Dezembro de 2023 – Vol. 28 – Nº 12

Por Que A Guerra?


Carlos Gari Faria em 2015

Editorial
Como editor de Psychiatry Online Brasil resolvi publicar textos de dois psicanalistas gaúchos
que traduzem alguns dos sentimentos que vivemos hoje. Não pedi licença para eles, mesmo
porque o Dr. Carlos Gari Faria não está mais entre nós. Seus pensamentos são pertinentes aos
momentos que enfrentamos.


Indicado pela Liga das Nações para estabelecer um intercâmbio cultural, Einstein
escolheu Freud para trocar ideias sobre um assunto que considerou o mais urgente de
todos os problemas que a civilização tem que enfrentar. Assim, em julho de 1932
escreveu-lhe formulando a seguinte pergunta: Existe alguma forma de livrar a
humanidade da ameaça da guerra?
Einstein dizia ver uma abordagem ao problema pelo ângulo mais superficial ou
administrativo, com a criação de um organismo legislativo e judiciário para arbitrar
todos os conflitos que surgissem entre as nações.
Mas já antevia dificuldades e limitações: as decisões da lei necessitam contar com o
poder para impor respeito aos ideais jurídicos; além disso a busca de segurança
internacional implica um certo nível de renúncia por parte de cada país à sua liberdade
de ação.
Diante do insucesso dos esforços até então realizados para atingir esta meta,
acreditava que fatores psicológicos de peso deviam interferir paralisando tais esforços.
Acrescentava que talvez isto ocorra porque o homem encerra dentro de si um desejo
de ódio e destruição que em tempos normais permanece em estado latente e emerge
em circunstâncias anormais.
Em setembro do mesmo ano, Freud respondeu a Einstein concordando com todas as
suas opiniões e, modestamente, propondo-se seguir seu rastro e ampliá-lo com o
melhor de suas “conjeturas”.
Como Einstein, se mostra pessimista em relação aos frutos de um organismo como a
Liga das Nações uma vez que os próprios interesses e ideais nacionais atuam em
sentido oposto.
Após estas considerações de ordem mais sociológicas Freud aborda o problema pelo
ângulo mais profundo e toma o rumo dos instintos amorosos e agressivos.
Reafirma que os dois impulsos são igualmente essenciais à vida, encontram-se
amalgamados em diferentes graus pois os fenômenos da vida surgem da ação
confluente ou mutuamente contrária de ambos.
Os indivíduos se deixam levar à guerra por uma gama de motivos: uns nobres outros
vis, alguns francamente declarados, outros jamais mencionados. Entre eles está o

desejo de agressão e destruição cuja satisfação pode ser facilitada por sua mistura com
outros motivos de natureza erótica ou idealista.
O instinto destrutivo decorre da derivação da pulsão de morte para fora e o organismo
assim, preserva a própria vida destruindo a vida alheia. Esta seria a justificação mais
profunda para esta tendência que se situa mais próxima da natureza do que nossa
resistência.
Ao concluir sua carta, Freud, acena discretamente com uma possibilidade que diz,
talvez não seja utópica. Dois fatores: a atitude cultural e o medo justificado das
proporções de uma guerra futura (que poderia exterminar ambos os antagonistas),
poderiam em tempo previsível por término a esta ameaça; pois tudo o que estimula o
crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra.
“Pulsão é um conceito limite entre o soma e o psíquico” (Freud, 1915)
“Pulsão de vida e pulsão de morte” (Freud, 1920)
“Nós somos vividos por forças desconhecidas e incontroláveis” (Freud, 1923)
“O ego tem o hábito de transformar em ação a vontade do id como se fosse sua
própria” (Freud, 1923)
A evolução da condição do objeto de pulsão para a situação de sujeito da pulsão
O psiquismo é uma estrutura que se cria e se desdobra num sistema dinâmico como
uma formação intermediária no diálogo entre o corpo e o mundo.
Por que o entendemos assim?
“Porque esse diálogo é brutal. Porque a luz do mundo é ofuscante, e porque as
exigências do corpo são tirânicas. Se não dispuséssemos dessa formação
amortecedora dos choques, que é constituída pelo psiquismo consciente e
inconsciente, estaríamos ainda provavelmente num estágio pré-hominiano” (Green,
1990).
Estamos presos entre a somatização (conversão hipocondria, doença
psicossomática) e a descarga motora no ato.
O que é da ordem do psíquico não é nem somático, nem social. É talvez o resultado
de combinações que chegam de um lado e de outro, mas que formam uma criação
original que tem características próprias.
Movimentos entre pulsão de vida e pulsão de morte
O trabalho de investidura da pulsão de vida:

