Joel Antonio Barbosa1, Eduardo Pondé de Sena1, Milena Pereira Pondé2

  1. Postgraduate Program in Interactive Processes of Organs and Systems, Federal University of Bahia, Salvador, Bahia, Brazil.
  2. Bahiana School of Medicine and Public Health, Interdisciplinary Laboratory for Research in Autism (LABIRINTO), Salvador, Bahia, Brazil.

 

Correspondente:

Eduardo Pondé de Sena

Electronic address: [email protected]

 

 

RESUMO

 

Introdução: O apoio social é um elemento importante para a saúde mental de mães de crianças com transtornos no desenvolvimento. Este estudo tem como objetivo compreender, a partir das narrativas das mães de crianças autistas, a importância do apoio social nas suas vidas. Metodologia:  Estudo qualitativo de narrativas de duas mães de crianças autistas. Uma das mães com ampla rede de apoio social e a outra com uma rede bastante restrita. As narrativas das mães foram gravadas, transcritas e depois analisadas. Resultados e discussão: As duas mães apresentam histórias de relacionamento e apoio recebido totalmente opostas, e pelo descrito por elas o sentimento de realização com o filho, a ausência do sentimento de solidão e a felicidade podem estar relacionadas à qualidade da relação conjugal. A diferença é evidente também na gravidade dos sintomas de autismo das duas crianças, o que também interfere da satisfação das mães com a relação com os filhos.

 

Palavras-chaves: Transtorno Autístico, Comportamento; Relações Familiares.

 

 

Life narrative of two mothers of Autism Spectrum Disorder (ASD) patients.

 

ABSTRACT

 

Introduction: Social support is an important element for the mental health of mothers of children with developmental disorders. This study aims to understand, from the narratives of the mothers of autistic children, the importance of social support in their lives. Methodology: Qualitative study of narratives of two mothers of autistic children. One of the mothers with a large social support network and the other with a very restricted network. The mothers’ narratives were recorded, transcribed and analyzed. Results and discussion: The two mothers present totally different relationships and support stories received, and for their feelings of accomplishment with the child, the absence of feelings of loneliness and happiness may be related to the quality of the conjugal relationship. The difference is also evident in the severity of the autism symptoms of the two children, which also interferes with the mothers’ satisfaction with their relationship with their children.

 

Key-words: Autistic Disorder, Behavior; Family relationships.

 

INTRODUÇÃO

De acordo com o DSM-5, os transtornos do espectro do autismo (TEA) compreendem déficit persistente na comunicação e interação social em diferentes contextos, associados a padrões de comportamento, atividades ou interesses restritos. A depender da gravidade dos sintomas esse manual classifica em três graus o TEA (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2013). Os pais de crianças com TEA podem experimentar um estresse maior do que aqueles que têm crianças normais, podendo ter um risco maior de sofrer de transtornos de ansiedade, transtornos de humor e sintomas obsessivos do que os pais de crianças com síndrome de Down (COOK et al., 1994). A prevalência de transtornos de ansiedade ao longo da vida foi significantemente maior em pais de crianças com TEA do que em pais de crianças com Síndrome de Down (PIVEN et al., 1991). Os traços de ansiedade em pais de crianças com TEA foram relacionados em parte à sobrecarga de cuidar da criança (MURPHY et al., 2000). Os cuidadores de adultos jovens com TEA referem mais problemas adaptativos e menor bem-estar pessoal do que aqueles que cuidavam de pessoas com outro diagnóstico, independente do grupo cultural ao qual pertenciam. Diferenças culturais existem na referência desses cuidadores a sintomas depressivos, assim como percepções positivas sobre a vida (BLACHER; MCINTYRE, 2006). Um estudo de caso-controle foi conduzido para comparar o estado mental de mães de crianças com TEA, mães de crianças com síndrome de Down ou mães de crianças típicas. O risco de transtorno mental no grupo de mães de crianças com TEA é maior do que nos dois outros grupos (SHU; LUNG; CHANG, 2000). Transtornos psiquiátricos foram encontrados em 15,7% das mães de crianças com TEA, estimativa que foi significativamente maior do que 8,2% encontrado no grupo controle (MOURIDSEN et al., 2007).

Existem algumas variáveis que podem ajudar os pais a lidar com o estresse de ter um filho com problemas no desenvolvimento. O sentimento de auto eficácia foi identificado como uma variável importante relacionada com o êxito dos pais. O sentimento de auto eficácia mediou o efeito do comportamento da criança nos sintomas de depressão e ansiedade das mães e nos sintomas de ansiedade dos pais (HASTINGS; BROWN, 2002). O nível educacional se associou negativamente com sintomas psicológicos em mães de crianças com problemas no desenvolvimento (SHU; LUNG; CHANG, 2000). O apoio social também foi um preditor de uma melhor adaptação de mães de crianças com problemas no desenvolvimento (WEISS, 2002).

