Julho de 2022 – Vol. 27 – Nº 7

 

O último estudo sobre a saúde da população mundial foi organizado por um consórcio de sete parceiros, entre eles a Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard, o Instituto de Métrica e Avaliação em Saúde (EUA) e a Universidade de Washington. Colaboraram 302 instituições em 50 países (incluindo o Brasil), 486 cientistas, e dele participaram 187 países fornecendo dados populacionais. Os resultados foram publicados em 2012 no periódico médico The Lancet com o título Global Burden of Disease Study 2010. O estudo cobriu um período de 20 anos (de 1990 a 2010) com análises de morbidade e mortalidade; suas conclusões surpreenderam.

As campanhas de prevenção e higiene, combate ao tabagismo e desenvolvimento científico e tecnológico no tratamento medicamentoso aumentaram a expectativa de vida dos doentes crônicos, e desse modo a longevidade global aumentou. Os novos bloqueadores de receptores de angiotensina e de canais de cálcio têm reduzido a mortalidade entre os hipertensos e cardiopatas isquêmicos, assim como os novos medicamentos para o diabetes tipo 2 e para os processos degenerativos osteoarticulares, entre outras condições, têm contribuído para o aumento de doentes crônicos longevos. Ao mesmo tempo, os fatores de risco para essas doenças, especialmente a obesidade, o diabetes tipo 2 e o tabagismo, aumentaram significativamente e continuam a aumentar.

O estudo mostrou que a hipertensão arterial sistêmica é atualmente o primeiro maior fator de risco para a saúde, responsável por 9,4 milhões de óbitos em 2010. Em segundo e terceiro lugares estão o tabagismo e o alcoolismo, respectivamente, este último responsável por cinco milhões de óbitos somente em 2010. No Brasil, o alcoolismo revelou-se o fator de risco mais importante para a saúde. Mundialmente, a obesidade vem aumentando significativamente e foi associada a três milhões de óbitos em 2010, e responsável por 10% da carga global de doenças, e continua a aumentar (Câmara, 2010).

A depressão por si só é o transtorno mais incapacitante e que mais deteriora a qualidade de vida das pessoas, que em média têm metade dos seus anos vividos deteriorados devido a essa condição.

A mortalidade infantil diminuiu, e isso contribuiu para o aumento na expectativa de vida. Há ainda picos de mortalidade específica, como para as diarreias por rotavírus e sarampo, embora existam vacinas para essas doenças, infelizmente negligenciadas por parte da população global. Por outro lado, a mortalidade em indivíduos na faixa etária de 15 a 49 anos aumentou em 44% entre 1970 e 2010, na maioria dos casos pelo aumento da violência e Aids (a sexta causa de morte no mundo, com 1,5 milhão de óbitos em 2010).

Na média, porém a expectativa de vida aumentou em quatro a cinco anos. No Brasil, comparando 1990 a 2010, verificamos essa tendência, mas esses anos acrescidos são anos vividos com má qualidade de vida, devido a doenças crônicas. A tabela 1 mostra esses dados.

Tabela 1. Expectativa de vida e anos de vida saudáveis na população brasileira.

  Homens Mulheres
1990 2010 1990 2010
Expectativa de vida

 

Anos de vida saudável

65,4

 

56,1

70,5

 

60,2

73,1

 

61,3

77,7

 

64,9

 

Desse modo, não se pode dizer que o ganho em anos de vida da população global seja vivido de modo saudável. Estamos vivendo mais, porém, com menor qualidade de vida. A população mundial envelhece e, à medida que isso ocorre, acumulam-se os doentes crônicos. Somos agora uma população acrescida de sobreviventes crônicos graças à tecnologia médica e à melhoria das condições de existência nas cidades e no trabalho. Em média, para cada ano de vida que acrescentamos, 0,8 será vivido com saúde.

A medicina ainda não compreendeu totalmente a biologia humana, especialmente o seu desfecho com o envelhecimento e morte, ambos inevitáveis. Resta então proporcionar “qualidade de vida” aos pacientes, mas a subjetividade inerente desse conceito ainda espera por um embasamento científico multidisciplinar rigoroso, e por enquanto trata-se apenas de um folclore médico.

Enfim, o que a medicina proporcionou, ante o fracasso de deter a cronicidade ou revertê-la, foi o aumento da expectativa de vida – que ela divide com o saneamento ambiental e com a melhoria de moradia e das condições de trabalho -, por intermédio de novos medicamentos, tecnologias médicas e facilidade de acesso aos serviços de saúde, esse último fator talvez o mais importante.

A situação é agravada mais ainda com o aumento da incidência dos transtornos mentais que também aumentam com a idade, destacando-se a depressão e os transtornos de ansiedade, que deterioram a qualidade de vida e incapacitam socialmente os indivíduos.

E agora, pensando de modo mais abrangente e realista, o que significa tudo isso?

Os resultados desse estudo mostram que atingimos o limite de nossa espécie. A sentença bíblica de que podemos viver até 120 anos é apenas um mito. Nossa biologia atual não alcança essa meta, e os resultados apresentados mostram claramente que nosso organismo não se sustenta além da sétima década de vida. Viver mais que isso é um “acidente de percurso”, concorrência de variáveis aleatórias que ainda não foram identificadas. De qualquer forma, ultrapassamos esse limite graças aos medicamentos e condições sanitárias que prolongam a vida por mais cinco anos em média, mas a que custo!

O organismo envelhecido ou sobrecarregado com comorbidades não tem autonomia biológica plena. Morrer decorre apenas de uma maior solicitação de esforço metabólico ou imunológico para o qual o organismo não pode mais suprir. Na maioria das vezes, as medicações de uso continuado ajudam o organismo a sobreviver. Nesse ponto, a trajetória da pandemia da Covid-19 apanhou a humanidade desprevenida. Mais de 70% de suas fatalidades ocorrem em pessoas acima dos 65 anos, e, nos mais jovens, os obesos e os portadores de duas ou mais comorbidades (diabéticos, cardiopatas, nefropatas).

O vírus da Covid-19 mostra a terrível adaptação gênica para o patógeno perfeito: multiplicar-se nos organismos saudáveis e resistentes, para propagar sua espécie, e aqueles que não têm carga metabólica suficiente para debelar a infecção, sucumbem gravemente. O sistema imunológico dos idosos é senescente, não possui força suficiente para reagir a uma infecção severa; os diabéticos possuem baixa concentração de glicose dentro de suas células e não possuem energia suficiente para impulsionar o sistema imunológico; os obesos já consomem boa parte de sua energia no processo inflamatório que corrói seu organismo lentamente. Podemos estender esses limites aos cardiopatas, renais crônicos e outros.

Percebemos então a perversidade desse vírus, sua eugenia macabra, como se fosse um contingente nazista com a missão de criar uma humanidade perfeita, purificada de todas as doenças e disposta a ser escravizada para servir ao império do novos coronavírus. Imaginação à parte, viveremos a ilusão de vencermos mais esta guerra por fim, quando na verdade é apenas uma trégua. Julgamos ser os reis da Natureza, umbigo do mundo, mas há coisas mais evoluída do que nós, que estão aqui pelo menos há quatro bilhões de anos e não precisam ter uma inteligência como a nossa. Vírus não fazem guerras, eles apenas jogam o Jogo da Evolução.

 

Global Burden of Disease Study 2010, The Lancet, 2012; 380(9859), doi:10.1016/S0140-6736(12)62133-3. Também accessível em http://www.thelancet.com/themed/global-burden-of-disease (acessado em 17/12/12).

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