represamento libidinal e uma perda do vínculo empático o que é capaz de trazer uma toxicidade e um consequente impedimento dos processos de identificação6. Em contra partida a este represamento libidinal, a mulher no púlpito é dita como “o próprio bebe”. Indefesa. Verdadeira. A incineração das defesas (isto é, o rebaixamento do narcisismo) e a transmissão da mensagem AA (isto é, a identificação) são expressões cirúrgicas de Wallace para o início da reconstituição da organização da vida anímica do usuário. Neste processo  se iniciam os primórdios da subjetividade,  o desvelamento dos afetos e o começo dos investimentos que possibilitam uma identificação. Sendo assim, podemos dizer que a realidade se abre para a possibilidade. Possibilidade do pensar e sua função de examinar, verificar e transformar as  fantasias onipotentes e as crenças em pensamento7. Com isso, obter uma liberdade e seu ato máximo o da invenção. Invenção do subjetivo capaz de criar ligações empáticas e intersubjetivas. Ao se expor e ao discursar no púlpito frente a frente com os ouvintes, os oradores e a mulher/bebê proporcionam uma forma especial de comunicação: uma forma afetiva que gera uma tentativa de recuperação do processo de subjetivação do sujeito. Um sujeito que tenta existir não mais como “a porra de uma morte em vida” (isto é, a falsa autonomia das dependências químicas), mas como aquele que passa então a emergir de litros de álcool e a enfrentar seus conflitos, suas faltas e afinal,  sua incompletude que também o constitui. Enfrentar, por assim dizer, as barras de ferro de sua própria liberdade para existir e, portanto, conduzir-se e inventar-se neste mundo que é simplesmente  humano.

 

Referências:

  1. Houellebecq, Michel. (2015). Submissão. 10 edição – Rio de Janeiro: Objetiva.
  2. Boswell, Marshall (2019). The Wallace Effect (David Foster Wallace Studies) . Bloomsbury Publishing. Edição do Kindle. Posição 150.
  3. Hirt, Stefan. (2019). The Iron Bars of Freedom. David Foster Wallace and the Postmodern Self. Ibidem – Verlag Stuttgart
  4. Wallace, David Foster (2014). Graça Infinita; 10 edição – São Paulo –  Companhia das Letras. Página 353 -385
  5. Freud, Sigmund (1920-1923). Psicologia das Massas e Análise do eu e outros textos. Obras completas volume 15. Ebook. Posição 415.
  6. Maldavsky, D. (1992) Teoria y clínica de los processos tóxicos. Buenos Aires. Amorrortu
  7. Segal, H. (1983). A Obra de Hanna. Psicanálise e liberdade de pensamento. Imago
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