O envolvimento do pai na criação do portador de TEA está associado aos sintomas depressivos das mães desses portadores. O envolvimento do pai na alfabetização e nos cuidados estava associado com níveis mais baixos de sintomas depressivos para as mães de portadores de TEA (LAXMAN et al., 2015). Resultados obtidos por outros pesquisadores mostraram que o pai pode desenvolver papel importante no treinamento das crianças portadoras de TEA melhorando suas habilidades (ELDER et al., 2005; ROGERS; VISMARA, 2008; ELDER et al., 2011). Estudo feito no nosso meio (MACHADO JUNIOR et al., 2016) sugere uma correlação positiva entre sintomas comportamentais graves em crianças autistas e sintomas de depressão e ansiedade nos pais. O mesmo estudo ressalta, contudo, que a presença do pai em casa reduz o risco de sintomas de ansiedade e depressão para as mães dessas crianças.

O objetivo deste estudo é compreender, a partir de narrativas de mães de crianças com TEA, a importância do apoio social na sustentação da sua relação com o filho.

 

MÉTODOS

PARTICIPANTES

As participantes são duas mães de crianças com TEA. As mães foram escolhidas por conveniência, sendo que uma delas conta com uma ampla rede de apoio social e a outra cuida do filho sem contar com o auxílio de outras pessoas afetivamente próximas. As crianças têm diagnóstico de autismo confirmado por neuropediatras.

ASPECTOS ÉTICOS

As mães envolvidas são maiores de dezoito anos e concordaram voluntariamente em fazer parte do estudo, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Maternidade Climério de Oliveira da Universidade Federal da Bahia com o parecer 778.400 em 4 de setembro de 2014.

 

ABORDAGEM DA PESQUISA QUALITATIVA

A abordagem narrativa foi escolhida por permitir ao autor reescrever a história contada de maneira que os temas sejam tratados em momento mais apropriado ao entendimento e também permitindo transcrever os dados em diferentes formatos na qual o pesquisador pode assumir um papel de ouvinte ou questionador, enfatizando a interação entre o pesquisador e o participante (CRESWELL, 2014). A pesquisa narrativa como método começa com as experiências expressas nas histórias vividas e contadas pelos indivíduos. Os procedimentos para implantar esse tipo de pesquisa podem focar no estudo de um ou dois indivíduos, reunindo os dados por meio da coleta de suas histórias, relatando as experiências individuais e ordenando cronologicamente o significado destas experiências.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Participante Mãe 1: Vinte e cinco anos, 2º grau completo, casada, filha única autista com cinco anos.

Participante Mãe 2: Trinta e cinco anos, curso superior completo, separada, filho único autista com nove anos.

 

HISTÓRIA DE VIDA DE DUAS MÃES EM CAMINHOS OPOSTOS.

Durante a análise temática de trabalho anterior (BARBOSA, 2015), foram identificadas duas mães que apresentavam histórias de relacionamento e apoio recebido nos cuidados com o filho autista totalmente opostos. Enquanto uma mãe contava com o apoio do marido e da família, a outra não recebia apoio algum. Passaremos a seguir a expor de que forma essas mães estruturam as suas vidas a partir do nascimento do filho, pontuando o papel do apoio social na estruturação das suas relações. As mães, os seus cônjuges e as crianças serão tratados por pseudônimos, a fim de garantir a confidencialidade dos dados coletados.

 

Quem são.

Joana nasceu em 1989, filha mais nova de um médico e uma dona de loja, teve na infância uma boa convivência com os pais, um irmão e uma irmã. Fez o ensino médio em colégio americano e sempre viajava nas férias com a família. Desde os doze anos de idade tinha a certeza de que seria médica como o pai.

Fernanda nasceu em 1979, em cidade do interior da Bahia, filha de gerente de loja e dono de uma cantina gerenciada pela mãe. Filha mais nova, com três irmãos mais velhos. Teve uma infância feliz com muitas amigas. Fez o ensino médio em colégio particular no interior, de onde saiu ao passar no vestibular de Administração de Empresas em uma Universidade em Salvador no ano de 1998, onde passou a residir com duas conhecidas oriundas a sua cidade de origem, que também passaram no vestibular.

Relacionamento conjugal.

Joana conheceu o marido, José, em junho de 2006, ainda com dezesseis anos, quando foi apresentada por um amigo comum durante uma festa junina, começaram o namoro no mesmo dia em que se conheceram. Foram se apaixonando cada vez mais apesar dos pais de José, cinco anos mais velho, serem contra a relação por Joana ser menor de idade. Os pais dela também estranharam a diferença de idade, mas uma vez que conheceram José, aceitaram bem o namoro dos dois. Foi um namoro intenso com frequentes viagens de carro para o litoral norte da Bahia.

Fernanda conheceu o marido, Franz, um alemão que trabalhava em Salvador, durante uma festa pré-carnavalesca, no início do ano de 2000, quando cursava o terceiro ano do curso Superior de Administração de Empresas. Saíram algumas vezes e algum tempo depois assumiram o relacionamento.

Casamento.

Joana casou-se com José em outubro de 2007, assim que completou dezoito anos. Cursava o último ano do ensino médio. José tinha se formado em administração de empresas no final do ano anterior e de imediato abriu uma empresa em sociedade com três amigos. No casamento, a felicidade do casal e dos pais de Joana contrastou com a seriedade demonstrada pelos pais de José e percebida pelos convidados. Os preparativos para a festa de casamento, a lua de mel, o envolvimento na evolução da relação para o casamento fez com que Joana estudasse menos. Em 2008 tentou entrar no curso de Medicina, mas não conseguiu. Resolveu compensar a falta de estudo no segundo semestre do ano anterior fazendo um cursinho em 2008. Joana considera 2008 um ano especial em sua vida. Adorava estar casada, passar algum tempo com as suas antigas amigas e as novas que fez no cursinho. A empresa de José progredia ao mesmo tempo que ele cursava um mestrado em economia.

