Março de 2020 – Vol. 25 – Nº 3

Alice Aita Cacilhas

 

“Por mais diversas que sejam suas interações,

 por mais sutis que sejam suas interferências,

 os ritmos corporais e os ritmos psíquicos

 seguem caminhos bem distintos.”

Danièle Brun

 

Introdução A nefrologia pediátrica tem experimentado uma revolução em suas técnicas nos últimos anos. Os avanços da medicina na área dos transplantes, por exemplo, têm se refletido na sobrevida dos pacientes com insuficiência renal crônica (IRC). Entretanto, enquanto estudos sobre técnica, imunologia, histocompatibilidade e preservação do órgão a ser transplantado são cada vez mais frequentes, ainda é pequeno o conhecimento do que ocorre sob o ponto de vista emocional, neuro cognitivo e psiquiátrico dos pacientes que necessitam e se submetem a um transplante renal; de suas famílias; bem como sobre a qualidade de vida pós-transplante. Sabe-se que pacientes com patologias clínicas crônicas, adultos ou crianças, não estão isentos de apresentar comorbidade psiquiátrica. Sintomas emocionais e síndromes psiquiátricas, por alterarem em algum nível o funcionamento mental, podem interferir de forma importante na aderência do paciente ao tratamento e, portanto, no êxito de um transplante. Esse é um fator de extrema importância não só pelo sofrimento individual e familiar que os sintomas emocionais e as possíveis complicações de uma não aderência adequada podem ocasionar, como também por se tratar de uma população para a qual o investimento médico é intenso e dispendioso. Acrescente-se ainda o envolvimento médico cirúrgico de uma pessoa sadia, no caso de o doador ser vivo. Pode-se inferir que toda essa problemática é aumentada quando tratamos de crianças e adolescentes em pleno processo de desenvolvimento físico, cognitivo e emocional. Limitações provocadas pela doença inicial podem interferir de forma significativa nesse processo, podendo ocasionar defasagem no desenvolvimento dessas áreas em relação ao esperado para a respectiva idade cronológica, bem como criar lacunas nas áreas cognitiva e emocional, podendo comprometer o potencial e a qualidade de vida desses pacientes. Dessa forma, o presente trabalho objetiva refletir sobre a contribuição que um psiquiatra pode trazer à equipe de nefrologia pediátrica e ao paciente com doença renal crônica em estágio avançado ou já transplantado e sua família.

O panorama atual O transplante renal tem sido o tratamento de escolha para pacientes com IRC em estágio final. Alguns estudos têm demonstrado que o transplante prolonga de forma significativa a vida de crianças e adolescentes com IRC, bem como parece determinar uma melhora sob o ponto de vista social, psicológico e escolar em relação a crianças mantidas em diálise crônica. Ainda assim, é pequeno o conhecimento do impacto emocional e cognitivo dessa população. A maioria dos estudos baseia-se em abordagens psicométricas, que tendem a simplificar a complexa experiência pessoal desses pacientes e suas famílias. Embora importantes para conhecer certos aspectos dessa população, a maior parte desses estudos não reflete a realidade em nosso meio, pouco versa sobre as alterações na estrutura das famílias, a formação da identidade do paciente, bem como sobre comorbidades psiquiátricas em pacientes e familiares que passam pelo processo de uma doença renal crônica ou um transplante. Sabe-se que o entendimento da mente humana requer tempo e percepção de uma gama de fatores subjetivos envolvidos na complexidade expressa nas relações interpessoais e nas vicissitudes próprias do desenvolvimento individual. É um entendimento delicado de ser objetivado pelas próprias características inerentes ao funcionamento psíquico humano, o que torna ainda mais difíceis os estudos nessa população.

