A Associação de Psiquiatria Cyro Martins de Porto Alegre administra um Curso de Formação em Psiquiatria reconhecido pela Associação Brasileira de Psiquiatria. Uma das atividades bastante valorizadas pelos alunos é o Estudo de um Caso Clínico. Neste edição da Psychiatry Online Brasil vamos publicar um exemplo desta atividade. Vamos publicar o Caso apresentado pela aluna Rachel Nery que recebeu elogios de todos os presentes. A Associação é dirigida pelos doutores Cláudio Meneghello Martins e Euclides Gomes. 

 

CASO CLÍNICO

por Rachel Nery

 

IDENTIFICAÇÃO:

Paciente J.M.B, avaliado em 06/06/2018; em atendimento ambulatorial em Porto Alegre. Masculino, 18 anos (14/11/1999), solteiro, ateu, branco, natural e procedente de Porto Alegre. Filho único, pais divorciados, reside com o pai e avós paternos há 7 anos. Possui ensino médio completo e, no momento, realiza curso técnico em programação de computadores e curso preparatório para o ENEM. A renda familiar média é de dois salários mínimos. Não possui internações psiquiátricas.

QUEIXA PRINCIPAL:

“Sou tímido e acho que já deveria ter uma namorada”.

HISTÓRIA DA MOLÉSTIA ATUAL:

Paciente procurou atendimento com equipe de saúde mental referindo, em maio de 2018, episódios de “formigamento em face” e “dores de barriga” quando saia de casa, além de desconforto quando conversava com pessoas. Realizava aulas pela manhã e praticava todas as tardes natação. O desconforto ocorria em todos os ambientes.

Foi aventada a hipótese de transtorno ansioso com comportamentos evitativose iniciado escitalopram 10mg.

Recebo paciente em agosto de 2018, dando continuidade a seu atendimento na unidade, para elucidação diagnóstica e terapêutica. Percebo o mesmo cooperativo, orientado alo e autopsiquicamente, introspectivo, roupas adequadas e com combinações harmoniosas e discretas, normolíneo, higiene preservada, consciente, memória preservada, sem alterações em sensopercepção, pensamento de curso linear, hipervigil, hipotenaz, ausência de delírios ou ideias prevalentes. Postura ligeiramente inclinada para a frente, ausência de contato visual, rosto pouco expressivo, timbre de voz baixo e com pouca entonação.

Paciente aparentava se tratar de um adolescente com transtorno ansioso. Ele me despertou curiosidade e empatia. Mantive 10mg de escitalopram.Solicitei revê-lo após um mês da primeira consulta.

Paciente retorna com relato de melhora parcial de parestesia e alterações gastrointestinais. Queixava-se de sonolência ao longo do dia, contudo estava em uso de medicação à noite. Foi orientado, então, a fazer uso da medicação pela manhã.

Paciente relatou que o desconforto em ambientes sociais sempre esteve presente em sua vida, e que nunca gostou de se sentir diferente. Relembra que emagreceu 30 kg em cerca de um ano e meio, em 2017.  Foi motivado por um comentário de uma colega de turma, que falou “que ele era bonito, mas gordinho”, então se planejou para emagrecer com rotina e disciplina. Relata não ter tido dificuldades, mas se esforçou, uma vez que“queria emagrecer, então era isso que tinha que fazer e pronto”. Explica que nunca namorou, pois acha difícil encontrar algum assunto para iniciar conversa. Também não consegue dar sequência em assuntos que não sejam de seu interesse. Nunca se sentiu apaixonado por alguém específico, mas sente atração por algumas meninas que considera bonitas. Foi retirado do grupo de amigos da escola, por não conversar. Relata que se distrai em alguns momentos, sendo difícil manter a atenção em algum assunto com qualquer outra pessoa. “Minha cabeça fica vazia, às vezes perco o que a pessoa está falando, mas continuo fazendo tudo certinho”.

Interrompeu natação em novembro de 2018 por “fobia” de água. Quando peço para que descreva melhor o que significava“fobia” para ele, diz que estava “muito ansioso e angustiado com o avanço dos treinos na natação, pois o nado peito é muito difícil”, relata que “entendeu o que era para fazer, mas o corpo não obedecia”, e como não conseguia ter controle sobre a coordenação motora, por mais que tentasse, não queria mais ir aos treinos.

Relata que pais nunca foram presentes em sua educação, mas que nunca se importou com isso. Considera-se desligado para sentimentos, não se lembrando de momentos onde sentiu tristeza ou felicidade. Não consegue descrever emoções ou afeto; dizendo que nunca se emocionou com nenhum livro ou filme; não percebendo “graça” em filmes de comédia, “motivo de medo” em filmes de terror ou “sentido” em filmes de romance. Diz que, sempre que alguém recomenda algum filme ou leitura, assiste com expectativa de sentir algo diferente, mas entende que são “só filmes”, tendo interesse apenas nos documentários científicos, sendo que a única série que conseguiu assistir por mais tempo, foi “Cosmos”. Conta-me sobre um episódio chamado “A espinha dorsal da noite”, que o motivou a ir à biblioteca do curso para tentar entender o porquê escolheram esse título para o episódio, uma vez que a noite é imaterial e não pode ter uma espinha dorsal. Demonstra extrema dificuldade em entender metáforas ou o sentimento de pessoas, o que dificulta sua comunicação com elas, já que não entende os sinais sociais.

