Outubro de 2025 – Vol. 31 – Nº 10
Depoimento do Dr. Evaldo Melo de Oliveira sobre a Clínica Pinel de Porto Alegre
Sobre os 65 anos da Clínica Pinel
Eu sou Evaldo Melo de Oliveira, psiquiatra e psicanalista, sou de Caruaru/Pernambuco.
Entrei na faculdade em 1966, já em 67 eu tinha decidido que ia fazer psiquiatria e,
portanto, fiz também o vestibular de Psicologia e, a partir de 68, passei a cursar
Medicina e Psicologia. Em 69 eu fui a um Congresso Brasileiro de Psiquiatria, no Rio
de Janeiro, no Copacabana Palace, e eu ouvi a descrição do funcionamento da Clínica
Pinel. Eu, que já tinha decidido há dois anos, sair de Recife para fazer residência em
psiquiatria, entendi que ali estava o caminho que eu deveria seguir: fazer a residência
em Porto Alegre, na Clínica Pinel. Ali se falava da questão do funcionamento hospitalar
como fator terapêutico. Era a comunidade terapêutica pensada por Maxwell Jones, que
não tem nada a ver com essa comunidade terapêutica que chamam hoje em dia.
E decidi: peguei um ônibus e fui para Porto Alegre para fazer a minha residência. Era
um momento de grande criatividade, de grandes mudanças na Clínica Pinel. Era um
momento que incentivava o pensamento diferente. Eu me deparei com uma abordagem
do sofrimento psíquico completamente diferente daquela que eu vivia aqui em
Pernambuco. Era isso que eu pensava sobre a questão da abordagem do sofrimento
através da psicose: era o paciente interagindo e sendo responsável, o paciente não
tutelado. O paciente atendente era um paciente funcionando como um atendente. Então
o paciente, pelo fato de estar com um quadro psíquico, não ficava incapacitado de
pensar e decidir sobre sua vida. Era exatamente isso que eu procurava.
Terminei a minha residência e passei mais nove anos em Porto Alegre. No total, foram
11 anos em Porto Alegre. Nesse momento de criatividade que vivia a Clínica Pinel, o
Dr. Marcelo aceitava sugestões de mudança dentro da estrutura de funcionamento. Foi
nessa época que o Sérgio de Paula Ramos propôs termos na Pinel um atendimento
diferente para o alcoolismo e para problemas relacionados ao uso de outras drogas. Ele
foi aos Estados Unidos e ao Canadá ver como isso funcionava fora do Brasil. E, em
1978, o Dr. Marcelo me perguntou. Eu disse: veja, fazendo um levantamento dos nossos
pacientes, identifiquei que eles veêm de uma determinada região, na região
metropolitana de Porto Alegre. Então pensei: vamos impedir que o paciente precise se
internar. Porque quando ele se interna, ele entra na máquina manicomial e, mesmo numa
abordagem diferente, a possibilidade de permanecer institucionalizado é muito grande.
Propus um ambulatório de saúde geral junto com o que naquela época se chamava de
hospital dia. Na verdade, era um precursor do CAPS. E inauguramos em Cachoeirinha a
USUP, a Unidade de Saúde Ulisses Pernambucano. Mais ainda: por que um ambulatório
de saúde geral? Porque eu entendia que a pessoa que vai a uma consulta psiquiátrica
deve ir ao mesmo espaço em que se faz consulta pediátrica, clínica ou ginecológica. A
presença do paciente psiquiátrico num ambulatório geral já sinalizava uma abordagem
diferente para o sofrimento psíquico.
Simultaneamente, apresentamos outro projeto: a criação de uma pensão protegida.
Fomos ao Hospital São Pedro, levantamos casos de pessoas com mais de 20 anos
internadas e criamos uma instituição num bairro próximo da Pinel. Trabalhamos a
comunidade local, sensibilizando os vizinhos sobre o que seria esse espaço. Recebemos
20 pacientes vindos do São Pedro. Era a pré-história da Residência Terapêutica. Existia
uma pensão protegida no Rio de Janeiro, mas para pacientes particulares; para pacientes
públicos do INAMPS, fomos pioneiros.
Esses projetos me mobilizaram por anos: criar espaços onde o sofrimento psíquico fosse
tratado de maneira mais digna, com participação do paciente. Essa é a grande diferença.
