Fernando Portela Câmara, MD, PhD, Prof. UFRJ

Fundador do Instituto Stokastos

http://institutostokastos.com.br/

 

Resumo: Pode o trabalho de Tomasetti e Vogelstein (2015) sugerir um modelo plausível para os grandes transtornos da psiquiatria? Palavras-chaves: câncer, mutações aleatórias, enigmas da psiquiatria.

Summary: Can the work of Tomasetti and Vogelstein (2015) suggest a plausible model for the major disorders of psychiatry? Keywords: cancer, random mutations, enigmas of psychiatry.

 

“…a riddle wrappede in a mystery inside an enigma.” (Winston Churchill)

 

A maioria dos casos de câncer é devida a erros genéticos aleatórios, ou mutações, que acontecem quando células saudáveis ​​se dividem. Não se trata de questão de estilo de vida ou alimentação errada. As mutações aleatórias representam dois terços do risco de desenvolver muitos tipos de câncer, excluindo os suspeitos usuais – hereditariedade e fatores ambientais. Tomasetti e Vogelstein (2015) mostraram ser este o risco básico nessa doença, sendo esta a primeira vez que em que isso foi claramente quantificado. O resultado foi bem mais do que se esperava.

Nada é possível fazer. Como disse um professor meu de clínica médica na época em que frequentei a faculdade: “Não há como saber se um indivíduo irá desenvolver ou não um câncer. Isso é o mesmo que apostar numa roleta.” Não se trata de se ter herdado um gene “ruim”, mas de erros que surgem na história do próprio individuo. Também não é uma questão de estilo de vida, embora manter-se saudável seja bom para uma boa qualidade de vida e melhor resultado nos tratamentos. Para os autores, a constatação de que a maioria dos casos de câncer ocorre por acidentes genéticos aleatórios (mutações somáticas) significa que não é possível preveni-los, e que deveria haver mais ênfase no desenvolvimento de testes mais sensíveis para rastrear cânceres precocemente. Detectados no início, fica mais fácil combate-los.

Os autores desenvolveram um modelo estatístico usando dados da literatura médica sobre as taxas de divisão celular em 31 tipos de tecidos. Eles analisaram especificamente as células-tronco, que são uma pequena população de células precursoras em cada órgão ou tecido que se dividem e diferenciam para substituírem as células que se desgastam. Durante a divisão destas células podem ocorrer erros durante a replicação de seu DNA, e isto pode desencadear um crescimento descontrolado que leva ao câncer. Taxas mais altas de divisões de células-tronco podem aumentar o risco de câncer simplesmente porque aumentam as chances de erros de cópia.

A análise não incluiu cânceres de mama ou de próstata, já que não havia dados suficientes sobre as taxas de divisão de células-tronco nesses tecidos.

Um dos pontos de partida para essa pesquisa foi uma observação feita há mais de 100 anos e que nunca foi realmente explicada: alguns tecidos são muito mais propensos ao câncer do que outros. No intestino grosso, por exemplo, o risco de câncer ao longo da vida é de 4,8 a 24% maior do que no intestino delgado, onde é de 0,2 %. Descobriu-se recentemente que o intestino grosso tem muito mais células-tronco do que o intestino delgado e que elas se dividem com mais frequência: 73 vezes num ano, em comparação com 24 vezes no intestino delgado. Em muitos outros tecidos, as taxas de divisão de células-tronco também se correlacionaram fortemente com o risco da doença.

Alguns tipos de câncer, incluindo certos cânceres de pulmão e pele, são mais comuns do que seria esperado apenas a partir de suas taxas de divisão de células-tronco, sugerindo a participação de fatores ambientais como o tabagismo e a exposição ao sol, respectivamente. Outros também mais comuns do que o esperado, estavam ligados à hereditariedade, como é o caso do câncer medular da tiróide.

Por fim, embora o artigo tenha mostrado que os fatores causais de câncer estejam além do controle das pessoas, metade das mortes por câncer poderia ser evitada com um bom programa de detecção e educação da população.

Como psiquiatra especulo se um semelhante efeito estaria implicado na origem dos grandes transtornos psiquiátricos, como a esquizofrenia, o transtorno afetivo bipolar, o TDAH, ou predisporia a certos transtornos como o transtorno de estresse pós-traumático e os transtornos alimentares, para citar alguns exemplos. Isso explicaria o enigma dessas doenças. Uma objeção aqui seria que, nessa perspectiva, a incidência deveria ser bem maior do que a observada na população geral, 1 a 2%. Ora, essa objeção é facilmente contestada se lembrarmos que os neurônios cessam em grande parte sua atividade proliferativa em idade ainda jovem, de modo que as mutações aleatórias seriam limitadas a uma curta janela de tempo, enquanto nas formas de câncer citadas a proliferação de células-tronco continua por toda vida. De qualquer forma, é uma boa hipótese de trabalho, e não seria tão difícil buscar evidências com os dados que dispomos hoje. Podemos imaginar que se isso vier a ser verificado, certamente a psiquiatria mudará de direção e teremos inovações que beneficiarão os mais de dois bilhões de humanos que padecem de alguma forma de transtorno mental.

Referência

Tomasetti C, Vogelstein B. Variation in cancer risk among tissues can be explained by the number of stem cell divisions, Science 2015; 347: 78-81.

 

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