Abril de 2022 – Vol. 27 – Nº 4

Belarmino Alves de Azevedo (*1)

Alessandra Gene Mascarenhas (*2)

Hassibe Fuad Seoud (*3)

Sandra Regina Pimenta (*4)

Talvane Marins de Moraes (*5)

(*1) Prof. da Disciplina de Saúde Mental da Universidade Iguaçu (UNIG) e Ex-coordenador do Serviço de Psiquiatria e Psicologia Médica do Instituto Nacional de Infectologia da Fundação Oswaldo Cruz (INI/FIOCRUZ), e-mail: [email protected]

(*2) Preceptora do Internato do Curso Médico da UNIG na Disciplina de Saúde Mental e Psicóloga da Unidade de Emergência Psiquiátrica de Austin;

(*3) Preceptora do Internato do Curso Médico da UNIG na Disciplina de Saúde Mental e Médica Psiquiatra da Unidade de Emergência Psiquiátrica de Austin;

(*4) Preceptora do Internato do Curso Médico da UNIG na Disciplina de Saúde Mental, Profa. da Secretaria de Estado de Educação (SEEDUC, RJ) e Ex-psicóloga do Hospital Geral de Nova Iguaçu (HGNI);

(*5) Prof. da Escola de Magistratura do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e Ex-diretor do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho.


“DEPRECIAÇÕES PERSISTENTES NO CONTEXTO DA PSICOPATIA SOCIOINSTITUCIONAL, RELATO DE CASO”

– Estudo descritivo de caráter narrativo e reflexivo

 RESUMO

O quadro clínico da psicopatia socioinstitucional é constituído por um conjunto de 17 traços psicopatológicos. Outros traços complementares apoiam este diagnóstico. O objetivo deste estudo é tornar evidente um novo traço psicopatológico complementar: as depreciações inadequadas persistentes.

Em um relato de caso do tipo analítico utilizou-se a metodologia qualitativa, com análise psicopatológica das unidades de observação ou traços psicopatológicos.

Como resultados, neste caso institucional, familiar-conjugal, foram positivados 16 dos 17 itens totais do critério diagnóstico de psicopatia socioinstitucional: 8 dos 8 itens dos estilos interrelacional e afetivo-emocional, personalidade psicopática, e 8 dos 9 itens do estilo socioinstitucional psicopático; são citados 6 exemplos de depreciações persistentes, seguidos pelas análises e interpretações pertinentes.

Verificou-se que as depreciações inadequadas persistentes se manifestaram como: 1. uma tendência excessiva de vampirizar os valores alheios, com diversificadas formas de apresentação: desde as manifestações agressivas até as insinuações sutis ou discretas; 2. uma forma de se destacar, às custas de inferiorizar os outros; 3. um crescimento na hierarquia socioinstitucional (familiar), dirigindo-se ao controle do poder; 4. querer abrilhantar seu estereótipo de pessoa talentosa e solucionática.

Concluiu-se que os aspectos psicodinâmicos das depreciações inadequadas persistentes, quando interpretados: 1. constituíram um tipo de defesa da autoestima soberba, expressão narcísica; 2. associaram-se às insensibilidades afetivas-emocionais (afetos superficiais não beneficentes e falta de empatia maleficente); 3. estiveram relacionadas à fase oral-sádica destruidora; 4. foram atributos antissociais associados às maleficências antiética e delitiva.

Palavras chaves: depreciações persistentes, predações, narcisismo, psicopatia socioinstitucional.

 

“PERSISTENT DEPRECIATIONS IN THE CONTEXT OF SOCIO-INSTITUTIONAL PSYCHOPATHY, CASE REPORT”

– Descriptive study of a narrative and reflective nature

 

SUMMARY

The clinical picture of socio-institutional psychopathy consists of a set of seventeen psychopathological features. Other complementary features support this diagnosis. The aim of this study is to make evident a new complementary psychopathological trait: persistent inappropriate depreciations.

