Fernando Portela Câmara
Psiquiatra

As culturas ditas “primitivas” têm seus próprios métodos para abordar e lidar com os transtornos mentais e do comportamento. Estes métodos permanecem na cultura popular e folclore, formando o núcleo das camadas seitas animistas ou “espiritistas”. Nestas seitas ou “centros”, tal cultura assume um valor assistencial e psicossocial inquestionável, não apenas nas chamadas “camadas populares”, como também nas camadas economicamente superiores. Organizadas no seio do povo, estas seitas desempenham uma função assistencial imensa, preenchendo a ausência do Estado na saúde da população, especialmente na saúde mental. Ao longo deste trabalho, usarei a expressão seita espiritista em lugar de seita animista, pois, no Brasil o primeiro termo é melhor conhecido e aceito, enquanto o segundo, de origem européia, é visto por alguns como racista. Também não discutirei aqui espiritualismo sob o ponto de vista psiquiátrico ou psicodinâmico, respeitando a crença dos leitores, sendo meu objetivo aqui apenas discutir os efeitos terapêuticos e destas práticas, que encontra em nosso país milhões de seguidores.

O saber psiquiátrico, como todo o saber médico em geral, é hoje essencialmente um saber acadêmico de origem européia, com paradigmas espelhados no inevitável racismo científico eurocêntrico e mentalidade colonialista. Esta atitude influi de modo sutil, porém intenso, nos modelos médicos assistenciais e nos modelos aplicados à saúde mental (Chakraborty, 1991; Sashidharan, 1986). A pressão econômica que a aculturação deste saber sobre os países do Terceiro Mundo impacta o modelo de saúde mental adotado, encarecendo-o consideravelmente nas proporção em que ele se afasta radicalmente da cultura popular (Loyola, 1984). O resultado é uma oposição de dois paradigmas: o modelo psi de um saber dominante (eurocêntrico) cultural, social e economicamente imposto, e o modelo psi de um saber que ainda resiste em nossa cultura popular, e se refugia no seio das comunidades em organizações conhecidas como “centros” e “terreiros”.

Costumo dividir as seitas espiritistas brasileiras em (1) espiritismo Kardecista, ou espiritismo “branco”, de “mesa” ou “científico”, de origem européia porém aclimatado à cultura brasileira, onde sincretizou-se absorvendo influências católicas e afro-brasileiras (Procópio, 1961); e (2) as seitas de origem africana, como a Umbanda (a mais sincrética, ocorrendo em todo o país), o Candomblé (a mais tradicional), a Quimbanda (centro e sul), o Xangô e o Catimbó (Nordeste), o Batuque (Sul), e outras mais regionais, bem como as de origem ameríndia, como a Pagelança e o Paricá (Cascudo, 1980).

O elemento central a todas estas seitas é o fenômeno de transe e possessão, o instrumento comum que permite aos adeptos “falarem” diretamente com entidades espirituais de pessoas já mortas (Kardecismo) ou com espíritos tutelares da natureza (os Orixás, identificados também aos santos da Igreja católica), “entidades” que são intermediárias entre o médium e o mundo dos espíritos. É interessante assinalar que a Igreja Católica, religião oficial do Brasil, não reprime a participação de seus filiados nestas seitas, ao contrário das religiões protestantes e pentecostalistas, que competem economicamente com as citadas seitas, embora sejam parte da mesma cultura do transe. Na verdade, a Igreja católica não impede a participação de seus fiéis nestes cultos, desde que isto se dê em participações individuais e não em celebrações que envolvam a sociedade civil (Oliveira, 1977). Também a religião judaica no Brasil parece ser tolerante com estes cultos, aclimatando-se mais facilmente à nossa cultura popular.

