Junho de 2022 – Vol. 27 – Nº 6
Sérgio Telles
Crime e castigo são questões que atormentam a humanidade desde a desobediência de Eva, que nos fez herdeiros de uma implacável e nunca atenuada punição divina.
Baseado num livro de Sarah Vaughn, a série inglesa “Anatomia de um escândalo” (Netflix) se utiliza da bem-sucedida fórmula já aplicada muitas vezes no cinema, em que crime e castigo são representados no ritual dos tribunais. Tal ritual reproduz, por sua vez, o cenário interno desde sempre intuído por todos, mas iluminado definitivamente por Freud ao descrever o conflito psíquico como decorrente – entre outros fatores – de um ego que luta contra o julgamento e as punições incessantes do superego.
Além desse apelo mais amplo, “Anatomia de um escândalo” tem uma outro elemento muito atual – uma grave acusação de estupro.
Que vivemos numa sociedade patriarcal, machista onde a violência contra a mulher é uma constante e se manifesta de várias maneiras, desde preconceitos, salários injustos, boicote profissional, agressões físicas, estupros e assassinatos, é um fato indiscutível que deve ser combatido vigorosamente com todos as armas que a sociedade dispõe.
Mas não é esse tipo inequívoco de estupro que é tratado em “Anatomia de um escândalo”. Estamos num outro plano, aqui a violência é de outra ordem, ela não é necessariamente física e se exerce por coação, pelo abuso do poder, os fatos não são tão evidentes e explícitos, os limites e transgressões ficam difíceis de precisar – até onde vai o consentimento, onde começa o abuso? De qualquer forma, é uma prática antiga contra a qual constituiu-se mais recentemente uma forte oposição, que, nos Estados Unidos, se organizou socialmente e criou uma ativa militância sob o nome de MeToo.
A filósofa e psicanalista francesa Sabine Prokhoris recentemente escreveu contra os graves desvios do que chama “Feminismo MeToo” – a cultura da denúncia de abusos sexuais por parte dos homens e a sacralização das supostas vítimas, mulheres cujas acusações não podem ser questionadas. À “narrativa patriarcal” se contrapõe uma “narrativa feminista” que vê o homem como “predador”, e não leva em conta a possibilidade de falsos testemunhos (deliberados conscientemente ou derivado de fatores inconscientes) por parte da mulher.
Tal postura não considera que homens, mulheres e crianças mentem e que a vida sexual de todos (homens e mulheres) está permeada por fantasias censuradas, reprimidas, negadas, projetadas, muitas vezes fazendo com que a realidade fática mal se vislumbre no meio do nevoeiro provocado pelos desejos inconscientes.
Ademais, a psicanálise mostra que a memória é pouco confiável, passível de ser remodelada por motivações conscientes e inconscientes e pelas pressões do momento presente. Numa situação como a mostrada em “Anatomia de um escândalo”, em que uma mulher apaixonada, que já praticou inúmeras vezes sexo consensual com seu suposto agressor a quem acusa de estupro, é difícil estabelecer as gradações entre o que é permitido ou não no intercurso sexual num determinado momento. Ademais, não se pode ignorar a influência das flutuações afetivas que ocorrem numa relação amorosa, a emergência de raivas, ciúmes, vinganças que podem condicionar uma acusação. Colocar automaticamente a acusadora como a vítima que não pode ter sua versão checada e examinada, é uma postura ideológica, irracional, que pode levar a grandes injustiças.
“Anatomia de um escândalo” explora com muita pertinência as ambiguidades das emaranhadas situações humanas em jogo no julgamento, deixando claro como é difícil a tarefa de captar a fugidia verdade em meio a tantos interesses conflitantes. Como fazer justiça baseada em afirmações baseadas na memória, cuja confiabilidade é mínima, e que é permanentemente refeita em função dos afetos antigos e atuais, bem como dos interesses do momento presente?
Em “Anatomia de um escândalo” o protagonismo é das mulheres. As duas advogadas, a de defesa e a de acusação, que mostram os impasses dos depoimentos dos envolvidos, a acusadora e a mulher do indiciado, que tem uma decisiva participação no desfecho do caso. Elas não são virtuosas portadoras da pura verdade, apenas seres humanos com as contradições que lhes são próprias.
E são elas quem decide o destino do homem. Teria ele alguma chance?
Publicado no suplemento EU&FS do jornal Valor Econômico em 06/05/2022