In an analytical case report, a qualitative methodology was used, with psychopathological analysis of observation units or psychopathological traits.

As a result, in this institutional family-marital case, sixteen of the seventeen total items of the diagnostic criterion for socio-institutional psychopathy were positive: eight out of eight items from interrelational and affective-emotional styles, psychopathic personality, and eight out of nine items from psychopathic socio-institutional style; six examples of persistent depreciation are cited, followed by relevant analysis and interpretation.

   It was verified that the persistent inappropriate depreciations manifested as: 1. an excessive tendency to vampirize the values ​​of others, with diversified forms of presentation: from aggressive manifestations to subtle or discreet insinuations; 2. a way to stand out at the expense of putting others down; 3. a growth in the socio-institutional (family) hierarchy, towards the control of power; 4. Wanting to brighten up your stereotype of a talented, problem-solving person.

   It was concluded that the psychodynamic aspects of persistente inappropriate depreciation, when interpreted: 1. constituted a type of defense of superb self-esteem, narcissistic expression; 2. associated with affective-emotional insensitivities (superficial non-beneficial affections and lack of maleficent empathy); 3. were related to the destructive oral-sadistic phase; 4. were antisocial attributes associated with unethical and criminal malfeasance.

Key words: persistent depreciations, predations, narcissism, socio-institutional psychopathy

 

1. INTRODUÇÃO

   A depreciação inapropriada e persistente estabelece relações com as expressões: desvalorização; predação; vampirização; diminuição ou anulação da autonomia; desacreditação.

   A diversidade dos traços psicopatológicos do psicopata tem sido evidenciada e acumulada ao longo da produção literária especializada; tem-se: HENRIQUES (2009), distinguindo a contribuição de Cleckley; HARE (1991); SINA (2017); CAMPOS (2014), AZEVEDO et al. (2021), CID 10 (1993), como traços de personalidade; DSM (2013), como características diagnósticas etc.

Em SADOCK et. al. (2017) acrescenta-se outras “Características diagnósticas que apoiam o diagnóstico de Transtorno específico de personalidade antissocial”, denominado aqui de psicopatia. Nestas características ficam incluídas mais tantas outras relevantes, entre elas a ambição, quando se trata da psicopatia socioinstitucional; é a irrefreável ambição, de natureza neurótica ou psicótica, que mobiliza o psicopata socioinstitucional para chegar ao controle do poder ou liderança institucionais.

HARE (2004), em um Simpósio sobre Violência, realizado no Rio de Janeiro, acentua duas características psicopáticas expressivas: o parasitismo e a predação. O parasitismo está incluído entre os 17 itens do quadro clínico de psicopatia socioinstitucional (AZEVEDO et al., 2021); constitui qualquer “ganho” conseguido pelo psicopata, especialmente, mas não exclusivamente, em sua ascendente escalada em direção ao poder institucional. Este alpinismo tem início com a sedução, um tipo de farsa, sustentada fortemente pela autoestima soberba ou arrogante; segue-se pela manipulação. O psicopata manipulador confunde-se com o papel de sedutor e o manipulado é aquele que entende que deve satisfazer os interesses do sedutor-manipulador; vem o parasitismo:  representa os ganhos, que precisam se acumular a fim de criar o prestígio socioinstitucional necessário para constituir a etapa seguinte: o alpinismo socioinstitucional. É por esta condição que o psicopata atinge a sua meta existencial mais importante: o controle do poder (AZEVEDO et al., 2020, AZEVEDO et al., 2021, BABIAK e HARE, 2006, SINA, 2017).

Diz-se, com total pertinência, que o psicopata em sua trajetória institucional, inevitavelmente, deixa um rastro de destruições ou predações: humanas, patrimoniais ou, frequentemente, ambas as formas. Suas maleficências projetam-se em variadas condições: físicas, desde adoecimentos somáticos até a morte; psíquicas, também amplamente variável: ansiedade, depressões, acentuação de transtornos de personalidade, transtorno do estresse pós-traumático, doenças mentais e suicídio; e sociais, perdas de cargos ou empregos.