Fernanda casou-se no interior, no final de 2000, aos vinte e um anos. Franz estava com vinte e oito. Os pais dele não compareceram ao casamento, porque ele preferiu economizar para iniciarem uma vida juntos. Os de Fernanda custearam a cerimônia, simples, e estavam felizes com o casamento, apenas um dos irmãos não simpatizou com o noivo. Fernanda formou-se em 2002, passou em um concurso para o Banco do Brasil e começou a trabalhar na área administrativa. Separou-se de Franz no final de 2003. Soube de uma traição e como já não estava mais apaixonada, separou-se em bons termos. Fernanda ficou com o apartamento e Franz com o dinheiro da conta em conjunto e da poupança.

Gravidez e Nascimento.

No início de dezembro, Joana descobriu que estava grávida aos dezenove anos. Resolveu adiar o sonho de fazer medicina para dedicar-se à gravidez da filha, que transcorreu normalmente, sem sobressaltos, tendo feito os exames pré-natais adequadamente. Julia nasceu no final de julho de 2009, considerada saudável. Durante todo este período Joana recebeu o apoio de seus pais.

Fernanda, após a separação ainda se encontrava com Franz e em um dos encontros engravidou. Ao contar para Franz que estava grávida, ele perguntou se ela tinha certeza que o filho era dele. Ela não teve relações com outro homem. Franz propôs que Fernanda abortasse, porque ele estava voltando pra Alemanha e não poderia ter um filho naquele momento. Tiveram algumas conversas e Franz sempre insistia no aborto. Na última vez que conversaram, Franz disse que deixaria dinheiro na conta dela para pagar o aborto e outras coisas que Fernanda precisasse. Ele iria viajar em breve, mas não sabia exatamente quando, dependia de a empresa mandar as passagens. Fernanda respondeu que não abortaria, portanto não precisaria de dinheiro para o aborto. No dia seguinte Franz depositou o dinheiro na conta dela, que ao perceber ligou para Franz que não atendeu aos telefonemas. Nunca mais o viu. Algumas amigas a aconselharam a procurar o consulado, mas Fernanda preferiu não fazer. A gravidez transcorreu sem problemas, com o pré-natal adequado e o filho Fábio nasceu em 2005, no tempo previsto. A mãe de Fernanda veio a Salvador dez dias antes do nascimento e ficou por um mês e meio. Recebeu a visita dos irmãos e do pai. Todos pareciam estar muito felizes com o nascimento de Fábio.

Primeiro ano.

Joana gostava tanto de ser mãe que foi adiando a volta aos estudos. Não tentou entrar na Universidade em 2010 e nem em 2011. Dedicava-se a Julia e a José. Adorava o carinho que Julia demonstrava pelos dois. Era uma criança muito tranquila. O nascimento de Julia não mudou muito a rotina do casal, ainda viajavam nos finais de semana, quando José não precisava trabalhar e contavam com a ajuda dos pais de Joana sempre que queriam sair durante a semana para aproveitar o que chamavam de “namoro dentro do casamento”.

Fernanda, logo após o nascimento do filho, contratou uma babá para ficar com Fábio quando voltasse a trabalhar. Foi um período tranquilo, a mãe a visitava nos finais de semana, que foram se espaçando até uma visita por mês no primeiro ano e a cada dois meses no segundo ano.

Percepção dos sintomas e Diagnóstico.

Em meados de 2011, quando Julia completou dois anos e ainda não falava, o casal suspeitou que houvesse algo errado no desenvolvimento da criança e pediram ao pai de Joana, médico, a indicação de um pediatra. Este solicitou um exame de audição, com resultado normal. O pediatra citou casos de atrasos da fala em algumas crianças que ao começarem a falar não paravam mais e que o casal não precisava se preocupar. Ainda assim o casal procurou outros pediatras e os procedimentos e diagnósticos continuaram os mesmos. Quando Julia fez três anos, ainda sem falar, resolveram procurar um neuropediatra que solicitou um eletroencefalograma, cujo resultado foi normal. O casal não ficou satisfeito e procurou uma neuropediatra que diagnosticou autismo na criança.

Fernanda não percebeu nenhum problema em Fábio até ele completar os três anos de idade. A primeira coisa que notou foi o comportamento “birrento” quando contrariado. Depois percebeu que Fábio era muito calado e se comunicava com frases que repetia constantemente, algumas vezes de forma inapropriada. Então notou a necessidade que Fábio tinha em ter um objeto sempre a mão e quando este objeto era retirado ele reagia gritando palavras que ela não entendia. Quando Fábio passou a bater a cabeça ao se sentir contrariado, ela achou que havia, de fato, algum problema. Procurou o pediatra, que indicou um neuropediatra, que fez o diagnóstico de Autismo.

Primeiro enfrentamento.

