Novembro de 2025 – Vol. 31 – Nº 11
Título do artigo resenhado: História, silêncio e ficção: a escrita da Psicanálise entre o real e o simbólico
Publicação: Revista de Teoria da História, v. 23, n. 2, 2020.
Autoria: Aline Rubin
Resenha: Walmor J. Piccinini (Psychiatry Online Brazil)
A História da Psicanálise entre o Recalque e a Ficção Teórica
Resenha crítica por Walmor J. Piccinini
O artigo da Revista de Teoria da História oferece uma leitura densa e original sobre a historiografia da Psicanálise no Brasil, combinando erudição filosófica e sensibilidade clínica. A autora parte de uma provocação essencial: como escrever cientificamente sobre algo que, por definição, escapa à razão? Esse impasse epistemológico atravessa tanto a teoria psicanalítica quanto as tentativas de narrar sua própria história.
A análise mostra que o movimento psicanalítico brasileiro viveu, desde suas origens, um processo de recalque institucional: silenciou-se diante de episódios incômodos — a conivência de analistas com o nazismo, a chegada de imigrantes perseguidos, o caso Amílcar Lobo na ditadura — reproduzindo, em escala coletiva, os mecanismos de resistência que descreve teoricamente. O resultado foi uma “história oficial” marcada por hagiografias e pela busca de legitimidade científica, nas quais nomes como Durval Marcondes, Virgínia Bicudo e Marialzira Perestrello figuram como heróis fundadores.
Inspirando-se em Michel de Certeau e Roland Barthes, a autora propõe substituir a “ficção científica” (positivista, linear, legitimadora) pela “ficção teórica”, isto é, uma escrita que reconhece o caráter simbólico e narrativo da Psicanálise. Freud, lembra a autora, já intuíra isso ao escrever “como quem compõe romances”: as histórias clínicas não descrevem fatos, mas produzem sentidos. Nesse horizonte, a história da Psicanálise deve ser compreendida não como cronologia, mas como reescrita constante do recalcado.
O ensaio percorre três grandes fases da historiografia psicanalítica brasileira — a descritiva (anos 1920-40), a institucional (1940-70) e a crítica-acadêmica (desde 1980) —, situando-as dentro das mudanças políticas e culturais do país. A abertura democrática, a influência de Foucault e o diálogo com as ciências humanas introduziram uma nova ética da escuta: historiar a Psicanálise tornou-se também um ato analítico, uma forma de enfrentar os silêncios e os sintomas do próprio campo.
Nas conclusões, o texto sustenta que escrever a história da Psicanálise é exercitar o próprio método freudiano: escutar o que foi recalcado, dar nome ao não-dito, reconhecer as contradições. Longe de propor uma nova ortodoxia, a autora defende uma historiografia reflexiva, capaz de manter viva a tensão entre memória e esquecimento, entre o desejo de verdade e o reconhecimento da ficção.
O artigo é um convite a repensar o estatuto histórico e ético da Psicanálise — não como dogma, mas como narrativa em movimento. E reafirma, com sutileza, que o verdadeiro rigor científico talvez consista em preservar a dúvida, o inacabamento e a abertura ao inconsciente da própria história.