O objetivo deste estudo foi tornar evidente um novo traço psicopatológico complementar da personalidade psicopática: a depreciação inadequada persistente. A particularidade deste estudo é a originalidade e a importância desta observação, para a clínica da psicopatia socioinstitucional.

Com estes resultados: amplia-se o conhecimento do perfil psicopatológico do psicopata; por ser um traço de personalidade identificável com um nível de dificuldade baixo, colabora-se com o aumento da facilitação diagnóstica da psicopatia socioinstitucional.

2. SUJEITO DO RELATO DE CASO E METODOLOGIA EMPREGADA

Michel, 50 anos de idade, auxiliar de enfermagem em um Hospital Universitário, residente em Sorocaba, S. Paulo, e terceiro irmão entre 3 (três) filhos de pais separados. Encontrou-se em tratamento psicoterapêutico com psicólogo por cerca de 10 meses, com frequência média de duas vezes por semana, no Departamento de Psiquiatria e Psicologia desta Universidade. Teve seu caso clínico escrito, apresentado e discutido em sessões de supervisão clínica nesta unidade assistencial, origem deste relato de caso. Utilizou-se a metodologia qualitativa do tipo analítico, com análise psicopatológica das unidades de observação (RUDIO, 2009), traços de personalidade (CID 10, 1993), características diagnósticas (DSM 5, 2013) ou traços psicopatológicos (AZEVEDO et. al., 2020), referentes aos 17 itens do quadro clínico de psicopatia socioinstitucional (AZEVEDO et al., 2021) e alguns exemplos de atitudes ou expressões depreciativas persistentes na personalidade do sujeito. O profissional supervisor deste caso era possuidor de especialização em Psiquiatria, formação em Psicanálise e com boa experiência diagnóstica em psicopatia socioinstitucional.

Preservaram-se o sigilo absoluto da identidade do sujeito e da instituição, mantendo-as em anonimato e substituindo-as por nomes fictícios, com respeito à guarda da confidencialidade dos dados, à privacidade e à dignidade do sujeito do estudo.  Não há conflito de interesse e nem houve fontes de financiamento para este estudo.

3. RESULTADOS E ANÁLISE DOS RESULTADOS

 Caso clínico socioinstitucional

Michel, 50 anos, terceiro filho entre três irmãos, filhos de pais separados, auxiliar de enfermagem em um Hospital Universitário, casado e residente em Sorocaba, São Paulo.  Vida social de poucas amizades e pai de um casal de adolescentes. Acumula valores pró-sociais com relevo aos seus cuidados paternos e zelo pela família. No entanto, com muita facilidade e frequência atribui avaliações negativas dirigidas às diferentes pessoas, com ênfase às habilidades, ou resultados positivos conseguidos por elas.

   Quadro clínico de psicopatia socioinstitucional:

1. Autoestima soberba. Michel refere-se com acentuada frequência como um culinarista ímpar; conhecedor incomparável nessas habilidades no campo da alimentação;

2. Sedução/Loquacidade.  Em geral, impressiona muito bem e de forma envolvente aos seus interlocutores, utilizando informações aparentemente técnicas, oriundas de áreas do conhecimento alheias à sua formação;

3. Farsa. “Vou embora hoje, porque amanhã, Dia de Finados, o trânsito é muito intenso e perigoso”. Na realidade, tais condições não eram muito acentuadas:  estava envolvido em forte ansiedade para se distanciar das circunstâncias, avaliadas por ele como entediantes e, ao mesmo tempo, desprazerosas e conflitas; uma tentativa de convencimento, uma desculpa para abandonar o contexto no qual convivia;

4. Manipulação.  Sua esposa era mobilizada por ele de forma tirânica, para exclusivamente entender o dever de satisfazê-lo, não raro, nos seus mínimos interesses;  

