Dezembro de 2025 – Vol. 31 – Nº 12

Editorial
Walmor J Piccinini Editor

Quando a Psiquiatria se Retira, a Polícia Ocupa: Emergências Psiquiátricas e Tragédias Anunciadas

A partir da morte de um paciente psicótico pelos policiais chamados a atendê-lo. Aconteceu em Porto Alegre, mas se repete em todo país.

Nas últimas décadas, assistimos no Brasil — e de maneira paralela nos Estados Unidos — à repetição de episódios trágicos envolvendo indivíduos em surto psicótico abatidos por forças policiais durante o atendimento de ocorrências. A notícia de ontem, em que um jovem em surto foi morto por policiais militares, não é exceção: é mais um elo de uma cadeia previsível, estrutural e evitável.

Essas mortes não ocorrem porque policiais são mais violentos do que antes, ou porque as pessoas em sofrimento mental se tornaram mais agressivas. O que mudou foi o ecossistema assistencial: a progressiva substituição dos serviços especializados de urgência psiquiátrica por uma narrativa ideológica segundo a qual a psiquiatria seria essencialmente repressiva, e a contenção, uma violência inaceitável.

O resultado desse processo já está claro:
vazio assistencial, respostas improvisadas e uma transferência silenciosa da responsabilidade clínica para agentes armados do Estado.

1. A crise psicótica não desapareceu; apenas deixamos de ter onde tratá-la

Os fenômenos da psicose aguda, intoxicação grave e excitação psicomotora não diminuíram com o fechamento de unidades especializadas. Pelo contrário:

  • o consumo de substâncias estimulantes aumentou,
  • a potência de diversas drogas cresceu,
  • e a prevalência de transtornos psicóticos jovens não se alterou significativamente.

A crise continua a existir, mas seus espaços de manejo especializado foram reduzidos ou perdidos.
Quem preencheu esse vácuo? A polícia, frequentemente acionada por familiares, vizinhos ou transeuntes que simplesmente não têm outra porta de entrada.

2. A equação trágica: psicose + drogas + comandos policiais

Um surto psicótico, sobretudo sob efeito de substâncias, altera três pilares fundamentais da percepção:

  1. Compreensão de comandos verbais: o paciente não consegue processar ordens;
  2. Interpretação do ambiente: estímulos neutros podem ser vividos como ameaça extrema;
  3. Controle da excitação: a força física e a resistência podem estar amplificadas.

Em outras palavras:
o paciente em surto não desobedece à polícia — ele simplesmente não entende que há uma polícia ali.
E agentes armados, treinados para identificar risco e neutralizar agressões, interpretam a ausência de obediência como escalada de violência.

O resultado é um choque de linguagens:
a linguagem da psicose encontra a linguagem da força.
Essa colisão é quase sempre catastrófica.

3. O mito do “psiquiatra que reprime” e seu efeito colateral fatal

É inegável que a psiquiatria do passado cometeu excessos. Mas a crítica indiscriminada transformou-se, em alguns setores, em uma política negativa: não criar, não manter, não investir em estruturas de urgência.

Muitos serviços foram fechados sob slogans que, embora bem-intencionados, ignoravam o funcionamento real da clínica:

  • “contenção é violência”
  • “internação é repressão”
  • “crise se resolve no território”
  • “suficiente são CAPS e oficinas”

Ora, CAPS são serviços fundamentais, mas não são e nunca foram unidades de emergência. Hospitais gerais, por sua vez, muitas vezes carecem de equipes treinadas, insumos e retaguarda psiquiátrica contínua.

Ao demonizar as estruturas que sabiam lidar com a crise, gerou-se um paradoxo histórico:

Na tentativa de proteger o paciente da repressão psiquiátrica, entregou-se sua crise ao único órgão cuja função primordial é o uso legítimo da força: a polícia.

Nenhum movimento social desejava isso. Nenhum psiquiatra responsável endossaria tal substituição.
Mas esse foi o efeito não planejado da retração dos serviços especializados.

4. A experiência internacional mostra outro caminho

Várias cidades norte-americanas, depois de décadas de mortes e escândalos, criaram programas de resposta integrada, com resultados expressivos:

  • CAHOOTS (Eugene, Oregon): equipes de saúde mental atendem crises psiquiátricas; a polícia só vai se houver arma de fogo.
  • STAR (Denver): psicólogos e paramédicos atendem 100% das crises leves e moderadas; zero mortes registradas.
  • CIT (Crisis Intervention Teams): treinamento obrigatório para policiais; redução de até 80% nos desfechos fatais.

O princípio é simples:
crises psiquiátricas exigem respostas psiquiátricas.

E quando isso ocorre, a letalidade cai drasticamente.

5. O caminho brasileiro precisa ser reconstruído — sem saudosismo, mas com responsabilidade

Não se trata de defender a volta de manicômios ou instituições do passado.
Trata-se de reconhecer que:

  • toda metrópole necessita de porta de entrada psiquiátrica 24 horas;
  • urgências precisam de sedação segura, equipe treinada e retaguarda contínua;
  • devem existir equipes móveis integradas com SAMU e segurança pública;
  • a polícia precisa de protocolos claros e de retaguarda clínica imediata.

É perfeitamente possível ter serviços modernos, humanizados, científicos e não-violentos, como já existe em diversos países.

A ausência deles é que gera violência.

6. Um ponto ético e histórico que não pode ser ignorado

Ao longo da história, sempre que a medicina abandona o tratamento da loucura, a sociedade responde com exclusão, medo e força. No período pré-Pinel, eram as prisões e os porões. No Brasil recente, tornou-se o 190.

Este é o paradoxo contemporâneo:

A psiquiatria foi criticada por suposta violência; sua ausência gerou violência real.

A crítica construtiva é essencial — e deve continuar.
Mas desassistência não é política pública; é omissão.

7. Conclusão: devolver a crise psiquiátrica ao campo da saúde é salvar vidas

Enquanto as crises forem tratadas como ocorrências policiais, continuaremos perdendo pessoas — pacientes e também policiais — em situações que poderiam ter sido manejadas clinicamente.

O caminho é claro:

  • Reconstruir urgências psiquiátricas modernas.
  • Integrar saúde mental e segurança pública.
  • Oferecer retaguarda real às famílias.
  • Resgatar a responsabilidade clínica pela crise.

Essa não é uma pauta corporativa. É uma exigência civilizatória.

Similar Posts