Walmor J. Piccinini
No começo do século o cuidado aos doentes mentais era mantido em grandes asilos onde cuidadores e cuidados viviam isolados da grande sociedade. Asilos muito povoados, escassos recursos terapêuticos dependendo de uma mão de obra precária constituída de ex – homens do campo, guardas aposentados e ex-policiais. As teorias de Morel deprimiam os cuidadores, pois a ideia de uma matriz degenerada dominava muitas mentes. Os médicos, conhecidos como alienistas eram um grupo à parte da medicina tradicional. Eram temidos porque um diagnóstico seu poderia significar a desgraça para o paciente e sua família. Neste ambiente deprimido que não podia ser pior, surgiu algo ainda mais terrível que foi a primeira guerra mundial (1914-1918).
A guerra perturba a vida de todo mundo e desestabiliza a ordem social. Os médicos de asilo foram convocados a trabalhar na frente de batalha para lidar com o crescente problema de crises emocionais dos soldados que enfrentavam a mais estúpida e insana das guerras que foi a Primeira Guerra Mundial. A guerra começou com a formação de blocos. A tríplice Entente que era formada pela Inglaterra, França e Rússia, mais tarde entraram países dos outros continentes como os Estados Unidos da América e até o Brasil, em 1917. Resumindo, Alemanha brigava com a Inglaterra por causa do mercado consumidor. Alemanha-Itália contra Inglaterra e França por disputas coloniais. Alemanha e França tinham uma questão inacabada da guerra de 1870, a tomada da Província da Alsácia-Lorena pelos alemães. Áustria-Hungria disputavam com os Russos a região eslava.
Uma das marcas do conflito foi a guerra de trincheiras, de 1915-1918 foi algo tão terrível que deve ir para o livro de recordes da estupidez humana. As linhas de trincheiras surgiram em setembro de 1914, quando alemães, que haviam invadido a França, foram barrados perto de Paris. “Decididos a não retroceder nenhum palmo de território conquistado, eles iniciaram a construção das valas ao longo de toda a frente de combate. Vendo os alemães fortificarem-se, os aliados também cavaram seus próprios abrigos. Em poucos meses, as linhas de trincheiras estenderam-se da Suíça até o litoral norte da França por mais de 600 quilômetros. Foi então que começou um longo impasse. Os dois lados tentavam quebrar a guarda do oponente com ataques e contra-ataques em massa. Ficavam separados por uma faixa de lama de menos de 300 metros, a “terra de ninguém”. Durante os anos da guerra, viver nas trincheiras tornou-se uma mistura de miséria, horror e coragem”. Neste ambiente terrível começaram a surgir quadros de descontrole emocional que depois receberam o nome de “fadiga de combate”, “neurose de guerra” “shell shock” que de início foram encarados como covardia e muitos soldados foram fuzilados. Depois de mais de 200 fuzilamentos por parte dos aliados e 58 por parte dos alemães, os psiquiatras foram chamados.
Um relato fantasioso e ingênuo da participação da psiquiatria encontrei num velho número do American J. Of Psychiatry, o discurso de posse na American Orthopsychiatry Association por Thomas W. Salmon (1876-1927).
Existiu há mito tempo uma pobre mocinha que sempre viveu em prisões, hospícios e asilos e que foi um dia adotada e levada a viver na casa das Ciências Médicas onde era relegada A PIA DA COZINHA. Trabalhava no escuro, sem ser vista, conhecida ou respeitada. Vestia-se com os restos que as irmãs jogavam fora. Estas, conhecidas como Medicina e Cirurgia, eram formosas e, com justiça gozavam de grande fama. Eram convidadas pelos figurões mais importantes da época e brilhavam nos salões do Respeito Popular. Chegou a época de um grande baile, conhecido como a Primeira guerra Mundial. Todos quantos viviam na Casa das Ciências Médicas esperavam receber convites e, naturalmente Medicina e Cirurgia, foram as primeiras a serem contempladas. É claro que ninguém se lembrou nem pensou na Pequena Psiquiatria, pois, esquecemos de dizê-lo, assim se chamava a pobrezinha. Para surpresa dela, a sua fada madrinha a “Necessidade Pública” procurou-a e disse-lhe que deveria ir ao baile, o que ela fez atemorizada. Como é sabido, este baile foi um grande sucesso. Todas as moças que lá foram e todas as moças que lá foram tentaram dançar com o príncipe “Reconhecimento Público” que assistia a festa. Muitas foram ignoradas e, para espanto geral o príncipe preferiu dançar coma Pequena Psiquiatria com quem parecia estar apaixonado. O príncipe Reconhecimento Público achou-a diferente, encantadora, bondosa, simples, compreensiva e útil. Quando em 1918 bateu a meia-noite e findado o baile, a Pequena Psiquiatria desapareceu na escuridão e ninguém saberia dizer quem era e de onde vinha. O Príncipe encontrou seu cinto onde estava escrita a palavra Utilidade.