5. Afetos superficiais. Relativos à mãe em sofrimento, em internação hospitalar e necessitando da sua ajuda e proteção; negou-lhe este amparo, quando outra pessoa, de relações familiares mais distantes, empenhava-se, frequentemente, em atendê-la;

6. Falta de empatia.  Provocou na esposa, sem se sensibilizar, um expressivo sofrimento emocional com repercussões somáticas hipertensivas;

7. Ausência de culpa.  A culpa nunca sucedeu suas ações ou expressões de depreciações alheias. Ao contrário, manifestou-se com um orgulho agressivo, do tipo: “vejam como sou melhor, incomparável, aquela pessoa é desprezível!”; 

8. Inaceitação da sua inadequação.  Acompanhando sua ausência de culpa, existia a ideia errônea de ter feito atitudes indiscutivelmente certas:  projetava o erro integralmente na esposa;

9. Talento diferenciado.  Seu talento voltava-se às suas aplaudidas habilidades em cozinhar muito bem, realmente de forma destacada – um bom culinarista, como ele próprio se referia, que também gostava de ensinar;

10. Abnegação ao trabalho.  Dedicava-se, sem esmorecimento, aos cuidados gerais com a sua família:  nada ocorria que diminuísse sua atenção sobretudo referente aos seus entes queridos;

11. Camaleonismo.  Possuía um elevado nível de adaptabilidade aos diferentes contextos, realizado com muita facilidade; convivia com completo desembaraço com as pessoas de diferentes estratos sociais. Muita desenvoltura nos relacionamentos, desde os funcionários hierarquicamente simples até com aqueles do elevado escalão; 

12. Messias/Solucionático/Salvador da pátria.  Emitia as mais diferentes opiniões sobre diversos assuntos com elevada segurança, confiança e assertividade; surpreendia como conseguia opinar em diferentes temas, mesmo aqueles que, sabidamente pelos demais, não possuísse suficientes experiências;

13. Parasitismo.  Um padrão existencial necessitado de obter benefícios ou vantagens: sua esposa, de forma abnegada, nada deixava que lhe faltasse. Cada vez mais redobrava seus auxílios: trabalhava em vários empregos, para facilitar a vida que ele exigia dela em ter;

14. Alpinismo social.  Ocorreu uma transição das condições socioeconômicas: de simples morador em vila operária ao patamar de classe média alta, às custas da abnegação da esposa;

15. Controle do poder/Liderança.  Em um contexto conjugal, Michel exercia o controle do poder na esfera afetiva-emocional. A esposa deveria permanecer “dominada”, com liberdade apenas para apreciá-lo; concordou em viajar com ela, desde que fossem aceitas todas as suas condições.

Obs.: Em consequência de seus afetos superficiais, insinuações e promessas de trocas afetivas futuras, sua esposa sempre aguardava por uma vida afetiva mais saudável, melhoria que nunca ocorria. Como contrapartida, paradoxalmente procurava atendê-lo, não raro, nas mínimas solicitações e exigências intermináveis – uma relação sadomasoquista, ainda que em intensidade moderada.  

A relação conjugal mantinha-se viva graças a este modelo relacional, regulado tiranicamente por Michel. Controlava com excessiva obstinação os sentimentos da esposa, deixando que fossem expressos somente aqueles que a ele interessavam, sob exigências crescentes; uma dinâmica bem aproximada do fenômeno de tolerância:  cada vez mais, sua esposa via-se na contingência de oferecer-lhe mais atenção e carinho, tentando repetir o nível anterior de satisfação; uma forma de dependência, ou Co dependência que ocorria em ambos, em um modelo de relação disfuncional.

16. Discrepância funcional.   Não identificada. 

17. Inadequações antiéticas ou delitivas.  Presentes as inadequações antiéticas da maleficência, não beneficência e inadequação delitiva. A delitiva pela prestação de uma falsa acusação à esposa de prejudicá-lo em sua tranquilidade no lar, encaminhada à delegacia; maleficência por provocar frequentemente à desestabilização emocional da esposa e não beneficente por não ser grato aos acentuados esforços da parceira, empenhada continuamente nas melhorias das condições de vida de toda a família, especialmente a ele.