O psiquiatra focalizando o problema A primeira questão a ser levantada é que falar de crianças e adolescentes portadores de IRC é falar de uma alteração do curso natural da vida, tanto para elas quanto para suas famílias. As constantes e múltiplas internações hospitalares, os diversos procedimentos diagnósticos e terapêuticos a que se submetem são situações, na maioria das vezes, desagradáveis, desconhecidas e/ou dolorosas. Impõem um estilo de vida diferente do que usualmente pensamos ser próprio da infância. Da mesma forma, ter um filho cronicamente doente pode inverter o sentido habitual da expectativa que se tem com a paternidade, de que os filhos viverão mais que os pais. Assim, a doença é uma situação traumática que passa a fazer parte do sistema psíquico do indivíduo, produzindo um corte na sua história pessoal. O contato com a doença e a possibilidade da morte provocam no ser humano sentimentos de intensa angústia pela percepção de sua própria finitude, pelo medo do desconhecido e por reflexões sobre o significado que deu e dará agora a sua própria vida. Por meio desse contato, defronta-se com uma imensa fragilidade, à semelhança de um bebê indefeso, dependente e impotente diante da imensidão do mundo. A maneira como cada paciente/família lidará com esse “desconhecido” dependerá de muitos fatores. Alguns mais claros e outros mais obscuros, tanto para eles como para a equipe que os atende.

A família frente ao adoecer da criança.

É difícil pensar nos aspectos emocionais de uma criança sem reportar-se ao núcleo familiar como um todo. O nascimento de um filho é recheado de expectativas. Desde um mais simples comentário como “ele será jogador de futebol” – dito em consequência de um movimento intrauterino interpretado como um chute – até a expectativa de que nasça saudável, vários papéis e expectativas vão sendo depositados na criança, muitos dos quais representando desejos parentais muito primitivos ou fantasiosos. As expectativas com a maternidade e a paternidade estão diretamente relacionadas à criança. Ser um bom pai ou boa mãe é um desejo humano cuja realização dependerá de muitos fatores, inclusive das experiências que tiveram com seus próprios pais (terem se sentido bons filhos ou não; terem sentido seus pais como bons pais ou não). Os filhos são assim, inevitavelmente, uma amálgama formada pelas vivências, desejos e expectativas de seus próprios pais, pelas suas próprias vivências e características pessoais e pelos fatores ambientais aos quais estão sujeitos. Quando se instala uma doença, defronta-se com “um primeiro adoecer ou uma primeira morte”: a das expectativas de que o filho goze de perfeita saúde e de “que será tudo aquilo que foi imaginado para ele”. A doença é uma “tormenta” física que vem acompanhada por uma psíquica. Racionalmente muitos pais entendem os cuidados e seguem a prescrição. Entretanto, do ponto de vista da saúde mental, podem apresentar sérias dificuldades que passam despercebidas à equipe se não investigadas. A presença de um fator como uma doença crônica interfere nas expectativas, nas interações familiares e pode determinar padrões muito específicos de relacionamento. Alguns pais conseguem, no decorrer do tempo, lidar com essa realidade e modificar suas expectativas, tornando-as mais de acordo com as limitações que a doença traz. Para outros, entretanto, aqui já começa uma crise emocional com a qual não conseguem lidar. É como imaginarmos “uma tormenta” sem termos alguma esperança (algum recurso emocional) de que o tempo traga a “calmaria”. Isso pode ser expresso por meio de muitos sintomas emocionais ou muitas reações negativas em relação à equipe ou ao tratamento, como uma não aderência.