Os transes rituais comumente vistos nos centros e terreiros produzem uma intensa descarga de energias afetivas patogenicamente represadas, produzindo autorregulação organísmica e bem estar biopsicossocial. Estas crises abreativas, não verbais, são aceitáveis em muitas culturas populares e detêm um inquestionável valor terapêutico. Como salientou Louis Mars (1955), é um mecanismo psicobiológico de defesa e não um estado mental patológico, mas um mecanismo destinado a integrar funcionalmente o sujeito dentro de um complexo cultural. Ele classifica esta manifestação cultural terapêutica como um “psicodrama étnico” (Mars, 1955).

Transe e possessão

Transe é um estado modificado de consciência em que esta interioriza-se, manifestando vivências habitualmente reprimidas na vigília. Estas vivências são atuadas freqüentemente – se o millieu é permissivo – como uma dramatis persona. Temos recordações, fantasias, dramas, e também personagens – defuntos ou espíritos tutelares -, “entidades” que exercem uma função reguladora no grupo social que se reúne em torno desta crença. As características psíquicas deste estado são típicas: rapport, sugestionabilidade aumentada, estereotipias, literalismo, exibicionismo ou teatralismo, etc. Não há relação entre transe e transtorno de personalidade, especialmente com o transtorno de personalidade histriônica (Spiegel, 1972, 1974; Spiegel et al., 1982). Também temos fenômenos somáticos associados, tais como analgesias, automatismos, etc, que parece indicar a participação de estruturas subcorticais. O transe pode ser induzido artificialmente ou espontaneamente, e é de natureza reversível, havendo pessoas com maior facilidade para este estado, o qual pode, inclusive, ser facilitado e controlado pelo treinamento (Spiegel, 1974; Câmara, 1996). O transe pode se manifestar meramente como inibição de consciência com vivências de bem estar ou de conteúdos intrapsíquicos, ou pode vir acompanhado de manifestação de personalidades estereotipadas (ou “estados segundo”, na terminologia de Azam, ). Neste último caso temos o estado caracterizado como “transe e possessão”, a categoria de transe sobre a qual se organizam as seitas espiritistas em qualquer parte do mundo.

Nos grupos onde este fenômeno é culturalmente aceito, transe e possessão podem manifestar-se durante um choque emocional, conflitos conjugais ou familiares, exposição à miséria e violência, como uma forma de lidar com tais situações. Neste caso, o transe exerce um papel regulador, permitindo a descarga das energias emocionais patogênicas socialmente inadequadas. Tais manifestações são culturalmente aceitáveis somente se limitadas à estes contextos, e fora deles são energicamente reprimidas pelo grupo, mostrando como a comunidade dá importância ao seu papel terapêutico ou regulador. Nas festas tradicionais como o carnaval, as celebrações da sexta-feira da paixão, etc, e nos espetáculos coletivos, o transe torna-se um regulador psicobiossocial. Nas seitas espiritistas, este processo é desempenhado pelos ritos conduzidos pelos médiuns. Estes são indivíduos treinados (ou “desenvolvidos”) pela seita após terem tido seus sintomas psicossociais controlados através da prática disciplinada e regular do transe. De fato, quando médiuns são privados de seus transes regulares, por uma censura imposta pelo meio ou por estarem fora do seu millieu, eles freqüentemente desenvolvem sintomas que apresentavam antes de terem sido treinados. São estas as “doenças espirituais” habitualmente tratadas nos centros e terreiros através da dessensibilização pela prática regular e supervisionada do transe, até o indivíduo aprender a controlá-lo. Tais doentes nervosos são tidos como “médiuns naturais” que, por não terem desenvolvido o seu “dom”, sofrem por reprimirem a manifestação de “espíritos” que canalizam até serem submetidos à sessões de “desenvolvimento da mediunidade”, que é o aprendizado do controle do transe em sessões regulares de efeito dessensibilizador e educativo.