Depreciações persistentes identificadas:

1. Ocorreu uma imensa comoção e dor nacionais decorrentes da morte em acidente de avião de um importante, popular e jovem cantora sertaneja – um sentimento nacional muito expressivo também acentuadamente compartilhado pela esposa. Michel, ao contrário de qualquer manifestação afetiva-emocional pertinente ao caso, privilegiou uma racionalidade, para fragilizar os sentimentos da esposa:  “é sempre assim, os jovens cantores de sucesso buscam sempre viagens em pequenos e inseguros aviões, ao contrário dos cantores veteranos”;

2. Uma observação voluntária com uso de expressões ofensivas à uma diarista da esposa: “se ela fosse minha empregada não ficaria nem mais um dia, vagabunda!”;

3. Ainda sobre a diarista: “faz tudo muito mal; passa roupa mal; limpeza horrível etc”, mesmo sendo a profissional bem avaliada pela esposa;

4. Em conversa com uma funcionária da administração do prédio: “aquela porcaria de armário”, referindo-se ao armário do vizinho do apartamento do andar abaixo, quando tratava do assunto sobre vazamento de água do apartamento dele;

5. Dialogando com a esposa: “você quando frequentava à escola “batia muita gazeta, deixava de ir a aula, para fazer outras atividades preferidas?”; insinuando-a como pessoa irresponsável, quando na realidade, sua esposa era sempre muito correta, digna e boa aluna;

6. “Este vestido que você acabou de comprar é bonitinho”, quando, minutos antes, ainda com acentuada indiferença, tinha testemunhado a intensa alegria da mulher diante da compra, realizada com muito carinho por ela. Traduzia um comentário aparentemente sutil, porém incluía uma falta de empatia maleficente e depreciativa.

Reações da pessoa depreciada:

No caso da esposa do Sr. Michel, pessoa sensível às depreciações e possuidora de perfis depressivo e anancástico, a sucessão de depreciações, ainda que sutis, por vezes pouco evidentes, ou aparentemente sem muita importância, determinou prejuízos acumulativos. Surgiram pequenas insatisfações ou perdas aparentemente sem muita importância, que resultaram, em seu somatório, em significativas destruições em sua vida: ansiedades e depressões.

Análise dos Resultados

As depreciações ou desvalorizações frequentemente inadequadas e persistentes aos outros, neste caso, no contexto conjugal, constituem um recurso utilizado em defesa da autoestima soberba e excessiva. Também está associada a uma operação narcísica:  tentativas de elevar-se acima de alguém, ou de outros; uma forma de se destacar, ser superior, reduzindo os valores alheios – desvalorizações persistentes. Refletem atuações associadas à falta de empatia maleficente, ou de maleficência antiética, configurando um atributo antissocial.

As características psicopatológicas das depreciações persistentes em Michel podem ter sustentações nos seguintes aspectos:

1. Tendência excessiva para “vampirizar” os valores da esposa, aqueles que ameaçam a sua imagem narcísica; 

2. Constituir um modo existencial, incluído na personalidade e manifestado nas interrelações;

3. Emergir com frequência, em diferentes contextos, fugindo-lhe ao controle;

4. Objetivar um resultado parasitário – ganho de maior prestígio;

5. Ser uma tentativa de sedução-manipulação:  conduzir seu interlocutor para lhe responder favoravelmente;

6. Determinar um crescimento na hierarquia socioinstitucional, dirigindo-se ao poder;

7.  Abrilhantar seu estereótipo de pessoa talentosa e solucionática;

8. Ser um sujeito aparentemente interessado em estar ligado à realidade; a depreciação pode funcionar como suporte e precursora de futuras e necessárias farsas;

9. Acentuar a existência dos aspectos afetivos-emocionais frágeis alheios;

10. Ser uma forma de mostrar-se com melhor visibilidade em seu contexto familiar: eleva-se ou inferioriza o outro;

11. Realizar heteroavaliações negativas supõe poder sustentar ou desenvolver suas autoavaliações positivas.

 