O diagnóstico de autismo foi um choque para Joana, que reagiu chorando. José permaneceu calmo e passou a perguntar à neuropediatra quais as providências que eles deveriam tomar diante do diagnóstico de autismo. A neuropediatra orientou alguns exercícios que poderiam ser feitos e encaminhou o casal para que procurasse a AMA-BA (Associação de Amigos de Autistas – Bahia), o que fizeram. Através das recomendações da AMA-BA procuraram uma fonoaudióloga e matricularam Julia numa escolinha de natação, que ela ainda frequenta três vezes por semana, o que ajudou na coordenação motora perfeita que a criança apresenta atualmente. Somente após o diagnóstico o casal compreendeu que os movimentos estereotipados, dentre eles o “bater de asas”, ficar na ponta dos pés, assim como as “ausências” eram sinais do autismo. Até o diagnóstico ignoravam completamente o significado e as características do autismo.

Fernanda, ao tomar conhecimento de que se tratava de Autismo e de como ele se manifestava em Fábio, procurou dar atenção imediata ao que se manifestava no momento, principalmente as manifestações que julgava serem apenas voluntariosas e não consequentes da situação de portador de autismo. A primeira providência foi ensinar a higiene pessoal e forçar Fábio a tomar banho sozinho, o que ele não gostava e reagia batendo a cabeça contra a parede.  Fernanda insistiu e teve sucesso. Outra providência foi colocar Fábio de castigo sempre que ele batesse a cabeça, mas percebeu que não adiantou. Ao saber que esta era uma característica do autismo, não relacionar o castigo à ação, passou a conversar mais em vez de dar castigo e achou que o filho melhorou diminuindo a frequência da autoagressão.

Reação da família e amigos.

Assim que contaram aos pais de Joana sobre o diagnóstico, eles deram apoio e ofereceram suporte sempre que precisassem. Os pais de José foram frios, lamentaram, e nada mais disseram. As amigas de Joana, de imediato se solidarizaram apesar de não entenderem o que era o Autismo, mas a solidariedade não durou muito tempo.

As primeiras reações dos pais, irmãos e amigas de Fernanda, foram a não compreensão exata do que significava o autismo. As visitas dos irmãos encerraram-se já no segundo ano do filho, antes do diagnóstico, as visitas dos pais foram ficando mais raras até que nos últimos dois anos não recebeu mais a visita de nenhum dos familiares. Para não perder o contato com sua família, Fernanda passou a viajar para Ilhéus. Tinha certeza de que eles não entendiam o que era autismo e julgavam o filho dela como uma criança malcriada. Em 2014 não houve visitações de nenhuma das partes, falam-se uma a duas vezes por mês ao telefone. As amigas de Fernanda foram se afastando, mas para ela isto aconteceu por cada uma ir para o seu canto, terem empregos diferentes, portanto achava o afastamento natural e previsível.

Vida após o diagnóstico.

À medida que a empresa de José crescia, a relação dele com os seus pais e irmãos se desintegrava. Era dolorosa para ele a falta de suporte que recebia dos pais e dos irmãos. Ficou muito decepcionado com eles e se afastou. Em nenhum momento os pais dele apoiaram o casamento. Deram pouca atenção quando do nascimento da neta e foi ficando pior a cada ano. Em 2013, José teve uma briga com os pais e desde então não se falam. Não sente falta porque é tratado como filho pelos sogros e tem pelos sogros a admiração que se reserva a pais. José aproveita todas as noites para brincar com Julia, senta-se no chão com ela e arruma as peças grandes de encaixar, fazendo diferentes formas e normalmente separando por cores, o que diverte a filha, que ao montar as peças segura-as e agita os braços como se estivesse “batendo as asas”. José acha que o autismo de Julia modificou a forma dele de enxergar a vida, reduzindo as ambições profissionais, levando-o a sentir uma espécie de gratificação nas realizações de ordem pessoal. Desde então se sente cada vez mais próximo da esposa, amando-a mais do que achava possível. Não consegue imaginar uma vida sem as duas. As demandas da criança, limitam o desenvolvimento profissional das mães, o que tem sido também evidenciado em outros estudos (CELESTINO et al., 2013; PONDÉ; ROUSSEAU, 2013; MISQUIATTI et al., 2015; LAZARO; PONDE, 2017)

Por muitas vezes, Joana percebe-se entristecida pela falta de amigas para Julia. Apesar de entender que a ausência da fala de Julia dificulta a relação dela com outras crianças. Sente bem presente o preconceito daqueles que não entendem o que é autismo, alguns chegando a se comportar como se achassem que o Autismo é uma doença contagiosa. Sente-se triste por causa de algumas amigas que a chamavam para festas de aniversários e deixaram de chamá-la. Em represália, também deixou de procurar estas amigas, que raramente ligam. É educada durante estas ligações, mas não as procura mais. O isolamento social é relatado pelos pais em outros estudos (IJALBA, 2016; ELLEN SELMAN et al., 2018; MILLER; GARDINER; HARDING, 2018).