Este papel de regulação biopsicossocial em nossa cultura faz com que síndromes tais como personalidade múltipla (transtorno dissociativo da identidade), e correlatos, existam em outras culturas como transtornos de significativa prevalência, mas não entre nós. Nos EUA, o alheamento do aspecto sociocultural desta forma de manifestação impedindo o seu benefício abreativo, acabou por incentivar o síndrome da personalidade múltipla, porquanto tais indivíduos são impedidos pela censura social de dar curso livre à sua abreação. Curiosamente, nesse país, onde os cultos pentecostalistas proliferam nas regiões rurais, o problema da personalidade múltipla passa a ser regulado neste millieu, através dos exorcismos e transes cinéticos (danças e estereotipias motoras) conduzidos por aqueles cultos. A desconexão da sociedade americana urbana com o seu passado e tradições rurais onde a cultura do transe é preservada nos cultos Gospel e revivalistas, foi talvez a principal responsável pela epidemia de personalidades múltiplas vividas naquela sociedade.

A formação dos médiuns. Transeterapia

O médium é a figura central nas seitas espiritistas, exercendo um poder espiritual na sua comunidade, ajudando as pessoas com seus conselhos e magias, e promovendo a solidariedade através das práticas de caridade. Os médiuns são geralmente pessoas humildes que foram curadas de algum mal nervoso (simbolizado como uma possessão decontrolada) por outros médiuns, e por meio desta cura são convertidos ao credo da seita espiritista que o acolheu. Isto é um processo de iniciação, e não é diferente da iniciação dos antigos mistérios, onde o indivíduo é submetido à uma terapia espiritista conclui com um processo de conversão religiosa. Talvez isto não seja muito diferente do que ocorre em uma análise didática.

Os indivíduos procuram uma seita por necessidade ou por pressão de sua própria cultura. Muitos são padecentes nervosos que encontraram em um centro de sua comunidade alívio e cura para os seus males, após bater de porta em porta nos labirintos da medicina oficial, um modelo importado tradicionalmente desconectado da cultura e do imaginário popular (Loyola, 1984). A formação de um médium começa pela seleção dos padecentes nervosos identificados como “médiuns não desenvolvidos”. Os que não se adequam à este diagnóstico espiritual são enviados aos médicos e psicólogos que via de regra trabalham para o centro. Um médium reconhece a outro médium, e o distúrbio do padecente é tido como uma resistência à livre expressão da mediunidade, portanto, o tratamento será o “desenvolvimento da mediunidade” (ou, nas seitas afro-brasileiras, “vestir o santo”, “fazer a cabeça”, etc), que consiste em fazer o padecente manifestar seu transe em dias e horários fixos, as “sessões de desenvolvimento”. Este processo de sessões repetição e disciplinadas é o único meio para levar o indivíduo a aprender a controlar seus transes, cujo desconhecimento e sintomas levam ao medo, ansiedade e somatizações variadas, de natureza quase sempre dissociativas, infelizmente pouco percebidas pela maioria dos nossos psiquiatras, formados numa cultura distanciada do popular e do folclórico, e que em sua práxis freqüentemente a reprime.

O processo misto de terapia e iniciação conhecido como “desenvolvimento da mediunidade” consiste em disciplinar os transes descontrolados do indivíduo, promovendo repetidas abreações não-verbais, por vias psicomotora e vegetativa, até a sua completa dessensibilização. Daí emerge uma personalidade equilibrada, tranqüila, livre de seus padeceres neuróticos, e que se mantém sua homeostase nervosa através dos transes regulares no centro ou terreiro, geralmente associados a trabalhos de cura e assistência à comunidade que busca auxílio espiritual e psicológico em tais lugares. O médium agora ganha importância em seu meio, aprende a entrar e sair de um transe, controlando agora o que antes se manifestava de forma desordenada e descontrolada, causando-lhe medo, dissociação, mal-estar e sofrimento. O médium que se especializa em transe e possessão passará a ser veículo (ou “aparelho”, ou “cavalo”) de uma entidade tutelar da seita, que pode ser o espírito de um morto ilustre ou um orixá, que através dele “disponibiliza conhecimentos do mundo espiritual” para aconselhar, prever, diagnosticar, tratar e tudo mais.