4. DISCUSSÃO

As depreciações inadequadas persistentes incluem-se nos critérios gerais para traços de personalidade, que compõem o transtorno de personalidade, segundo a DSM5 (2013): um padrão persistente inadequado, que se desvia acentuadamente das expectativas da cultura do indivíduo, neste caso, manifestado em duas áreas: interpessoal e afetiva; padrão inflexível, estável, de longa duração (persistente), provocador de sofrimento clinicamente significativo (ansiedade e depressão) e prejuízo no funcionamento social em outros.

Na DSM-5 (2013) encontramos também os traços de personalidade centrais e essenciais do transtorno de personalidade antissocial, referido aqui como psicopatia. Os centrais são representados pela farsa e manipulação, elementos em torno dos quais circula em elevada frequência a vida interrelacional do psicopata; os traços essenciais são os elementos das inadequações antissociais (“violação dos direitos dos outros”) e as insensibilidades afetivas-emocionais (“padrão difuso de indiferença”).

As inadequações sociais, atuações antissociais, podem não ser identificadas em alguns casos, embora possam existir.  No entanto, as insensibilidades afetivas-emocionais, estilo afetivo-emocional (afetos superficiais e falta de empatia), são geradores das depreciações ou maleficências persistentes, acentuadamente frequentes ou presentes na existência deste transtorno de personalidade.

Assim cabe o entendimento que a maleficência é um traço psicopatológico derivado e comum aos traços centrais, essenciais e da depreciação persistente. Entre os traços psicopatológicos que compõem a psicopatia, a maleficência é o que tem maior difusão e presença na personalidade do psicopata; quando voluntária, com insuficiência afetiva-emocional e ausência de culpa, pode constituir um traço psicopatológico muito representativo da psicopatia.

As maleficências psicopáticas possuem uma ampla diversidade de formas de apresentação e níveis – distribuem-se no espectro de gravidade das maleficências: 

. Leve: manifestação antiética, não beneficência negligente associada aos afetos superficiais;

. Moderado:  maleficência devida à falta de empatia;

. Severo:  maleficência delitiva, com ou sem crueldade.

A predação foi característica psicopática destacada por HARE (2004): a depreciação persistente, aqui mencionada, inclui-se na predação deste autor canadense.

As depreciações persistentes em Michel possuíram o caráter de atuação sobre a realidade de ETCHEGOYEN (1987), decorrente de uma tentativa de sustentação ou desenvolvimento narcísicos relativos à sua autoestima soberba. Constitui uma atitude antissocial, reativa às suas insensibilidades afetiva-emocionais neuróticas ou psicóticas; também estiveram associadas à sua falta de empatia (item 6, em Resultados); estabeleceram íntima concordância ao entendimento de CLECKLEY (1988): “características marcantes do psicopata são a sua ausência de empatia e a falta de senso de responsabilidade emocional, tendo como consequência a ausência de culpa. São sujeitos incapazes de priorizar as respostas emocionais de suas ações, mostram-se impulsivos e envolvem terceiros em situações danosas.”

Um paralelo com o transtorno delirante persistente (MAUAD et al., 2021) mostra-se pertinente parcialmente. Neste caso, ocorrem demonstrações claramente psicóticas, delirantes e persistentes, mobilizadas por uma realidade imaginária. Nas depreciações persistentes a motivação é a partir de uma reatividade à realidade, ainda não aceita. Acresce-se a questão da necessidade de reforço narcísico no psicopata, com o acúmulo de ganhos alheios aos padrões sociais. Outra semelhança se faz com o transtorno delirante querelante ou reivindicatório (HAMON, 2020), caracterizado pela incontrolável insistência em apresentar queixas, as mais diversas, e atreladas ao seu contexto existencial. Tais pessoas com muita frequência se veem implicadas com questões jurídicas, consequências de inadequações delitivas. O psicopata socioinstitucional com as suas depreciações mostra-se mais frequentemente articulado aos aspectos relativos às inadequações antiéticas: não beneficência negligente e falta de empatia maleficente; mais raramente, à inadequação delitiva maleficente.