  • Investidura narcísica (narcisimo de vida)
  • Investidura objetal (função objetalizante)
    Desinvestimento como tendência da pulsão de morte
  • Desinvestimento narcísico (narcisismo de morte)
  • Desinvestimento objetal (função desobjetalizante)
    A pulsão de vida (Eros) em seu trabalho de construção é compatível com “ligação” e
    “desligamento”, isto é, investimento e desinvestidura, intrincados ou alterantes (em
    diferentes proporções)
    A pulsão de morte (Neikos) pura é puro desligamento; é o negativo do trabalho de
    representação psíquica. Por isto é “sem por que” (Green).
    Hanna Arendt e a “banalização do mal”
    O trabalho de “desmentalização”.
    O “mal banal”: fracasso de ser um sujeito psíquico (uma pessoa) na medida em que se
    submete e “se rende”, isto é, rende a própria mente a um regime ou “líder” totalitário.
    O “mal radical”: mal perpetrado com a intenção de tornar o outro “supérfluo”, “objeto
    coisa”, apenas emissário descartável a serviço e sob o fascínio de uma ideologia
    ilusória (pervertida e mantida pela onipotência destrutiva do líder totalitário).
    O “seguidor totalitário” implica renunciar aos poucos a ser uma pessoa.
    Esta forma de destrutividade é mais radical do que aquelas manifestações sobre a
    forma de ódio inextinguível que reclama por vingança implacável e que o tempo não
    atenua nem extingue, porque estas ainda estão intrincadas com a libido erótica pela
    “paixão” que suscitam.
    O mal maior é o mal cometido por “ninguém” (que são seres que se recusam a ser
    sujeitos psíquicos) e levados a des-existir.
    “Quando fui obrigado a fiscalizar a prisão tornei-me tanto agente de atos criminosos
    como refém do regime”
    (Comrade Duch, membro do Khmer Vermelho, seguidor totalitário do regime da Pol
    Pot, em julgamento por supervisonar a tortura e morte de 16.000, entre homens,
    mulheres e crianças – Camboja, março 2009)

A BANALIDADE DO BEM
Marco Aurélio Crespo de Albuquerque
Facebook de 14 de novembro de 2023
Hanna Arendt descreveu bem a banalidade do mal. Hoje eu sugeriria
a ela escrever sobre “a banalidade do bem”, a falsa bondade que logo
se desmascara em tempos como esses que vivemos, da cultura
“woke” e das lutas identitárias neomarxistas, em que o politicamente
correto tenta se afirmar como a única via correta de pensamento e