Fernanda tem encarado a vida de uma forma simples, tentando resolver os problemas conforme eles apareçam. Acha que Fábio tem sofrido nos últimos anos, sendo isolado de brincadeiras, recebendo poucos convites para festas. Não sabe se por preconceito ou simplesmente ignorância sobre o que é o autismo. Acha que o esclarecimento das outras crianças ajudaria, pois na escola Fábio se relaciona com outras crianças. Fábio foi alfabetizado por Fernanda, que seguiu os conselhos de uma professora especializada, pois na escola ele mostrava resistência em aprender a ler. Para fazer a inclusão de seu filho em uma escola particular de custo elevado, Fernanda passou a confeccionar salgados e doces, para completar a sua renda de bancária. Estudos sugerem que os pais não se sentem seguros em relação à escola, pois percebem que os profissionais não estão preparados para receberem crianças com TEA (AGUIAR; PONDÉ, 2017). As demandas de assistência de crianças com TEA requerem um financeiro maior (HORLIN et al., 2014; CLASQUIN-JOHNSON; CLASQUIN-JOHNSON, 2018).

Momento atual.

Uma das maiores preocupações de Joana é não saber o que Julia pensa, o que a filha sente a respeito dela, apesar de ser uma criança muito carinhosa e expressar este carinho com gestos e toques. Joana tem como maior sonho ouvir um dia a filha dizer que a ama. Joana não sabe mais se vai voltar a estudar, ou mesmo se deseja isso. Fora a ausência da fala de Julia, se sente bem do jeito que as coisas estão. A cada dia que passa sente-se mais próxima de José e da filha. Preocupa-se nas poucas vezes em que Julia dá socos na própria perna, apesar de serem socos fracos, isto é sinal de descontentamento e Joana não consegue perceber o motivo já que em circunstâncias semelhantes Julia demonstrou felicidade. A reação de Joana à autoagressão de Julia é se dirigir à filha e fazer muitos carinhos até que ela se acalme.

Joana enxerga como progresso Júlia se encaminhar para a cozinha e apontar o garrafão de água quando está com sede, ou o fogão quando está com fome. No entanto, a ausência da fala e as constantes notícias de agressões em creches e em escola fez com que o casal desistisse de matriculá-la em escola ou creche. Para compensar, brincam com jogos educativos. Procurou neste final de ano alguma escola que aceitasse a presença dela em sala de aula em tempo integral, mas ainda não encontrou. Algumas vezes, Joana emociona-se ao ponto das lágrimas quando Julia, do nada, vai abraçá-la e beijá-la. Preocupa-se também pela filha não comer sozinha, não fazer a higiene pessoal e nem tomar banho. Para dormir, só consegue fazê-lo estando junto à mãe. Quando dorme José a leva para o quarto, mas nos dias em que Julia acorda no meio da noite, ela se levanta e entra no quarto dos pais deitando-se na cama deles.

José sente que tem uma rotina ainda focada no trabalho, para poder proporcionar uma qualidade de vida boa para a sua família. No entanto, todas as noites, após tomar banho, senta-se com Julia para brincar. Nos finais de semana, quando pode, evita trabalhar para passear ou fazer pequenas viagens com a esposa e a filha.

O casal tem uma grande preocupação com a ausência de fala de Julia. Mesmo sabendo que autistas podem começar a falar tarde, eles sabem também que existe a possibilidade de não falar e isso faz com que apresentem momentos de maior fé assim como momentos de desespero. José tem como objetivo principal conseguir reduzir o tempo de trabalho, sem que isto represente uma perda financeira, para que possa se dedicar mais à esposa e filha e mantê-las com o atual nível de vida. Sente um grande desejo de estar mais envolvido na educação e nas atividades diárias de Julia. Sente-se bem ajudando a filha a escovar os dentes, trocar as fraldas, mas acha que poderá fazer mais quando conseguir mais tempo. Joana, apesar das dificuldades que Julia enfrenta, acredita que a filha seja feliz. Por seu lado, sente-se feliz com o casamento, com o marido, com os seus pais e irmãos.

Fernanda, ao contrário de Joana, sente-se bastante solitária. Gostaria de ter um pouco de tempo para si mesma, mas a babá que está com ela desde o nascimento de Fábio sai assim que ela chega do trabalho. Fernanda não tem ninguém em quem confie para deixar com o filho e ter um tempo para si. Segue a rotina de acordar de madrugada, fazer os salgados e doces para deixar nas cantinas que são freguesas. Chega em casa por volta das dezesseis horas, toma um banho e fica com Fábio até ele dormir. Muitas vezes brinca com o jogo de formar palavras tentando aumentar o vocabulário dele, ou apenas assiste a filmes infantis, conversando sempre durante os filmes, fazendo Fábio se expressar em relação ao que está passando no filme. Fábio não vai muito bem na escola, porém Fernanda deixou claro na escola que deseja que ele esteja preparado para situações do dia a dia, como calcular contas simples, fazer um troco, poder ter conversações com outras pessoas. Se Fábio puder aprender mais, melhor.

 

PERCEPÇÕES DAS MÃES SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE ELAS, AS CRIANÇAS, AS FAMÍLIAS E A SOCIEDADE.

Sobre a relação com a filha, apesar de defini-la como ótima, Joana descreveu a ausência da fala de Julia como algo que interfere nesta relação.