Tive a honra de conviver com mestres como Gary, Flávio, Dalty; contemporâneos como
Fulgêncio, Zeca Blaya, Elso Barbisan, Paulo, Seixas, Lia Abreu; colegas
pernambucanos como Dinilson e Fernanda Falconieri; e fui tutor e orientador de
residentes entre 1974 e 1982.
É uma honra falar nestes 65 anos de história dessa instituição, pioneira na participação
efetiva do paciente em seu processo terapêutico. Um abraço para todos – para Bibi, para
Anete, para Mônica, irmãs queridas com quem convivi. Essa história é também a minha
história, e é um ponto importante da história da psiquiatria brasileira. Eu,
pernambucano, da terra de Ulisses, encontrei na Pinel um rio que desaguava na
compreensão da cidadania, do protagonismo e do cuidado aliado à liberdade. Porque
cuidado e liberdade significam que o sujeito em sofrimento continua dono da sua vida e
do seu destino. Obrigado a todos..
Texto 2
Entrei na Faculdade de Medicina em 1966 e, já em 1967, decidi que seguiria o caminho
da psiquiatria. Por isso, em 1968, iniciei simultaneamente os cursos de Medicina e
Psicologia. Em 1969 participei de um congresso brasileiro de psiquiatria, realizado no
Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, onde conheci a proposta da Clínica Pinel de
Porto Alegre. A ênfase no funcionamento hospitalar como fator terapêutico – inspirada
no conceito de comunidade terapêutica de Marcos Wells Jones – confirmou a decisão
que eu já havia tomado: fazer residência em psiquiatria na Pinel.
A experiência na Pinel revelou-se transformadora. Ali se vivia um momento de grande
criatividade e abertura ao pensamento crítico, muito diferente da realidade da psiquiatria
em Pernambuco. O paciente era concebido como sujeito ativo e responsável, não
tutelado, capaz de participar das decisões sobre sua própria vida. Essa perspectiva me
acompanhou durante toda a minha formação e prática.
Após concluir a residência, permaneci mais nove anos em Porto Alegre, somando 11
anos de vínculo com a Pinel. Nesse período, sob a liderança do Dr. Marcelo, a
instituição abriu espaço para inovações. O Dr. Sérgio de Paula Ramos trouxe da
experiência internacional novas propostas para o tratamento da dependência de álcool e
drogas. Em 1978, propus a criação da Unidade de Saúde Ulisses Pernambucano
(USUP), instalada em Cachoeirinha. Tratava-se de um ambulatório de saúde geral
integrado a um hospital-dia – um verdadeiro precursor dos futuros Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS). O objetivo era evitar a internação e promover a inserção do
paciente psiquiátrico em um ambiente de saúde indistinto, junto a pediatria, clínica
médica e ginecologia, sinalizando assim uma mudança cultural no cuidado em saúde
mental.
Outro projeto pioneiro foi a criação da Pensão Protegida, em um bairro próximo da
Pinel. Após levantamento de pacientes do Hospital São Pedro com mais de 20 anos de
internação, recebemos 20 deles nessa nova instituição, articulando previamente a
sensibilização da comunidade local. Foi um marco na história da reabilitação
psicossocial e pode ser considerado a pré-história das atuais Residências Terapêuticas.
Diferente da experiência do Rio de Janeiro voltada a pacientes particulares, a proposta
em Porto Alegre atendeu pacientes do sistema público (INAMPS), sendo absolutamente
inovadora.
Essas iniciativas refletiam o compromisso com um tratamento digno, participativo e
centrado no protagonismo do paciente. Durante esse período, tive a oportunidade de
aprender com mestres como Gary, Flávio e Dalte; de conviver com colegas como
Fugêncio, Zeca, Elso, Paulo, Seixas e Lia; de compartilhar a formação com os
pernambucanos Nilson e Fernanda; e de orientar gerações de residentes entre 1974 e
1982.
Hoje, ao celebrar os 65 anos da Clínica Pinel, reconheço que a história dessa instituição
se entrelaça com a minha própria trajetória. Ela é parte fundamental da história da
psiquiatria contemporânea brasileira. Eu, pernambucano da terra de Ulisses
Pernambucano – que já na década de 1930 defendia a prevenção e a atenção precoce em
saúde mental – encontrei na Pinel a realização desse ideal: um modelo de cuidado que
alia dignidade, cidadania e liberdade. Pois o sujeito em sofrimento deve permanecer
dono de sua vida e capaz de decidir seu destino.