comportamento, a via da virtude. É uma afirmativa simplista e
mentirosa, claro, mas quem se importa com verdades complexas na
era pós-moderna das narrativas mais fantasiosas e das crenças mais
absurdas?
Uma das piadas que circula nas redes sociais, sobre o predomínio das
narrativas sobre a realidade, é um diálogo em que a primeira pessoa
diz para a outra: “Eu não concordo com a sua opinião!”, ao que a
outra responde: “Mas não é uma opinião, são os fatos.” E a primeira
retruca: “Eu não concordo com os fatos!” É uma piada, mas não é
uma piada. O que são os pobres fatos diante do desejo arrogante e
onipotente que eles sejam diferentes?
É preciso conceituar e descrever a banalidade do bem porque nosso
país conseguiu a proeza de criar o conceito de “ódio do bem”, para
diferenciá-lo do “ódio do mal”. Antes a distinção, que já durava
milênios, era entre o bem e o mal, Deus e o Diabo, Dr. Jekyll e Mr.
Hyde, mas uma certa casta ideológica sofisticou o mal e o dividiu em
duas grandes correntes, o “ódio do mal” e o “ódio do bem”.
O “ódio do mal” é sempre aquele atribuído aos outros, aos supostos
inimigos, esse “mal” é mesmo “mau”, e deve ser combatido com
ferocidade. Quando o ódio e a maldade são das próprias hostes
contra esses supostos inimigos, está caracterizado o “ódio do bem”,
justificado moralmente como “resistência” ou “reação”. Aquele “mal
que no fundo é do bem”, uma leve mudança do conhecido ditado de
que os fins justificam os meios, tão ao gosto das mentes totalitárias.
Essa é a banalidade do bem, ostentada e vista nas passeatas das
universidades americanas, nas ruas de Londres e na Avenida Paulista.
Uma das mais recentes manifestações do “ódio do bem” aconteceu já
no dia 08/10/23, um dia após o massacre brutal do Hamas contra a
população próxima à fronteira com Gaza. Idosos foram assassinados,
260 jovens no festival de música foram abatidos como animais,
mulheres foram estupradas, esquartejadas e mortas, um bebê foi
retirado do ventre aberto da mãe, ainda viva, ligado a ela pelo cordão
umbilical e esfaqueado, e depois mataram a mãe agonizante. Um
bebê foi assado vivo no forno, corpos foram queimados além da
possibilidade de reconhecimento, cerca de 240 reféns foram levados,
entre elas uma mulher grávida e um bebê de 10 meses de idade.
Alheias a tudo isso, vozes surgiram das sombras e das macegas,
como os terroristas, discutindo geopolítica e afirmando que não eram
assassinatos, era apenas “resistência” e, portanto, era um “ódio do
bem”, já que dirigido contra os judeus. Roger Waters, o ex baixista do
Pink Floyd, e notório antissemita, disse em uma entrevista que Israel
havia criado falsas evidências do massacre, que ele não acreditava
ter ocorrido. Disse também que os soldados de Israel poderiam ter
matado seus compatriotas, para criar uma falsa acusação contra os
pobrezinhos do Hamas. E não, isso não é uma piada, tanto que os
hotéis Alvear e Faena, dois dos melhores de Buenos Aires, se
recusaram a hospedá-lo para seus shows em novembro.

A culpa de todos esses atos, portanto, era de Israel, por estar
assentada sobre terras palestinas. Outra mentira, claro. Não existiu
na antiguidade um povo palestino, nem a região existiu
historicamente. Palestina foi o nome dado, em latim, pelos romanos
que conquistaram aquela região, que pertencia às tribos de Israel
desde antes de Cristo.
Nisso reside o caráter antissemita das manifestações. Quinhentos mil
muçulmanos foram mortos por Assad na Síria, 230.000 no Iêmen,
mais de 20.000 em Mianmar e nenhuma manifestação de indignação
mundial aconteceu. Mas muçulmanos mortos por judeus, mesmo que
em uma guerra declarada, fazem o problema ganhar proporções
imensas. Qualquer um pode matar muçulmanos, menos judeus,
mesmo que em legítima defesa de seu país.
Daí em diante aconteceu o que já se sabe. Manifestações
antissemitas de cunho neonazista explodiram em muitos países do
mundo, feitas por pessoas banais como Eichmann, que ao chegar em
casa dormirão com as consciências tranquilas porque fizeram o seu
trabalho e odiaram o inimigo certo. Encharcadas de ódio, mas
tranquilas porque era o “ódio do bem”.
As manifestações, supostamente em nome de uma Palestina livre,
foram todas a favor do Hamas. Na Pindorama despudorada que é o
Brasil elas nem se preocuparam em apoiar os palestinos, o apoio foi
dado diretamente ao Hamas, inclusive com marchinhas carnavalescas
adaptadas para a ocasião, ou cânticos como os das torcidas de
futebol. Camelôs em São Paulo já vendem nas ruas bandeiras,
camisetas e lenços do Hamas, algo surreal até para um país surreal
como o nosso. Chego a imaginar que Salvador Dali, se recebesse uma
descrição detalhada do que acontece, não conseguiria nos pintar e
desistiria do estilo que o consagrou.

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