“Eu nunca sei o que ela está pensando e isto, não é que fique chateada, eu não fico, mas é difícil para uma mãe não saber. Julia é carinhosa e tranquila, mas por causa dela não falar eu não sei como ela se sente a meu respeito, se o que eu estou fazendo pode estar chateando ela de algum jeito. Eu sei quando ela está feliz porque quando ela fica feliz ela fica na ponta dos pés e agita os braços como se fosse voar e fica sorrindo, mas quando ela fica assim meio que indiferente eu não sei se é porque não gostou ou não sentiu nada. E eu queria muito, mas muito mesmo, saber como ela se sente a meu respeito”.

Ao ser perguntada como o comportamento dela afetava a filha, Joana demonstrou uma sensação de impotência por não conseguir compreender a filha.

“Taí o problema. Como ela não fala, eu não sei, e isto me preocupa. Acho que não sou inteligente o suficiente para perceber nas reações dela o que ela sente. Têm os socos nas pernas, mas na mesma situação, em outras vezes, muitas vezes até, ela não reage. Eu não sei o que pensar”.

Citou a necessidade de “dar um tempo” nos estudos para cuidar do bebê nos primeiros meses que se transformou em “…não posso voltar a estudar, e nem sei mesmo se quero voltar a estudar. A gente está bem do jeito que está”. Parece haver alguma forma de pensar no cuidado à criança como uma ocupação: “…eu não preciso de mais tempo para mim. Eu sou muito feliz. Cuidar de Julia me deixa muito feliz. Toda vez que percebo que ela está feliz, isto me deixa realizada”. É importante observar que Joana desistiu da realização profissional para dedicar-se a filha sem demonstrar, nas duas entrevistas realizadas, arrependimento ou insatisfação. Esta dedicação permite que Julia obtenha a atenção e cuidado que uma criança portadora de TEA necessita.

Sobre o próprio comportamento Joana disse: “Procuro fazer o possível e o impossível para facilitar as coisas para ela. Eu tenho paciência para as pequenas coisas…” e quando a criança se auto agride ela sempre vai de encontro a filha para fazer carinho.

Fernanda descreveu sua relação com Fábio como uma relação normal, “…de compreensão, cuidado, carinho, brincar com o filho, deixar o filho feliz. Essas coisas.” Também descreveu seu empenho no aprendizado do filho alfabetizando-o pessoalmente, sob orientação, porque “na escola ele tinha muita resistência em aprender”. Acha que são muito próximos, ligados um ao outro. Fernanda revelou insegurança no lidar com o comportamento do filho na presença de estranhos.

“Quando eu estou sozinha em casa com ele, eu converso. Mas na rua eu fico sem saber o que fazer. Eu saía muito com ele, mas as pessoas ficavam olhando pro Fábio de um jeito esquisito que eu passei a sair menos. Eu sinto um pouco de medo que comportamento esquisito do meu filho chame muita atenção das pessoas na rua e que isso provoque alguma reação. Sei que acabo ficando solitária com isso e sei que ele também fica”.

Sobre como o comportamento dela afetava ao filho, Fernanda disse que quando perdia a paciência, “que era raro” o filho se retraía sentindo-se acuado, fazendo-a sentir-se culpada. Nestes momentos Fernanda o abraçava e beijava. Fernanda citou como positivo sua atitude de insistência para o aprendizado de Fábio, sejam da escola ou higiene pessoal. “Fábio faz tudo sozinho porque eu insisti mesmo com ele sendo malcriado e batendo a cabeça”.

Sobre o comportamento da filha, Joana disse que Júlia não dá nenhum trabalho, é carinhosa e tranquila. Que a filha expressa a felicidade “daquele jeito, batendo as asinhas”. Mostrou preocupação com a autoagressão de Júlia: “Ela algumas vezes dá socos nas próprias pernas e apenas nestas vezes eu sei que ela não está contente, mas não entendo o motivo pois antes Júlia já passou por momento igual muitas vezes e não teve essa reação”.

Uma das maiores preocupações de Joana é deixar a filha sozinha na escola: “Por ela não falar e a gente vê esses horrores que acontece em creches e escolas, não dá para deixar ela sozinha lá”.

Sobre o que Joana via de positivo na sua relação com a filha disse: “Primeiro, o mais importante de tudo, eu amo Julia e ela me ama, apesar dela não falar eu tenho certeza disso. Ela precisar de mim me faz me sentir útil, cuidar dela me deixa feliz”.

A ausência da fala impede a comunicação da criança autista e gera na mãe o medo dela ser maltratada ou negligenciada uma vez que se não fala, não tem como se proteger. Para que isto não ocorra, a mãe sente a necessidade de estar sempre presente e com isto pode piorar a dependência.

Para Joana a ausência de fala da filha era uma característica difícil de lidar e enxergava esta característica como um déficit importante. Em um estudo qualitativo, a ausência da fala foi considerada a mais frustrante entre todas as outras manifestações, sobretudo para mães de crianças menores (GRAY, 1994) . A preocupação dos pais com a fala também foi observada no estudo feito com imigrantes no Canadá (PONDÉ; ROUSSEAU, 2013).