Descaso, desprezo ou menosprezo às normas ou aos direitos alheios na psicopatia aproximam-se dos seus afetos superficiais, portanto da indiferença, uma omissão.

 A depreciação também está associada à falta de empatia; faz-se pelo tanto que inclui uma atuação; na falta de empatia, a expressividade é mais acentuada que nos afetos superficiais e ambos compõem o amplo universo das insensibilidades psicopáticas, ao tempo que configuram as suas ações antiéticas. Não raro, os afetos superficiais e a falta de empatia também são precursores ou concomitantes às inadequações delitivas. 

O sentido negativo na expressão depreciação pode ainda ser incluído no campo da normalidade, se acompanhada por algumas características: ocorre quando ela é seguida por consciência, desconforto, arrependimento e em ser controlada, não havendo outras repetições. No entanto, como recurso neurótico, a depreciação, ainda que se mostre consciente, é deficiente do item controle e persiste sob culpabilidade. Na depreciação psicótica, mais grave, as funções consciência e controle estão ausentes.

  Já a depreciação psicopática, também patológica, mas diferente das duas anteriores, está a serviço das inadequações antissociais, sob expressivas e sempre presentes maleficência, insensibilidade e com a culpabilidade ausente. Representa uma oralidade sádica.

A etapa oral-canibal, acrescentada por Karl Abraham, segundo RAPPAPORT, 1981, corresponde ao segundo período da fase oral, iniciada por volta dos seis meses de idade, marcada pelo surgimento dos dentes. Antes a criança apenas incorporava, a agressividade existia apenas na fantasia; agora já pode expressá-la concretamente, mordendo e obtendo satisfação (sadismo). É um processo adaptativo. Durante este período oral-sádico, a ambivalência é acentuada – tendências hostis e amistosas – em relação aos objetos, tal como aparece, mais tarde, um misto de amor e ódio.

Psicodinamicamente a depreciação é multifuncional, ou multifacetada, portanto, ocorre com elevada frequência e formas de apresentação nas interrelações sociais do psicopata, privilegiando seus interesses: mostrou-se agressiva ou sutil, mas sempre maleficente. Articula-se às suas ações culposas impostas aos outros ao mesmo tempo em que ele também não aceita responsabilidade sobre estas inadequações

É destacável a relação do psicopata com o anancástico, quanto aos quesitos vicissitudes da culpabilidade e da depreciação: o psicopata é possuidor de uma auto culpabilidade muito reduzida, ou ausente, mas, além da sua elevada plasticidade depreciativa, tem facilidade de projetar a culpa nos outros; por outro lado, o anancástico é ávido por culpabilizar-se e autodepreciar-se, e tais reações acentuam-se pela influência ou maleficência psicopática.

Parece-nos muito relevante, no contexto do processo psicoterapêutico (Etchegoyen, 1987), o conhecimento e práxis profissionais não só do diagnóstico de psicopatia socioinstitucional, como também das implicações psicodinâmicas que levem em consideração a elevada capacidade e plasticidade depreciativas do psicopata.

 

5. CONCLUSÕES

Neste caso de psicopatia socioinstitucional, familiar-conjugal, observou-se que as depreciações inadequadas e persistentes, em seus aspectos psicodinâmicos:

– Manifestaram-se como defesa ou acentuação da sua autoestima soberba, ou narcísica;

– Constituíram uma tentativa de reforço egóico;

Estiveram relacionadas à fase oral-sádica destruidora;

– Derivaram-se das insensibilidades afetivas-emocionais (afetos superficiais não beneficentes, falta de empatia maleficente);

– Estiveram associadas ao comportamento antiético maleficente e às inadequações delitivas;

Estabeleceram relação com a anulação da autonomia alheia, uma outra característica antiética.

 

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