Exemplo 1: Uma maternidade diferente. No primeiro contato com Ana, mãe de Gabriel, hoje com 8 anos, ouvimos: “Desde que meu filho ficou doente, eu e meu marido fizemos de tudo para salvá-lo. Hoje fico feliz ao olhá-lo como uma criança transplantada há quatro anos e que nunca teve intercorrências importantes. Está na escola, tem amigos e, diferente do que eu pensava que seria, ele não demonstra problemas maiores com o fato de ser transplantado. Fala disso ‘numa boa’ com seus coleguinhas. Só que, como mãe, me sinto estranha com ele. Parece que a doença interrompeu o curso normal de nossa relação. Com meu outro filho, minhas preocupações são de outra ordem; consigo afagá-lo, apertá-lo, beijá-lo com mais espontaneidade. Com Gabriel, não, parece que sou uma mãe má, que estou sempre atrás cobrando se está tomando os remédios, se está se alimentando de forma correta. Certa vez, ele, percebendo-se disso, me disse que eu não o amava, que amava mais o irmão. Ele não faz ideia do que eu abri mão na minha vida para vê-lo bem; e não me arrependo de nada. Só que reconheço que a maneira de eu me aproximar dele é com o cuidado com a doença, que sempre foi a preocupação mais forte na minha cabeça. Acho que ele tem razão, acabo por vezes sendo uma técnica, não uma mãe. Sei que ainda vai custar muito para que ele entenda que essa é a forma como consigo demonstrar o meu amor, se um dia ele conseguir entender. E isso dói em mim, porque sei o quanto seria importante eu fazer diferente. Só que eu também fui pega de surpresa nessa situação e, no meio da guerra que vivemos, foi essa a forma que achei para sobrevivermos. As famílias normalmente não passam por isso.”

Nesse relato, Ana mostra a emoção e o pesar diante de sua maternidade normal frustrada. Casualidade ou não, após restabelecido certo equilíbrio clínico – um transplante bem-sucedido –, Ana passou a padecer de uma importante alteração hormonal de causa desconhecida, cuja consequência é significativa apatia e falta de libido. Raiva e culpa intensas são usualmente vistas nas famílias das crianças doentes. São sentimentos tão fortes que precisam ser descarregados. Nessa situação, é possível levantar a hipótese de que sentimentos negativos intensos passaram a ser “descarregados organicamente”, causando a alteração hormonal da mãe. Danièle Brun13 salienta que uma criança em perigo de morte, amputada nas suas promessas e nas suas perspectivas de vida, põe a mãe também em perigo.

Ela dá à mãe a impressão de carregar a morte consigo. Evitar-lhe a morte não significa que muitas das promessas de vida que ela trazia em si não tenham sido destruídas. Uma melhora clínica não necessariamente traz um correspondente de mudança psíquica favorável. Se, por um lado, a família se contenta com as melhoras clínicas, por outro, ainda que racionalmente nos pareça paradoxal, pode padecer de intenso sofrimento mental por não conseguir se desvencilhar da impressão que o medo e a representação da morte da criança deixam em suas mentes, padrões psíquicos aos quais se acostumaram ao longo da doença. Da mesma forma, melhorar do ponto de vista objetivo, clinicamente, não é o mesmo que recuperar aquele “filho perdido”, aquele cujas representações na mente dos pais, cujo potencial e as expectativas de vida foram interrompidas pelo adoecer. A melhora clínica está longe de trazer de volta aquela criança normal, e é para esta nova realidade psíquica que os pais terão de achar o equilíbrio como família e como indivíduos.

Os processos de desenvolvimento frente à doença Crianças com doenças crônicas de início precoce levantam muitos questionamentos ainda pouco estudados na literatura: como se dá o processo de desenvolvimento cognitivo e emocional quando têm de se defrontar com a esperada crescente independização e busca de autonomia, próprias do desenvolvimento humano, diante de uma situação crônica de dependência de cuidados e limitações? Como integram sua doença a suas vidas pessoais à imagem corporal, às expectativas de futuro? Como as alterações metabólicas que apresentam interferem no desenvolvimento neuro cognitivo e emocional? Que papel representam para a família, que tem de cuidá-las de forma diferente daquela como se cuida de uma criança saudável? Alguns estudos observaram que crianças que desenvolveram doença renal em idades muito precoces apresentavam rendimento intelectual mais baixo que as afetadas mais tardiamente. O início precoce também pode interferir na formação da capacidade simbólica, função que nos permite pensar e verbalizar o que sentimos. Assim, quanto mais velha for a criança ao adoecer, melhores deverão ser suas condições para lidar com o dano que a doença representa. Quando a doença incide ou agrava-se mais tardiamente, outros fatores psíquicos entram em jogo. Na adolescência, por exemplo, a busca por uma identidade adulta e os mecanismos mentais que têm de ser trabalhados nesse processo podem se expressar na dificuldade com cuidados, com aspectos da sexualidade, ou mesmo na possibilidade de sentir-se bem em um convívio social com pessoas da mesma idade.

