Fevereiro de 2021 – Vol. 26 – Nº 02

 

Sérgio Telles

 

Jacques Derrida, filósofo judeu franco-argelino vitimado em 2004 aos 74 anos por um câncer de pâncreas, tem uma obra imensa e facetada, na qual faz uso do procedimento por ele criado e largamente disseminado com o nome de “desconstrução”. Não são poucos o que o rejeitam como charlatão. Outros – entre os quais me incluo -o consideram como o maior filosofo do século 20, senão o maior filosofo de todos os tempos. Talvez por isso mesmo, alcançou um nível de celebridade só equiparável ao dos pop stars internacionais, algo até então impensável para um filosofo.

Derrida foi objeto de uma monumental biografia escrita por Benoît Peeters, lançada em 2012 e acolhida com entusiasmo. Há um mês foi lançada uma outra, de Peter Salmon, “An event, perhaps – A biography of Jacques Derrida” (Verso, London-New York, 2020). Salmon, numa espécie de “biografia intelectual”, privilegia o percurso teórico traçado por Derrida na produção de sua obra, detalhando sua relação com os autores que mais o marcaram, especialmente Husserl, Heidegger, Lévinas e Freud.

É ampla a gama dos temas abordados por Derrida, como literatura, feminismo, pós-colonialismo, lei, psicanálise, política, cinema, teologia, arquitetura, amizade, doação de presentes, hospitalidade, estudos sobre a mídia, perdão, soberania, questão dos animais e outros.

O projeto de Derrida não poderia ser mais amplo e audacioso. Pretende rever todo o edifício filosófico, procurando ali detectar a incidência da “metafísica da presença”, que, a seu ver, compromete todo o pensamento filosófico ocidental, levando a impasses e paralisias. Para Derrida, o erro da metafisica está na aposta de que a verdade se encontra na palavra falada, validada pela presença de quem profere (logocentrismo). Tal postura faz com que a escrita fique relegada a um plano secundário e equiparado à mentira. Derrida desconstrói tal afirmação defendendo que fala e escrita são dimensões equivalentes da linguagem e que, na verdade, a escrita, ao contrário do que os mestres defendiam, antecede a linguagem falada. Ao propor essa tese, Derrida se apoia nos modelos de aparelho psíquico criados por Freud, nos traços mnêmicos, os registros na memória das percepções e vivências afetivas.

A importância da palavra escrita será uma vertente constante na obra de Derrida, daí seu interesse pela literatura, afrontando a convicção estabelecida de que filosofia e literatura são incompatíveis entre si. Derrida mostra que a linguagem é uma sequência de metáforas que representam o mundo, é arbitrária a ligação entre palavra e coisa, consequentemente não se pode pensar numa linguagem “pura”, como pensavam os filósofos sobre a linguagem da filosofia, atribuindo, consequentemente uma “impureza” à linguagem da literatura.

Sua criação mais importante, a “desconstrução”, consiste em tomar as oposições binárias classicamente estudadas na filosofia – bem/mal, belo/feio, verdadeiro/falso, real/fictício etc. – e mostrar como, nessa oposição, não há uma equivalência pacífica entre os dois termos, pois um deles é o representante do poder, prevalece e subjuga o outro, que passa a ocupar um lugar subalterno, desconsiderado. Uma das operações da desconstrução é inverter a relação, dar maior importância para o termo reprimido e observar as consequências lógicas daí decorrentes. A desconstrução não destrói a “verdade”, ela apenas diz que aquilo que se apresenta, naquele momento, como “verdade” não o é e estuda as forças sociais que a apresentam como tal e o porquê. Essa intervenção, que pode ter efeitos radicais, levou a acusações de que Derrida queria demolir os alicerces do pensamento filosófico e perverter a mente dos jovens, acusação semelhante feita antes a Sócrates. Se agora não obrigaram Derrida a beber cicuta, muitos ataques lhe foram desferidos, o mais vergonhoso deles foi a insidiosa campanha que tentou impedir-lhe a outorga do título de doutor honoris causa pela Universidade de Cambridge.

Sua crítica à metafisica incluía, é claro, a ontologia, que se restringe ao levantamento daquilo que fenomenologicamente existe, do que é, do que está presente. Acompanhando Freud, Derrida entende que o ser em nenhum momento está inteiramente presente no presente, pois há uma dimensão inconsciente da qual não tem controle, sequer conhecimento, e por isso  está simultaneamente “presente” e “ausente”, ocupando o aqui-e-agora e também um outro lugar “espectral”, assombrado pelo passado, pelas lembranças, pelos mortos – não só os mortos familiares, que estruturaram seu psiquismo via identificações, como também por todos os mortos da humanidade, os que viveram antes e que moldaram a realidade e a cultura antes dele. Derrida cria o neologismo “hantologie” (que em francês se assemelha foneticamente a “ontologie”, que é seu oposto) para designar esse mundo espectral , que seria equivalente ao mundo fantasmático inconsciente descrito pela psicanálise.

Não é raro que psicanalistas recorram à filosofia para dirimirem alguns impasses de seu arcabouço teórico. Talvez melhor fizessem se seguissem o exemplo de Derrida, que faz o oposto – recorre ao saber psicanalítico para resolver problemas filosóficos, mostrando como a psicanálise e a noção de inconsciente fazem caducar axiomas filosóficos longamente estabelecidos – um deles justamente o da “presença” acima descrito – sem se intimidar com a tempestade desencadeada por tal afirmação e que persiste até hoje.

(*) Publicado no jornal Valor Econômico em 22/01/2021

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