As seitas espiritistas desempenham funções sociais como parte da sua razão de existir, sendo suas finalidades primárias a promoção da cura e da caridade. Os médiuns canalizam a cura e as mensagens das entidades para a comunidade, desempenhando o papel do terapeuta no sentido em que esta palavra era usada na Grécia e Roma antigas. Este tradição se continua ininterruptamente desde a alta antiguidade até os dias atuais, sem ser muito diferente que fora outrora nos templos de Asclépio, que surgiram em Epidauro, sul de Corinto, no século V A.C., e proliferaram não apenas em toda a Grécia (séc. IV A.C.), mas também em Roma (séc. III A. C., com o nome romanizado de Esculápio), no Egito (com o nome de Imhotep), Fenícia (com o nome de Esmoun), Cartago, etc. Estes médiuns de cura logram muitas vezes mais êxitos com o seus dogmatismos e tabus do que os psicoterapeutas oficiais, reticentes em suas afirmações e atitudes e, particularmente, sem os proclamados “poderes espirituais”.

Nestas seitas também se desenrola paralelamente uma importante atividade formada pelas confissões, obrigações com as entidades, os descarregos, os despachos, as caridades e demais tarefas que promovem também a descarga das energias nervosas tensionais reduzindo o caudal de ansiedade e ainda favorecendo os insights. Os ritos, cultos e obrigações têm a função de restabelecer a tranqüilidade e o equilíbrio do indivíduo, restituindo sua funcionalidade dentro do seu grupo social e sua família, portanto, cooperam para a homeostase biopsicossocial. É também importante notar que ideologia de não violência e ajuda ao próximo são dogmáticos nestas seitas.

O processo de “desenvolvimento da mediunidade” é uma autêntica transeterapia, ou seja, a repetição assistida e controlada do transe, objetivando obter uma dessensibilização progressiva através ab-reação não verbal, psicomotora e vegetativa, promovendo a cura de distúrbios que em sua natureza são dinamicamente psicogênicos. Os transes são inicialmente agitados e violentos, com intensa descarga vegetativa, depois vão se acalmando com a repetição das sessões, superficializando-se à medida que a dessensibilização progride, até o padecente não mais sentir necessidade deles, ocasião em que o transtorno desaparece. Quando o médium está desenvolvido, seus transes passam a ser ritualísticos, com função psicodramática, servindo à abreação do grupo ou então, como mais comumente ocorre, o médium abreage pelo grupo. Lévi-Strauss (1949) tinha observado este mecanismo em culturas indígenas e notou que seu valor terapêutico é de mesma ordem que a abreação do paciente. Note-se que a abreação, seja por qual via for, embora proscrita da psicanálise, tem seu valor de cura quando o contexto cultural em que se manifesta é permissivo e incentivador.

Transe e adoecer

O transe é uma capacidade natural do indivíduo normal que em certas pessoas apresenta-se de forma exagerada e descontrolada (Câmara, 1998, 2001). São estas pessoas freqüentemente classificados como portadoras de transtornos dissociativos e seus correlatos, as fobias, o transtorno de despersonalização-desrealização, o transtorno de estresse pós-traumático, o bouffée delirante, e outras condições outrora classificadas como histerismo (Câmara, 1998). No contexto popular, essas pessoas são conhecidas como “médiuns não desenvolvidos”, “sensitivos”, etc.

A psiquiatria oficial não reconhece os sinais e sintomas do transe. O choque de linguagens entre as culturas da psiquiatria científica e do padecente proporciona um conflito entre ciência e mito, resultando freqüentemente na resistência deste último, que acabará indo a alguma dessas seitas, por pressão de sua cultura. Como já dissemos, manifestações espontâneas de transe são uma tentativa de auto-regulação psíquica, tentativa esta que muitas vezes não alcança o seu fim, senão um alívio temporário, inadaptado. Se agora este transe é conduzido controladamente na direção da dessensibilização, o indivíduo terá chance de alcançar alívio e adquirir controle sobre seu estado nervoso, promovendo-se a descarga controlada da estase límbico-hipotalâmica, talvez mantida por mecanismos repressores originados no córtex pré-frontal (Câmara, 1997). Este é o princípio da transeterapia, e é isto que também acontece nas sessões de “desenvolvimento da mediunidade” dos centros espíritas brasileiros e nas seitas afro-brasileiras. Eles alcançam um benefício terapêutico real não apenas no âmbito da individualidade, mas também no social, pois estes ritos são integradores e promovem a homeostase biopsicossocial.