Sobre o que mais a afetava no comportamento do filho Fernanda respondeu: “Ele bater a cabeça quando está irritado com alguma coisa”. A “birra” era outro comportamento que a afetava. Também se preocupava com gritos: “Assim, do nada, ele dá uns gritos bem altos. Ele grita palavras que não têm sentido nenhum”. Fernanda acha que o comportamento do filho não o ajuda a fazer amigos, apesar da melhora apresentada pela criança na escola.

Fernanda revelou se sentir presa em casa, solitária por sentir medo de que “o comportamento esquisito do meu filho chame muita atenção das pessoas na rua”, portanto, lida com o comportamento da criança evitando a exposição deles em público, tornando-se uma refém do comportamento do filho.

Joana define a participação de José na dinâmica da relação familiar como ótima e cita a participação dele nas brincadeiras educativas com Julia, que deixa a filha muito feliz. Para Joana o autismo da filha influenciou positivamente na relação do casal aproximando-os mais e elogia bastante o marido na sua dedicação à família. E Julia aprecia bastante a presença do pai: “Quando estamos todos juntos Julia fica batendo as asinhas”. Sobre como as demandas da filha interferiam na relação do casal, disse: “Não interferem em nada. Coisas simples, o sorriso de Julia, o carinho que ela dá pra gente, tanto eu quanto José vemos como momentos de felicidade e estes momentos aumentam a sensação que a gente tem de sermos cúmplices um do outro. De que a gente tem muita coisa em comum”.

A sensação de união e de companheirismo entre o casal e a filha citada por Joana é importante. Esta sensação de união, se percebida pelos portadores de TEA pode trazer resultados positivos para o desenvolvimento de habilidades sociais. Em um estudo, o apoio emocional e a sensação de união foram significativamente associados com a elevação de habilidades sociais de crianças portadoras de TEA (HAVEN et al., 2014). A presença do pai proporciona uma redução nos sintomas emocionais das mães de crianças que apresentavam manifestações comportamentais graves (MACHADO JUNIOR et al., 2016). Os pais que acreditavam que suas vidas não eram controladas pela deficiência de seus filhos e enfrentavam a situação focando na integração da família, na cooperação e eram otimistas, apresentaram menor estresse (JONES; PASSEY, 2004).

Joana e José estão satisfeitos com o apoio frequente e intenso recebido dos pais de Joana. Fernanda acha que a incompreensão sobre o autismo de seus pais e irmãos refletem no pouquíssimo apoio que recebe de sua família, o que prejudicou a relação de Fernanda com eles. A falta de suporte encontrado em avôs e avós de portadores de TEA é percebida como o resultado da não compreensão sobre o que é o autismo (LUDLOW; SKELLY; ROHLEDER, 2012); a ajuda proveniente deles, quando ocorre, é observada como um alívio e a ausência desta como uma fonte de decepção para os entrevistados. Isto demonstra a necessidade de educar sobre o autismo como uma forma de melhorar as relações seja do portador de TEA quanto às de seus genitores.

Sobre a percepção da sociedade, Joana revelou preocupação que a não comunicação da filha pudesse ser prejudicial, a tal ponto de não tem confiança em deixá-la sozinha. Percebe como inexistente o relacionamento dos não familiares com a filha e cita como fatores a ausência de fala de Julia, mas também o preconceito dos outros. Relata o afastamento de amigas que deixaram de convidá-la para festas e distanciou-se delas em reciprocidade. Joana acha que o despreparo da sociedade em lidar com autistas não dificulta a vida dela, apenas a entristece. Sobre como lida com o julgamento dos outros respondeu: “Eu não lido, só ignoro”. Essa enunciação se revela como uma defesa, pois logo em seguida disse que este julgamento a entristece: “Sim, mas é mais por minha filha, não sei se ela entende que é vítima de preconceito”. O isolamento social está presente na vida de Joana. Ela lida com o preconceito e com o desconhecimento sobre o autismo dos “outros” de forma conflitante. Ao mesmo tempo em que diz não dar muita importância ao preconceito e ao desconhecimento, ela não fez esforço algum para reverter o afastamento de algumas amigas dela.

Fernanda quando perguntada se o julgamento dos outros era importante para ela, respondeu: “Pra mim não. Mas acho injusto que achem Fábio uma criança mal-educada e tenho medo que eles façam ou digam alguma coisa que machuque os sentimentos dele”. Sobre a relação com os não familiares citou um afastamento, mas que julgava ser natural, da vida diferente que levavam. A relação de Fábio com outras crianças da escola tem melhorado, mas ela nota que as outras crianças do edifício em que mora não se aproximam do filho: “Preconceito talvez. Talvez não. Acho que eles não entendem alguns comportamentos de Fábio. Não dá para dizer”.

Joana e Fernanda acham que a educação é a medida mais eficiente para melhorar a relação das crianças com a sociedade, pois permitiria a redução do preconceito.