Questiono sobre o que sentia na época em que realizou tratamento para depressão, aos 13 anos. Diz que, na verdade,apresentava incômodo em ir para a escola e ser excluído por estar acima do peso ou por não conseguir entender as brincadeiras das outras crianças. Além disso, apresentava grandes dificuldades em guardar os nomes e rostos dos colegas, e não gostava de ser chamado de burro e lerdo. Então, preferia ficar em casa lendo animes e vendo revistas de ficção científica. Os pais se preocuparam e o levaram ao médico, tendo realizado tratamento para transtorno depressivo com sintomas ansiosos. Relata que passou a se sentir melhor quando o mudaram de turma. Interrompeu, então, o uso da medicação por conta própria. Reitera que seu rendimento escolar sempre foi mediano-superior; e nunca gostou de ter notas baixas, conseguindo apresentar trabalhos sem medo de julgamentos, mas preferia fazê-los sozinho pois achava mais fácil que fossem “do seu jeito”.

Exprime grande interesse por matemática, e menciona que não precisou que o ensinassem a disciplina; pois considera muito simples resolver as equações. Encara a área de exatas como lazer e conta que, certa vez, em jogos de internet; o colocaram acidentalmente como moderador de um site de jogos. Diz que não sabia sobre o jogo, mas como os internautas começaram a fazer perguntas no fórum, ele passou a responder sem muita dificuldade. No entanto, ao realizarem atualização cadastral dos moderadores do jogo, viram que ele tinha apenas 14 anos e o removeram da administração do grupo. Lembra-se que “achou ruim”, pois era um lazer, mas não se incomodou, pois “estavam certos”.

Acredita que interpretação de texto e redação sejam obstáculos em seu aprendizado e sente frustração pessoal,pois gostaria de tirar 100% das questões dos simulados para o ENEM. A aprovação nesse concurso tem sido uma preocupação desde o primeiro ano de Ensino Médio, já que possui muita vontade de fazer graduação em Ciências da Computação. A família não possui situação financeira flexível para arcar com faculdade particular e gostaria de passar na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Não consegue fazer os simulados. Acha que deveriam ocorrer em todos os finais de semana, para que conseguisse de adequar e programar. Diz que é muito confuso haver simulado apenas em 01 final de semana por mês, pois “as pessoas não podem se organizar assim”. Seu desempenho nas provas, nesta ocasião (maio de 2019), estava entre 45-50%.

Pergunto, então, se pode fazer algumas questões de simulado comigo em uma das consultas. Paciente se sente desconfortável e combinamos que tente fazer em próxima consulta. Seleciono algumas questões de simulados de ENEM e peço dois horários para atendê-lo em próxima consulta. Tento me manter aparentemente distraída enquanto paciente resolve as questões. Percebo extrema velocidade e facilidade ao realizar prova de matemática, física e química. Mas não consegue marcar as questões de humanas. Ao tentar escolher entre as alternativas, adota postura rígida e maneirismos corporais com o tronco, em movimentos repetitivos para frente e para trás. Não consegue selecionar nenhuma alternativa, e justifica verbalmente que “não era para a pergunta estar lá”, pois o cerne da questão não estava no conteúdo programático, o que parece dificultar a escolha de uma resposta. Não consegue passar para a pergunta seguinte sem desligar da anterior e do incômodo de ter saído do roteiro. Nesse momento, me entrega o simulado sem terminá-lo, queixando-se que está muito chateado por “gastar os neurônios” com matérias que não tem paciência e lhe parecem imprevisíveis. Sente-se desanimado em relação ao concurso, distante da possibilidade de fazer um intercâmbio no Canadá, enão gostaria de decepcionar os avós, que sempre motivaram seus estudos.

Não possui crenças místicas ou religiosas, seu pensamento é concreto, lógico e racional para lidar com situações conflitantes, encarando temas como morte, doença e acidentes com bastante naturalidade. Nunca apresentou ideações suicidas ou pensamento paranoide.

Nega uso prévio de drogas ilícitas, nega tabagismo e relata etilismo social em uma ocasião (festa de aniversário), em pequena quantidade, com autorização dos pais.

Solicito hemograma, exame de urina, fezes e eletrocardiograma. Não houve alterações em nenhum dos exames.

Cartão vacinal do adolescente em dia.

DOENÇAS E TRATAMENTOS PRÉVIOS:

Realizou tratamento para depressão aos 13 anos, por 18 meses. Não se lembra o nome da medicação usada àquela época, e interrompeu por conta própria,  pois se sentia melhor.