A guerra terminou com a vitória dos aliados, a Alemanha rendeu-se e assinou o tratado de Versalhes que, por sua dureza serviu de motivo para nova guerra ainda mais terrível, a Segunda Guerra Mundial. Pequeno resumo do Tratado de Versalhes imposto pelos vencedores à Alemanha;Devolução dos territórios da Alsácia-Lorena à França; Ceder outras regiões à Bélgica, à Dinamarca e à Polônia. Pagar indenização de guerra. Não ter exército superior a 100 mil homens. Proibição de Marinha de Guerra, artilharia pesada, tanques e aviões. Proibição de indústria bélica. A Alemanha se compromete a reparar todos os danos causados à população civil das potências aliadas e seus bens. Estas condições drásticas provocaram grande miséria na Alemanha e foi o caldo para surgir uma liderança autocrática e vingativa. As potências europeias, por causa de mudanças políticas (incluindo o desaparecimento de quatro impérios e o nascimento de Novas nações) e pela ascensão das ideologias (fascismo e comunismo) que teriam uma influência notável durante as décadas seguintes.
O grande legado desta guerra seria, finalmente, um conflito muito maior: a segunda guerra mundial. Assim, com a “guerra que colocaria um fim a todas as guerras”, o século XX começou na prática.
No intervalo entre as duas guerras tivemos acontecimentos importantes como a Quebra da Bolsa de Nova York, em 1929 e a subsequente crise mundial. O mundo era dominado por regimes autoritários, Hitler na Alemanha, Mussolini na Itália, Getúlio Vargas no Brasil. Um fato extraordinário foi a perseguição aos judeus em toda a Europa, principalmente na Alemanha e Áustria. Começaram as fugas para onde fosse possível.
Segundo Edward Shorter, no período de 1933 a 1944 cerca de 4 mil médicos alemães e austríacos buscaram refúgio nos EUA, entre eles cerca de 250 psiquiatras e 50 psicanalistas muito conhecidos e que tiveram profunda influência na psiquiatria americana. Franz Alexander viera antes em 1930 como professor convidado da Universidade de Chicago. Dois anos depois fundou o Instituto Psicanalítico de Chicago. Com a subida dos nazistas ao poder não pode mais retornar. Como ele muitos outros analistas vieram para os Estados Unidos e transformaram a psiquiatria americana.
O mundo já estava em conflito em vários lugares, mas se considera a invasão da Polônia em 1 de setembro de 1939 como a data de início da mais mortífera guerra que envolveu praticamente todas as nações do mundo. O final da guerra tem várias datas, mas se costuma festejar seu final em 8 de maio de 1945.
Esta terrível guerra provocou profundas transformações na humanidade, revelou as melhores e as piores características dos seres humanos. Vamos tentar entender sua influência na Medicina e, particularmente na Psiquiatria.
Neste artigo vamos ampliar os limites de tempo para compreender o que se passou. Vamos pensar a psiquiatria no período de 1938 até 1973.
Vamos relacionar alguns aspectos importantes
- 1938 é apresentada para o mundo a Eletroconvulsoterapia
- Em 1941 começa a produção em massa da Penicilina. (Sua descoberta é atribuída ao bacteriologista escocês Alexander Fleming em 1928. Junto com os cientistas Ernst Boris Chain e Howard Walter Florey que criaram um método de produção em massa do medicamento em 1941, ganhou o Prêmio Nobel de Medicina em 1945.