Quanto à expectativa do futuro, Joana se mostra otimista: “Espero que com Julia falando, tudo melhore e ela possa levar uma vida normal e até se tornar independente”. Perguntada sobre o que significava a independência da filha para ela, respondeu: “Tudo, Julia poder trabalhar, se casar, ser feliz é o mais importante para mim”. Fernanda, ao contrário, apresentou-se pessimista e preocupada: “Isso pra mim é o mais dolorido. Eu rezo muito para que a cura chegue logo. Se não chegar, como eu vou fazer? Eu não tenho o direito de morrer. Quem vai tomar conta de meu filho? Fico desesperada por não poder contar com ninguém para tomar conta dele se eu morrer. Isso é o pior para mim. Por isso nem imagino muito o futuro”. As diferenças nas preocupações das mães podem refletir a idade das crianças, já que Júlia é mais nova do que Fábio. Uma investigação sobre narrativas de pais de crianças com TEA (GRAY, 1994) revela que a maior preocupação nos pais de crianças menores se centra na aquisição da fala, mas quando as crianças crescem intensificam-se as preocupações com a independência e sobrevivência na ausência dos pais. A preocupação com a independência dos filhos reflete as dificuldades com relação às habilidades de vivência diária, mesmo em crianças autistas com bom potencial cognitivo (DUNCAN; BISHOP, 2015).

CONCLUSÃO

As histórias de vida de Joana e Fernanda sugerem a imagem de paralelos opostos. As duas histórias têm muita coisa em comum como a dedicação aos filhos, a mudança forçada de planos para a própria vida, o desejo de fazer o possível e o melhor para os filhos. Por outro lado, a boa condição financeira e o apoio dos pais e do marido de Joana, dirige a vida dela para a sensação de felicidade, amor, companheirismo e até de certa forma, de realização pessoal terminando por dar a ela uma sensação de completude. Enquanto do outro lado, a falta de apoio e condição financeira limitada dirigem Fernanda para a sensação de solidão. No caso de Joana o filho nasceu no contexto de uma relação do casal, sendo desde sempre desejado pelos dois; já Fernanda teve o filho sozinha, tendo o pai rejeitado a gravidez. A sensação de amor e companheirismo restringe-se à relação com o filho, deixando um grande espaço vazio na vida Fernanda, que apesar de todo o amor que dedica ao filho e que recebe dele não se percebe como uma pessoa feliz, ao contrário do que revela Joana.

Além do perfil distinto de apoio social, há indícios que a gravidade dos sintomas de TEA em Júlia são mais graves do que em Fábio, já que Júlia não fala e não frequenta escola; enquanto Fábio se comunica com a mãe e já passou pelo processo de alfabetização, apesar de ter necessitado da ajuda materna para ter êxito.

A presença do pai vivendo em casa poderia representar um fator de proteção contra o maior risco de apresentar sintomas mais sérios de ansiedade e depressão nos genitores de crianças autistas com sintomas comportamentais mais graves (MACHADO JUNIOR et al., 2016).   Em nosso estudo, as histórias de vida opostas nesses dois casos observados mais detalhadamente sugerem o quanto o apoio dos familiares e amigos, assim como o suporte da sociedade, diminuindo a carga financeira que recai sobre os genitores dos portadores de TEA, são importantes para o bem-estar dos pais e consequentemente da família em geral.

Nesse estudo, a realização com o filho, a ausência do sentimento de solidão e a felicidade podem estar relacionadas à qualidade da relação conjugal e apoio social familiar. Uma boa relação conjugal e apoio familiar pode gerar uma sensação de realização com a criança enquanto a ausência da relação conjugal e apoio familiar vem junto com uma menor satisfação pessoal, sensação de solidão e de falta de tempo para si mesma. Desse modo, o apoio financeiro, afetivo e instrumental pode ajudar a lidar melhor com os desafios que a presença de uma criança portadora de TEA trazem. Por outro lado, a gravidade dos sintomas, pode gerar maior preocupação e frustração nos pais, notadamente a ausência de comunicação verbal e a ausência de interação social recíproca; que ocorre nos casos de TEA mais graves. Joana revela preocupação com a ausência de fala da filha, bem como tristeza com a pouca resposta emocional que percebe de Júlia em relação a ela. Fernanda, por outro lado, apesar de não contar com uma rede de apoio social ampla como Joana, não revela preocupação com a fala do seu filho, havendo preocupações, mas também expectativas positivas relacionadas ao processo educacional. Um estudo investigando narrativas de mães de pessoas com TEA verificou que a gravidade dos sintomas das crianças afetava a percepção que tinham dos filhos (CELESTINO et al., 2013). Nesse estudo as mães que reportaram sintomas mais leves revelavam mais esperança em relação ao futuro dos seus filhos do que mães de crianças com sintomas mais graves. Assim, gravidade dos sintomas e apoio social aparecem como fatores que influenciam a relação das mães com o TEA com os seus filhos, interferindo na vida familiar.

Essas histórias de vida tão distintas e tão parecidas ensinam que existem dois aspectos muito importantes que ajudam a lidar com as dificuldades da criança portadora de TEA. O primeiro é o fenótipo do transtorno, que engendra crianças com mais ou menos limitações, com mais ou menos possibilidades de contato com o ambiente. Esse aspecto tem uma forte determinação genética e é um forte determinante em relação ao prognóstico da criança. O segundo é ambiente social que recebe a criança e que, ao influenciar na sua aceitação e cuidado, promove um ambiente mais ou menos hostil. O que esse estudo ressalta é que o cuidado com os cuidadores é uma variável chave para as possibilidades de oferecer um ambiente de estímulo e acolhimento para as crianças com TEA.

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