Humberto Müller Martins dos Santos

 

INTRODUÇÃO

O uso de plantas alucinógenas está presente ao longo de toda nossa história. Ainda na pré-história, visto através de evidências arqueológicas (desenhos em rochas), acredita-se que já se consumia plantas com tais propriedades (ABP, 2005).

Muito do que hoje se conhece sobre o consumo de Ayahuasca se deve ao botânico inglês R. Spruce. Em seus relatos (1851 -1858) conta sobre o uso desta substância (chá de Ayahuasca) por índios da região amazônica em cerimônias místicas e religiosas (ABP, 2005).

O chá de Ayahuasca é composto por duas espécies de plantas, sendo elas um cipó – Banisteriopsis caapi – e uma folha – Psychotria viridis – (SANTOS, 2007), que juntas, através de uma preparo artesanal e metódico, oferecem percepções das mais distintas ao seu usuário.

Se individualizarmos os “ingredientes” da Ayahuasca, sabe-se que a Psychotria viridis é rica em N, N-Dimetiltriptamina (DMT), substância com composição química parecida à serotonina, porém, com propriedades psicodélicas potentes. Entretanto, se usada isoladamente, a enzima MAO faz sua degradação e inviabiliza qualquer ação química esperada (PIRES et al, 2010). O outro composto do chá, a B. caapi, apresenta alcaloides beta-carbolinicos (harmanina, harmalina e tetrahidrohamina) que atuam como inibidores da enzima MAO. É a associação de ambos que conferem os efeitos desejados (e indesejados) aos consumidores do chá (ALMEIDA et al, 2018).

RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, 40 anos, solteira, sem filhos, ensino superior completo. Apresenta histórico gestacional livre de intercorrências, sem atraso em desenvolvimento neuropsicomotor ao longo da primeira infância. Adolescência marcada por bom relacionamento interpessoal e afetivo. Desempenhou funções acadêmicas sem prejuízo, com boas notas no ensino médio e graduação.

Não há histórico de suicídios, transtornos psicóticos, delirantes e/ou afetivos em familiares biológicos. O único caso relatado é de alcoolismo paterno. Trata-se de uma paciente sem riscos genéticos maiores para o desenvolvimento de transtornos psicóticos.

Aos 28 anos submeteu-se a sessões de psicoterapia em decorrência de conflitos pessoais, mas sem diagnóstico médico formal. Relatou ter feito um tratamento medicamentoso (com ansiolíticos) irregular porque nesse período foi introduzida à culto religioso chamado “A Barquinha”, vindo a fazer uso do chá do Daime (Ayahuasca) semanalmente.  Seguiu trabalhando normalmente, porém, evoluía com alterações comportamentais, isolamento social, preocupação extrema com religião, crenças delirantes e ausência de crítica.

Posteriormente, já em sua terceira década de vida, iniciaram sintomas psicóticos, sendo as alucinações visuais e auditivas as mais proeminentes (vozes dizendo que possuía um guia espiritual e que só podia realizar certas atividades após consulta-lo), assim como delírios místicos religiosos (crença de que deveria ausentar-se do trabalho para não se envolver com ações monetárias, sendo essa uma ação que interferiria em seu processo de purificação espiritual), alterações da afetividade (quebra de vínculo com familiares), abandono do trabalho e redução em cuidados com higiene.

Ao longo de toda a investigação diagnóstica foram descartados uso de drogas e/ou doenças orgânicas que pudessem mimetizar sintomas psiquiátricos. Foram realizados diversos tratamentos farmacológicos em esfera ambulatorial (ex.: Haloperidol, Risperidona, Olanzapina, Clorpromazina e outros), porém, sempre interrompidos devido ao fato da mesma não ter crítica sobre o seu adoecimento. Recorreu-se à internação em hospital geral e introdução de antipsicóticos de depósito (Palmitato de Paliperidona 100mg/mês), mas sem resposta satisfatória.

Devido à refratariedade do caso, foi prescrito Clozapina, com introdução gradual e mantida na dose de 300mg|dia. Atualmente sua compreensão sobre seu estado ainda é comprometida, segue com crenças religiosas bem fundamentadas, porém, nega alterações sensoperceptivas. Conseguiu retornar ao trabalho, entretanto, com rendimento inferior se comparado ao período pré-mórbido.

DISCUSSÃO

Relatos de sintomatologia psicótica induzida por Ayahuasca não são raros. Sua propriedade alucinógena é bem conhecida, tendo sido relatado em diversos artigos de revisão sobre o tema (PIRES et al, 2010; ALMEIDA et al, 2018; GIOS et al, 2016; POMOLIO et al, 1999), entretanto, não só efeitos danosos são descritos, há também relatos e estudos que apontam existir melhora em humor, ansiedade, socialização e controle sobre abusos e dependências químicas (OSORIO et al, 2015).