Exemplo 2: A criança que não pode crescer A equipe de nefrologia pediátrica solicita consultoria psiquiátrica preocupada com o fato de Zeca, um menino de 9 anos, negar-se a comer alimentos sólidos e realizar sondagem vesical, por não controlar o esfíncter. Alimentar-se melhor e realizar sondagem se riam pré-requisitos básicos para que ele entrasse em lista de transplante renal. Portador de IRC e imperfuração anal com colostomia, iniciou diálise peritoneal ambulatorial contínua (CAPD) aos 18 meses. Zeca, fruto de um relacionamento extraconjugal do pai, perdeu a mãe quando tinha oito meses de idade. Foi, então, morar com a avó paterna, que recentemente havia perdido o marido. A chegada do menino foi muito festejada pela avó, que colocou um berço ao lado de sua cama, no qual o menino dorme até hoje. Seu desenvolvimento psicomotor sempre foi atrasado: começou a andar com 3 anos; aos 7, não conhecia histórias infantis como “Os Três Porquinhos” ou “Chapeuzinho Vermelho”; aos 9, não sabia distinguir as cores; não conseguia desenhar uma pessoa com todos os membros e partes do rosto (nariz, boca e olhos); só com ajuda conseguia montar um quebra-cabeças de quatro peças. Nunca havia frequentado a escola. Seu atraso de desenvolvimento era visível, não sendo difícil imaginar um retardo mental importante. A questão que se colocava era o quanto esse retardo era orgânico ou funcional. Foi observado que, ao mesmo tempo em que não apresentava noções mínimas de discriminação corporal e espaço-temporal (boca e sua função; noções de dentro/fora, na frente/atrás; sabores dos alimentos), eventualmente era capaz de dar respostas mais organizadas. Esses momentos eram ligados, de alguma forma, aos estímulos relacionados à sua doença, ao hospital ou, em menor proporção, a estímulos de programas de televisão, que via durante as sessões de hemodiálise. Isso fez pensar que o contato com a equipe médica, a estrutura hospitalar e a disponibilidade familiar em torno da doença (raramente faltavam a uma consulta médica) ofereciam uma experiência de constância afetiva em sua vida. Por outro lado, muitas daquelas situações usuais que estamos habituados a ver na vida de uma criança não estavam presentes na de Zeca. Este não tinha contato com outras crianças, parecendo também sua troca com os adultos ser mantida em nível que não acompanhava sua idade cronológica. Pelo menos do ponto de vista teórico, espera-se que a criança tenha vivência de alguns estímulos que darão a ela a base de experiência para a aquisição de inúmeros conceitos mentais que permitirão a simbolização. Zeca foi atendido regularmente duas vezes por semana visando desenvolver funções muito primárias que se pensava que o ajudariam tanto para controle do esfíncter quanto para se alimentar melhor, o que, de fato, começou a acontecer gradativamente no segundo mês de atendimento. Hoje, dois anos depois, Zeca está transplantado e frequenta o jardim de infância. Sabe escrever seu nome, e seus desenhos estão evoluindo em qualidade.