 

HISTÓRICO FAMILIAR:

Pai abstinente de álcool há 02 anos (um ano em alcoolismo, iniciou tratamento em 2016) sobrepeso importante. Ausência de transtornos mentais por parte da família paterna; possibilidade de transtorno depressivo em prima de segundo grau, por parte de mãe.

 

 

ENTREVISTA FAMILIAR:

Pai relata que paciente era agressivo na primeira infância, tendo feito tratamento nessa fase “para acalmar os nervos”, sempre apresentando dificuldades em interação social. No início era mais agitado e agressivo, o que evoluiu para introspecção. Para ele, filho “nunca deu trabalho” na escola, pois “aprendia as coisas sozinho”; mas “nunca foi de conversa” nem com amigos, nem com a família. Passava horas completamente absorto na leitura de gibis, o que foi substituído ao fim da adolescência por jogos virtuais. Nunca gostou de brincar, mas tinha grande interesse em colecionar brindes de lanche, tendo suas coleções preservadas até hoje. O desenvolvimento da linguagem não diferiu significativamente dos outros colegas de turma, porém foi um dos últimos a aprender a escrever por dificuldades em firmar o lápis na mão, paraconseguir uma escrita menos tortuosa. Considera o filho tímido, ficando em silêncio em grupos de familia, nunca tendo feito amizade sequer com primos. Diz que sente constrangido pois eventualmente paciente é flagrado fixando o olhar por tempo prolongado em alguém que lhe chame a atenção, o que pode gerar desconforto na pessoa que está sendo observada. Também relata dificuldade em aceitar outros pontos de vista, ou mesmo conversar sobre quaisquer assuntos que não sejam os de sua escolha. Por isso, entende que filho não conseguia fazer trabalhos em grupo. Relata também que uma das professoras chamou os pais para conversarem sobre comportamento social do filho aos 5 anos, dizendo que não conseguia brincar com outras crianças, mas não deram muita atenção, e agora percebem o prejuízo nas relações sociais.

Não sabe informar sobre cartão vacinal da mãe no momento da gestação, mas diz que a mesma realizou pré-natal. Gravidez não foi planejada e relata que o relacionamento com a ex-mulher sempre foi conturbado, que o vínculo pai-filho sempre foi maior que o vínculo mãe-filho. Contatos do paciente com a mãe ocorrem por telefone e em férias, sendo que ela atualmente namora um rapaz que considera “um cara legal” e optou por não ter mais filhos. Acredita que, na infância, filho sentia mais falta da presença da mãe, mas hoje se acostumou com a ausência da mesma. Não considera ex-mulher agressiva ou temperamental, mas concordaram que a guarda deveria ser dele porque, além do filho sempre tê-lo respeitado mais, a possibilidade de morar com os avós facilitaria em questões práticas de conciliação entre educação do paciente e trabalho dos pais. Relata que iniciou uso compulsivo de álcool em 2016, motivado,inicialmente,  por eventos sociais com amigos, mas iniciou tratamento para alcoolismo pensando no exemplo que poderia dar para o filho, e está abstinente há 2 anos. Está em um relacionamento estável há 1 ano, diz que namorada tem bom relacionamento com o filho.

 

LINHA DE VIDA:

CONDUTA:

Aumento escitalopram para 15mg;

Acrescento metilfenidato 10mg manhã e tarde;

Solicito acompanhamento com psicologia.

EVOLUÇÃO:

Paciente relata melhora completa de parestesia e sintomas gastrointestinais. Já não exibe ausência em fixação de olhar; contudo, ainda é inconsistente. Seu desempenho nos últimos simulados para o ENEM esteve entre 55% em abril de 2019 e 60% em maio de 2019. Relata que seu interesse em namorar já não é seu foco atual; apesar de que “acharia legal” se acontecesse. Relata mais confiança em suas habilidades pessoais, ainda que continue se sentindo “perdido” em situações novas ou diferentes. Refere que o sono está adequado, ausência de pesadelos e não se sente mais cansado ao longo do dia.

Após verificar que o rendimento escolar não apresentou melhora significativa, o metilfenidato foi diminuído para 10 mg/dia, com plano terapêutico de suspensão gradual desta medicação. Foi  inserido 1mg de risperidona à noite, tendo sido bem tolerado pelo paciente, que  segue com melhor organização de pensamentos e  acompanhamento conjunto com equipe de psicologia.

HIPÓTESEDIAGNÓSTICA PRINCIPAL:

CID11 -6A02 – Transtorno do espectro do autismo

PLANO TERAPÊUTICO:

  • Escitalopram,15mg(1+0+0);
  • Risperidona 1mg (0+0+1);
  • Terapia Cognitiva Comportamental;
  • Treino de habilidades sociais;
  • Participação efetiva de familiares, em especial o pai.

 

 

 

 

 

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