Inúmeros possíveis efeitos adversos são descritos em seu uso, dentre eles, cita-se: taquicardia, náusea, vômitos e desconfortos físicos em geral (PIRES et al, 2010; CALLAWAY et al, 1999). A beta-carbolinas, por terem propriedades inibidoras da MAO, podem gerar acúmulo de serotonina na fenda sináptica e, com isso, produzir instabilidade autonômica, hipertermia, espasmos musculares e, em seu extremo, a morte (PIRES et al, 2010). Todo esse risco é aumentado se o usuário de Ayahuasca estiver em terapia farmacológica com inibidores da recaptura de serotonina (CALLAWAY et al, 1998).

O fato de ser uma substância só consumida durante os rituais religiosos, em locais previamente autorizados, diminui-se o uso de forma abusiva ou recreativa (LABATE et al, 2011), porém, isso não impede que riscos acompanhem seus usuários. Sabe-se que a substância chega a ser consumida por bebês, crianças e gestantes, o que gera uma grande preocupação social e científica (PIRES et al, 2010).

CONCLUSÃO

Este relato de caso interroga a possibilidade da Ayahuasca ser o desencadeador dos sintomas esquizofreniformes, haja vista a ausência de sintomas prévios ao seu uso e, principalmente, não ter relatos em história familiar de doenças psicóticas.

Alerta-se sobre a necessidade de estudos mais aprofundados e bem conduzidos com relação ao tema. É fundamental o reconhecimento de manifestações psicóticas em usuários de substâncias alucinógenas, sendo assim, a intervenção terapêutica será otimizada e a abordagem junto ao paciente e seus familiares podem ser mais assertivas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

  • Website: ABP.ORG.BR (2005) –. Parecer técnico-científico sobre o uso da Ayahuasca ou “chá Santo Daime”. Associação Brasileira de Psiquiatria – ABP, Rio de Janeiro – RJ.
  • SANTOS, R.G. (2007) – Ayahuasca: Neuroquímica e Farmacologia. Revista eletrônica Saúde Mental Álcool e Droga. ISSN: 1806-6976.
  • PIRES, A.P.S.; OLIVEIRA, C.D.R.; YONAMINE, M. (2010) – Ayahuasca: Uma revisão dos aspectos farmacológicos e toxicológicos. Revista de Ciências Farmacêuticas Básica e Aplicada. 31(1): 15-23.
  • ALMEIDA, D.F.; SILVA, A.L.P.P.; ASSIS, T.J.C.F. (2018) – Dimetiltriptamina: Alcalóide alucinógeno e seus efeitos no Sistema Nervoso Central. Acta Brasiliensis. 2(1): 28-33.
  • GIOS, T.S.; PINHEIRO, M.C.P.; CALFAT, E.L.B. (2016) – Sintomatologia psicótica e Ayahuasca: Relato de caso. Revista debates em Psiquiatria. 6: 38-41.
  • POMILIO, A.B; VITALE, A.A; CIPRIAN-OLLIVIER, J.; CETKOVICH-BAKMAS, M.; GOMEZ, R.; VAZQUEZ, G. (1999) – Ayahuasca: na experimental psychosis that mirrors the transmethylation hypothesis of schizophrenia. J Ethnopharmacol. 65: 29-51.
  • CALLAWAY, J.C.; GROB, C.S. (1998) – Ayahuasca preparations and serotonina reuptake inhibitors: a potencial combination for severe adverse interactions. J Anal Toxicol. 20 (6): 492-7.
  • CALLAWAY, J.C.; MCKENNA, D.J.; GROB, C.S.; BRITO, G.S.; RAYMON, L.P.; POLAND, R.E, et al. (1999) – Pharmacokinetics of Hoasca alkaloids in healthy humans. J Ethnopharmacol. 65(1): 243-56.
  • OSORIO, F.L.; SANCHES, R.F.; MACEDO, L.R.; SANTOS, R.G.; MAIO, J.P.; WICHERT, A.L. (2015) – Antidepressant effects of a single dose of ayahuasca in patients with recurrent depression: a preliminar report. Rev Bras Psiquiatr. 37: 13-20.
  • LABATE, B.C.; FEENEY, K. (2011) – O processo de regulamentação da Ayahuasca no Brasil e na esfera internacional: Desafios e implicações. Revv Periferia Educ Cult Comum. 2011;3.

 

  • AUTOR: HUMBERTO MÜLLER MARTINS DOS SANTOS
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