Exemplo 3: A adolescência interferindo nos cuidados com a doença Marco é um adolescente de 17 anos. Solicitou atendimento por sentir-se envergonhado com seu problema renal. Acha que vai ser discriminado em função dele. Tem medo de conversar com as pessoas (medo de falar coisas erradas) e de fazer perguntas em aula. Não vai muito a festas, dizendo não ser “ligado” e, também ter vergonha. Gosta de uma menina, já a pediu em namoro, mas ela não aceitou, e ele não sabe o porquê. Na escola, repetiu de ano, pois teve muitas faltas por internações, mas acha que, se tivesse estudado mais, teria passado. Os pais são vistos como bons, mas “não o deixam sair, ir dormir em casa de amigos ou de familiares”. Marco acha que os pais não têm confiança nele, exemplificando que não o deixam sozinho em casa, achando que ele não vai tomar a medicação corretamente. Refere que há muita cobrança dos pais em relação à hora de tomar os remédios e gostaria que eles deixassem isso por conta dele. Assim, poderia tomá-los na hora que preferisse. Nega desentendimentos com os pais por saídas ou outras exigências adolescentes. Marco mostra que os cuidados com a doença sofrem influência do momento de desenvolvimento pelo qual está passando. Portador de patologia controlada clinicamente desde a infância, sempre aderiu bem ao tratamento e teve um bom desenvolvimento. No processo de busca de identidade, próprio da adolescência, passou a tentar avaliar seus limites. Talvez por sentir-se “discriminado” ou “inferior esteticamente” aos outros – agora já mostrando alterações físicas em consequência da doença –, sua busca de autonomia se expressa mais fortemente no como fazer os cuidados prescritos. Ao achar que pode fazer como quiser, mostra um pensamento típico adolescente, no qual a onipotência impede que perceba os riscos que corre.

A criança com IRC e comorbidade psiquiátrica.

Como foi salientado anteriormente, os pacientes clínicos não estão isentos de apresentar comorbidade psiquiátrica. Diante de tantas alterações clínicas, familiares e pessoais causadas pela doença de origem, por vezes torna-se difícil discernir o fator causal maior de determinados sintomas. Ainda temos pouco conhecimento sobre os tipos de comorbidades mais frequentes nessa população. Entretanto, como certamente elas existem, não podemos deixar de investigá-las.

Exemplo 4: Depressão após o transplante Alex, 11 anos, transplantado há um ano, tem história de nefropatia desde os 9 anos. Não foi registrada alteração de desenvolvimento; está na escola, onde tira boas notas. Algum tempo após o transplante, começou a apresentar intensa irritabilidade, segundo familiares, brigando com todos em casa e na escola. Informa que não sabe de onde vem essa irritação, dizendo “Dá um nervoso por dentro”. Apresenta insônia e sintomas obsessivos. Tem história familiar de depressão e alcoolismo. Foi diagnosticada depressão, e iniciou-se tratamento com antidepressivo. Um mês depois, Alex esbateu os sintomas depressivos, contando sentir-se bem melhor, voltando ao convívio social prévio ao transplante.

O paciente/família frente ao nefrologista A relação de pacientes e familiares com a equipe médica de nefrologia apresenta peculiaridades importantes. Os médicos, ao mesmo tempo em que podem dar um destino diferente à IRC com suas técnicas especializadas, também podem estar no papel de “mensageiros das más notícias” sempre que a doença piora. A possibilidade de transplante torna mais complexa essa relação, já que, para muitos, mostrar os sentimentos negativos em relação à doença e à equipe, ou mesmo as dificuldades de realizar o tratamento como prescrito, pode criar a fantasia de que serão excluídos da possibilidade de realizar um transplante.

Exemplo 5: A diálise truncando a comunicação entre paciente e médico A psiquiatra é contatada pela equipe para avaliar Carlos, um rapaz de 18 anos, com IRC desde a infância. A doença foi controlada clinicamente até alguns meses antes, quando Carlos precisou iniciar hemodiálise. É observado pela nefrologista que o relacionamento entre os dois sempre foi bom, que Carlos conversava com ela e trazia seus problemas. Desde a indicação de hemodiálise e, portanto, entrada na lista de transplante, percebeu que ele não mais falava com ela como antes; quando ela entrava na sala de hemodiálise, ele fechava os olhos como se estivesse dormindo, ou respondia laconicamente a suas perguntas, nunca se queixando de nada. Temia inclusive que ele não aceitasse ser avaliado pela psiquiatria.

