Fevereiro de 2024 – Vol. 29 – Nº 2

Sérgio Telles

A exposição “Mirabilia” de Ceverny, na Pinacoteca, reúne mais de 100 obras cobrindo um
grande arco que vai dos inícios de sua produção até o presente.
Ceverny mantem uma unidade e coerência extraordinária em sua pintura, inventou um
universo imagético, ao qual se mantem absolutamente fiel. Desde as primeira obras até as
mais recentes persistem as imagens de um mundo onírico peculiar, de uma originalidade
inquestionável, que faz seu estilo inconfundível, facilmente reconhecível.
Suas imagens são simultaneamente oníricas, ingênuas, naif, sofisticadas, delicadas, estranhas.
Ceverny não tem medo de ser figurativo, num momento em que o abstracionismo impera,
tampouco teme procurar a beleza num tempo em que parece existir uma “califobia”, uma
fobia pela beleza, em que a arte abandona o escopo estético e se volta mais para a
especulação filosófica, para a pesquisa e exploração do significado. como aponta o crítico de
arte norte-americano Arthur C. Danto.
Observando a exposição, vi-me comparando o universo imagético de Ceverny e o de Basquiat.
Se isso mostra a riqueza e a liberdade de criação no mundo das artes, onde podem conviver
concepções tão dispares do fazer artístico, obriga-nos a refletir sobre a responsabilidade da
crítica, que deve estabelecer critérios que guiem o público, que o ajude a se situar no labirinto
emaranhado que o desnorteia.
Se Ceverny tem preocupações estéticas, que o faz organizar espaço e cores de forma
equilibrada e harmônica, isso não diminui a estranheza sombria e inquietante própria de seu
mundo pictórico. Mundo cuja topografia e natureza seguem regras arbitrárias, de cunho
surrealista. Nele existem poucas mulheres. Seus habitantes são homens nus, flagrados em
posições e situações inusitadas. Eles pairam numa atemporalidade, não estão no reino de
Cronos, ali parece prevalecer Aion, o tempo circular de um eterno presente.
Uma outra constante em sua pintura são os elementos gráficos, escritos que povoam grande
parte dos quadros. Alguns com grandes letras de forma, que nos fazem lembrar quadros
medievais de santos com orações, ícones sagrados. Mas a maioria das palavras e grafismos é
composta de uma escrita miúda, praticamente ilegível para o expectador. Em exposições como
a da Pinacoteca, o espectador deve manter a distância imposta pelas regras de segurança, o
que dificulta ou mesmo impossibilita a leitura. Mas, mesmo que não houvesse esse obstáculo,
digamos, para o proprietário de uma das obras que pode se postar mais perto da mesma,
dificilmente ele leria todas aquelas mensagens escritas. Mesmo com a curiosidade espicaçada,
isso lhe demandaria tempo, muito tempo.
Por outro lado, esse tipo de escritura convida o espectador a se aproximar fisicamente da tela.
É como se lhe fosse pedida uma intimidade, um compartilhar de segredos, uma confissão a ser
feita baixinho no ouvido.
O espectador pensa que o artista não satisfeito em povoar suas telas com tantas imagens,
parece não considera que isso tenha sido suficiente, não confia que elas exprimam ou
expressem adequadamente tudo aquilo que tem para dizer, daí a necessidade de apelar para
as palavras, extravasando pela escrita aquilo que o pincel e tinta não permitiu. É como se ele

não confiasse na pintura em si e precisasse do texto para complementá-la. Às vezes, além das
palavras, o artista apela para a concretude de objetos, como vemos numa tela de grandes
dimensões que tem, na parte superior da moldura, uma quantidade de pequenos objetos.
Que pensar então sobre isso? Se o texto não é propriamente destinado à leitura e, mesmo
assim, ocupa um espaço significativo no quadro, teria ele uma conotação puramente
decorativa, seria apenas mais uma imagem a saturar a tela?
Seria um equivoco chegar a essa conclusão. O uso de letras, palavras, textos, cumpre não
apenas uma função estética, pois o fato de o expectador desistir de compreender a leitura dos
escritos ocorre paralelo à desistência de entender o próprio sentido das estranhas imagens do
mundo de Ceverny. Que significado tem aqueles homens nus pendendo de arvores, torcidos
como as mulheres de Louise Bourgeois? E aquelas situações estranhas em que se encontram?
A exposição de Ceverny o confronta com o incognoscível, as imagens e as palavras não se
entregam inteiramente, elas querem permanecer enigmáticas, guardiãs que são de um
segredo. O espectador se conforma em suportar o incognoscível, uma experiencia
desestabilizadora mas que o enriquece.
O espectador sai saturado com tantas imagens, com o sentimento de ter-se deparado com um
enigma que lhe compete usufruir, sem tentar resolvê-lo.
A arte de Ceverny não apazigua. Ela inquieta, espicaça. É um encontro com o mistério que
apesar de observado, mantem-se intocado. E é nisso justamente onde reside seu encanto. Ela
nos tira do ramerrão do dia a dia, da rotina fastidiosa e nos mostra o milagre, a maravilha, a o
miragem. Nos leva para recantos desconhecidos que nos são, paradoxalmente, muito
familiares.
É um mergulho no abismo.

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