O modelo assistencial da saúde mental é extremamente caro e muito se beneficiaria se os órgãos oficiais interagissem com estas seitas que, via de regra, são mantidas pelas próprias comunidades e desempenham um importante papel social. Lideres espirituais poderiam ser treinados nos rudimentos da psicoterapia para aperfeiçoarem o seu trabalho e ampliar o alcance assistencial de seus grupos. O papel regular biopsicossocial que elas desempenham é extremamente significativo, mormente nas camadas sociais menos favorecidas que tendem a crescer mais ainda dentro do atual modelo econômico brasileiro.

Inserção do transe e possessão dentro da psiquiatria cultural brasileira

A função terapêutica do transe e possessão ritual em nossa cultura foi pela primeira vez reconhecida pelo psiquiatra carioca Jacques Mongruel (1947), numa nota apresentada ao I Congresso Interamericano de Medicina, ocorrido em 1946 na cidade do Rio de Janeiro, em que estabeleceu as bases para um fenômeno cultural que denominou de “Transe Psicautônomo”, ou seja, uma manifestação psíquica espontânea de natureza autônoma.

Mongruel estudou particularmente o espiritismo Kardecista, culto extremamente disseminado em nosso país e parte integrante da cultura brasileira. Como não tinha crença espírita, ele adotou uma postura de “investigação psicológica desses comportamentos e não de explicação doutrinária igualmente respeitável” (Mongruel, 1947), e chamou a atenção da comunidade médica brasileira para as “escolas de médiuns”, uma característica deste culto. Nelas, como já dissemos, os médiuns, “em sua maioria sofredores nervosos encaminhados ao centro seja por opção pessoal, seja por fatores sociais e econômicos” (Mongruel, 1947), são submetidos a sessões de “desenvolvimento da mediunidade”. Levam-se semanas ou meses até que estes indivíduos adquirem domínio sobre os seus transes, e aqueles que aprendem a recuperar os emocionalmente desajustados são selecionados para trabalharem como médiuns no centro.

Mongruel observou um fenômeno que é a essência da transeterapia. Ele concentrou-se na observação de que o transe controlado e repetido liberava um potencial extraordinário de criatividade nos “médiuns desenvolvidos”. De fato, esta é a razão da palavra “desenvolvimento” nestes ritos, e talvez a liberação deste potencial seja o objetivo último desta terapia. Quando o indivíduo adquire controle sobre o seu transe no ambiente destas seitas, muitas vezes passa a falar com lucidez e equilíbrio, aconselhando, julgando com ponderação, etc, o que Mongruel chamou transe de “personificação verbal” (Mongruel, 1947) o que hoje denominamos de “transe e possessão”. São os “espíritos de mortos ilustres” que vêm às sessões comunicar-se com os crentes ansiosos de conselhos e ensinamentos. Também temos os passes e “fluidificação” da água (resquícios do magnetismo animal de Mesmer assimilado à cultura popular desde o final do século XVIII), assim como as operações “espirituais”.