Para surpresa de ambas as médicas, Carlos prontamente aceitou conversar com a psiquiatra quando esta fez contato. Na consulta, falou bastante e relatou, em relação à hemodiálise, várias queixas que até então não conseguira falar com sua médica assistente. Parecia estar desconfiado sobre se aquele tratamento realmente era bom, já que se sentia pior quando saía da sessão de diálise do que quando entrava. Também falou de sua angústia quanto à espera por um transplante e de como se sentia diferente de seus colegas de escola, os quais já trabalhavam, jogavam futebol com frequência e faziam planos para o futuro. Queixava-se de que, com a fístula, necessária para realizar a diálise, tinha que ter cuidado se jogasse futebol, e que seus colegas reclamavam que ele não tinha resistência. Esperando um transplante, achava que ninguém o contrataria para um trabalho. Conversando depois com a nefrologista, esta relata sua apreensão com o paciente e seu desconforto por ele estar assim com ela, mostrando-se sensível à provável causa desse “desajuste entre ambos”, dizendo achar que, possivelmente, esteja ligado ao fato de ela ser a portadora das más notícias: ter que fazer diálise, mas ainda não ter um doador. Aqui, a psiquiatra, por estar num campo mais neutro – não ser a responsável direta pela prescrição e pelas indicações de procedimentos dolorosos e desconhecidos –, pode ajudar o paciente a se reaproximar de seu médico, tentando ajudá-lo a perceber que seus sentimentos negativos fazem parte de um processo natural de lidar com a doença e assegurando que essa aproximação auxiliará muito mais no processo de transplante, ao invés de excluí-lo, como, em geral, é a fantasia feita por pacientes nessa situação.

Comentários finais.

Foram esboçadas aqui algumas observações realizadas no trabalho da consultoria psiquiátrica junto a uma equipe de transplante renal pediátrico, visando mostrar a diversidade de situações psíquicas com que nos defrontamos ao trabalhar com pacientes com IRC ou transplantados. Entretanto, chama a atenção a escassez de bons estudos na literatura no que tange às áreas neuro cognitiva e psicossocial desses pacientes e suas famílias, à qualidade de vida pós-transplante e aos critérios para avaliá-la, já que estes podem ser diferentes para médicos e pacientes. Isso remete à questão do que é buscado por cada um. “O paciente luta para entender a experiência do desconhecido, enquanto o médico luta para excluir a incerteza da experiência.”1 É da natureza humana, muitas vezes, buscar fórmulas, regras ou técnicas que “digam o que fazer”, como forma de se “livrar” da angústia causada pelo desconhecido. E é aqui que o psiquiatra pode trazer sua maior ajuda à equipe clínica: achar outras formas de lidar com o desconhecido ou, quem sabe, conhecê-lo um pouquinho mais. O objeto de estudo, de observação e de intervenção do nefrologista e do psiquiatra é o mesmo: a pessoa que está doente. O que nos difere concerne muito mais ao foco pelo qual abordamos do que ao objetivo

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final: o tratamento com as técnicas mais adequadas. O importante é sabermos que não são focos excludentes, muito antes pelo contrário. Ao somarmos nosso instrumental e conhecimento, podemos buscar como ““resultado uma visão mais global da situação e, possivelmente, um grau de satisfação maior para técnicos, pacientes e famílias.

Alice Aita Cacilhas: Médica, Psiquiatra pela UFRGS e Psicoterapeuta, Mestre em Psiquiatria pela UFRGS, Professora da FUMM e do Centro de Estudos Psiquiátricos Mário Martins, Coordenadora do Curso de Especialização em Psiquiatria Prof. David Zimmermann, Coordenadora dos Estágios Curriculares em Psiquiatria da FUMM.

Este artigo faz parte do Livro comemorativo dos 30 anos da Fundação Universitária Mário Martins.

 

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