- As falhas no diagnóstico psiquiátrico até então utilizado fez com que o Exército Americano exigisse uma classificação diagnóstica mais consistente.
- A necessidade levou a utilização de mulheres nas fábricas e sua independência. A invenção da pílula anticoncepcional em 1960 as libertou de vez.
- Por estranho que pareça, a guerra e seus desdobramentos, influenciou na organização social, caíram hierarquias e limites estanques na sociedade.
- Os psiquiatras saíram dos asilos e foram para o campo de batalha onde tiveram que aprender a lidar com situações agudas e com a necessidade de rapidamente fazer o soldado em crise a voltar para o combate.
- Ao retornarem para casa passaram a critica os asilos e a praticar em consultórios na “main street”, como ensinaram os psicanalistas.
- Surgiram os internamentos voluntários, muitos alcoolistas e pessoas com problemas de personalidade eram internados.
- Descoberta do Lítio em 1949 por John Cade.
- Descoberta da Clorpromazina em 1952.
- Fundação da Associação Mundial de Psiquiatria em 1963.
- Fundação da Associação Brasileira de Psiquiatria em 1966.
Os campos de batalha forjaram um novo tipo de psiquiatra, mais próximo do seu paciente, menos rígido em relação as classes sociais e com a experiência de tratamentos mais curtos e grupais. Neste campo destaco o trabalho de Wilfred Bion (1897-1979), psicanalista britânico filiado aos kleinianos. Na sua história pessoal, consta que durante a IWW foi oficial e tanque aos 17 anos e quase morreu na guerra. Na segunda guerra atuou com grupos de soldados e desenvolveu uma teoria de funcionamento grupal bastante criativa e sofisticada. Os pressupostos básicos de Bion:
1.dependência (alguém tomará conta dos membros do grupo)
2.acasalamento (podemos encontrar um companheiro dentro do grupo)
- luta e fuga (que existem inimigos externos ao grupo, a quem devemos atacar ou de quem devemos fugir, dependendo da nossa avaliação da nossa força de grupo com relação à força dos estranhos perigosos.
Um conhecimento destes pressupostos permite compreender os diferentes grupos humanos e como manejar estes desenvolvimentos.
A guerra mostrou a possibilidade de tratamentos mais rápidos, de altas e de aproveitamento das melhores qualidades dos pacientes. A estes eram distribuídas tarefas de acordo com suas possibilidades. Por exemplo, pessoas de mais baixo nível intelectual eram utilizadas para carregar munição e outras tarefas mais simples
“O impacto dos confrontos armados na saúde mental dos combatentes foi conhecido há muito tempo. No ano 440 AC Heródoto tinha encontrado alterações mentais após a batalha de maratona, e durante as guerras napoleônicas, tinha sido observado que os soldados caíram em um estupor após uma explosão nas proximidades, descrevendo a síndrome de Vent du Boulet. Mas foi na guerra 1904-1905 entre a Rússia e o Japão que a psiquiatria começou a intervir na mesma frente da batalha, ao lado do comando militar russo, por causa das dificuldades em transferir os feridos através da Sibéria. A primeira guerra mundial envolveu um número excepcionalmente elevado de combatentes, em cenários imprevistos e por um tempo excessivamente prolongado. No início da corrida, os líderes de ambos os lados apostavam numa vitória rápida. Contra suas previsões, as mobilizações iniciais estagnaram na frente-particularmente o ocidental-e os soldados tiveram que permanecer na maioria das vezes nas trincheiras, em condições sanitárias deploráveis e a ameaça onipresente do ataque inimigo, com a presença estreita dos cadáveres e corpos mutilados de seus companheiros combatentes.” (http://www.scielo.org.pe/pdf/rnp/v77n3/a02v77n3.pdf) (Rev Neuropsiquiatria 77 (3), 2014. La Primera Guerra Mundial y su impacto en la psiquiatría.
World War I and its impact on psychiatry. Santiago Stucchi-Portocarrero1
(continua)