Outra manifestação igualmente importante para a legião de crentes e seguidores destas seitas é a já mencionada “psicografia”, supostas mensagens escritas dos mortos às suas famílias, através dos médiuns, como também obras de escritores famosos também mortos, peças teatrais, poesias, doutrinas (naturalmente espiritualistas), poemas e canções. Este movimento teve no médium Chico Xavier seu maior expoente, venerado como santo por muitos. Basta dizer que os livros psicografados por médiuns constituem os verdadeiros best-sellers brasileiros, ignorados pela mídia oficial, com tiragens muito superiores a qualquer livro de autor ainda vivo. Temos também outras formas de manifestação artística como a pintura e o desenho dos supostos espíritos de pintores já falecidos, geralmente os mais conhecidos do público. Os médiuns realizam estas pinturas em transe, algumas vezes com as duas mãos, constituindo um efeito maravilhoso tido como uma prova de fé pelos crentes. Há também os médiuns compositores de letras e músicas, particularmente as curimbas, músicas cantadas nos rituais das seitas afro-brasileiras que integram o rico folclore brasileiro e também o cancioneiro popular. Estes “dons” se desenvolvem à medida que o transe vai sendo controlado e os indivíduos melhoram, tornando-se mais assertivos, mais equilibrados e, sobretudo, muito criativos. É essa a liberação de energias criativas que Mongruel (1947) considerou como sendo o elemento terapêutico deste cultos, conforme escreveu: “Chamo a atenção dos cientistas para […] as `escolas de formação de médiuns’ nas quais a experiência coletiva empírica constituiu real fase pré-científica de uma psicologia dos distúrbios da emotividade. A terapêutica consiste em educar o paciente para o uso normal da psicautonomia, e que equivale a provocar estados semelhantes aos períodos de inspiração dos artistas ou de imaginação criadora dos sábios e inventores”.

Muitas formas de transtornos psíquicos e o imenso contingente dos padecentes nervosos cada vez mais numerosos em nosso país, em especial aqueles com alta capacidade de transe do paciente, poderiam se beneficiar desta transeterapia devidamente adaptada ao tratamento psicoterápico. A conceituação deste problema como uma patologia mental e sua desconexão da cultura e do folclore, reprimindo-se ainda mais as energias criativas que permite ao homem adaptar-se às variadas condições de seu meio, poderiam ser revistas e canalizadas para um contexto cultural e social benéficos.

Nota final: teria a psicanálise nascido de uma médium?

Estados alterados de consciência que resultam de vivências de transe não controladas e causadoras de medo e ansiedade são o que outrora se denominava com muita propriedade de “estados hipnóides” (Breuer, & Freud, S. 1895). Quando tais indivíduos aprendem a controlar estes transes usando-os para despertar energias criativas, eles geralmente se curam com um ganho adicional em suas personalidades (Janet, 1925). No célebre trabalho inaugural de Breuer e Freud, a famosa paciente Anna O. foi a força que inspirou a ambos escreverem o primeiro rascunho da teoria do inconsciente na formação das neuroses. Nas descrições dos transes dessa paciente por estes autores, percebemos claramente tratar-se de um transe com possessão (desdobramentos de personalidades alternadas ou “double conscience”, atuações, etc), coisa comumente vista em nossos centros espíritas e terreiros. Anna O. estava ela mesmo em seu processo de cura, inadvertidamente conduzido pela dupla de sábios sem perceberem que, cada sessão em que o transe acontecia, estavam favorecendo a liberação de imensas energias criativas desta admirável mulher, o que culminou em uma vida social e politicamente ativa.

As energias criativas manifestadas por esta paciente em seus transes e possessões deram os elementos para a teoria do inconsciente e das neuroses, a primeira tópica. Em sua possessão, ora era um preto-velho que ensinava à dupla que a limpeza da chaminé era a base de uma nova terapia; ora era uma pomba-gira ensinando coisas como transferência. Contudo, o chauvinismo destes autores acabou por obscurecer da história o terceiro autor da psicanálise, Bertha Papenheim, oculta sob o pseudônimo de Anna O. Esta personagem, que se tornaria ativista pelos direitos das mulheres e outros benefícios na área social, veio a se tornar um ícone da assistência social. Quanto ao primeiro autor, curar-se-ia de sua histeria pela liberação de um imenso potencial criativo: a segunda versão da psicanálise.

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