Março de 2023 – Vol. 28 – Nº 3

Nota do Editor.

Revisando meus arquivos encontrei dois textos do querido amigo Manoel Tosta Berlinck e resolvi publicá-los para que conheçam seu brilhantismo intelectual e a forma agradável com que expressava suas ideias. Durante alguns anos, por insistência dele, colaborei na Pulsional Revista de Psicanálise. Tinha dúvidas sobre o que escrevia e ele sempre me animando, vendo em mim, mais do que eu mesmo via. Em todo caso o tempo passou, Berlinck nos deixou muito cedo. Continua presente na minha memória. Desfrutem do seu conhecimento e inteligência

Walmor J. Piccinini

IPANEMA E A CLÍNICA PSICANALÍTICA

Manoel Tosta Berlinck

Em 1948, o antropólogo Eduardo Galvão realizou uma pesquisa de campo numa pequena comunidade do Baixo Amazonas. Este trabalho resultou num livro denominado Santos e visagens: um estudo da vida religiosa de Itá, Amazonas (São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1955) que se tornou um clássico da Antropologia brasileira. Nele, Eduardo Galvão descreve, de forma brilhante, a panema, crença que, por penetrar intimamente na vida do caboclo, é de particular importância para aquela comunidade.

Panema ou panemice é uma força mágica, não materializada, que à maneira do mana dos polinésios é capaz de infectar criaturas humanas, animais e objetos. Panema é, porém, um mana negativo. Não empresta força ou poder extraordinário; ao contrário, incapacita o objeto de sua ação. Segundo Galvão, o conceito de panema passou ao linguajar popular da Amazônia com o significado de incapacidade. Não se trata propriamente de infelicidade ocasional, má sorte, azar, mas de uma incapacidade de ação, cujas causas podem ser reconhecidas, evitadas e para as quais existem processos apropriados.

O campo semântico de panema, registrado em dicionários pesquisados por Galvão e, agora, por mim, não deixa de ser revelador.

Panema é palavra da língua tupi e quer dizer desdita, desgraça, malsucedido, mofino, imprestável, sem expediente, inútil, imbecil. Aplica-se principalmente àquele que tendo ido à caça ou à pesca nada colheu. O antônimo de panema é feliz, bem-sucedido etc. e se escreve, em tupi, Ipanema.

Ora, aquilo que Galvão descreve e que os índios tupis denominam de panema possui uma longa e rica tradição na psicopatologia. Trata-se da inibição, ou seja, daquilo que, em princípio, não sofrem os ipanemenses.

Assim, já W. Griesinger, em meados do século XIX, tratando da melancolia, escreve: “Em muitos casos, depois de ficar num estado de mal-estar corporal e psíquico mais ou menos vago, e de tempo variável, frequentemente acompanhado de mal humor hipocondríaco, de abatimento e de agitação, às vezes com sensação da eminência do perigo da loucura, o doente é progressivamente dominado por um estado de dor psíquica que persiste por si, e é cada vez mais reforçado por impressões psíquicas exteriores. Esta é a perturbação psíquica essencial da melancolia, e essa dor se constitui para o próprio doente num sentimento de profundo mal-estar psíquico, de incapacidade para a ação, repressão de todas as forças, de abatimento e tristeza, numa queda total de autoestima” (in Antonio Quinet, Extravios do desejo: depressão e melancolia, Rio de Janeiro: Marca d’Água, 1999).

Essa mesma associação entre inibição e melancolia é, também, realizada por Emil Kraepelin (Emil Kraepelin, “Melancolia”, in Tratado de psiquiatria, 8a ed.).

Kraepelin é o primeiro psicopatólogo a realizar uma aproximação semântica entre depressão e melancolia quando descreve a denominada “melancolia simples”: “As formas mais leves do estado de depressão se caracterizam pelo aparecimento de uma inibição psíquica simples, sem transtornos sensoriais e sem ideias delirantes. O doente tem dificuldades para pensar e expressa este transtorno de todas as formas e maneiras. Não pode reunir suas ideias: estas se encontram paralisadas, não avançam mais.”

Freud, até, pelo menos, “Inibições, sintomas e angústia” (1926), estabelece uma distinção entre essas manifestações psíquicas, e não reconhece a vasta importância clínica da inibição, pois está interessado no recalque, no sintoma e na angústia. Diz ele: “A inibição tem uma relação especial com a função, não tendo necessariamente uma implicação patológica. Podemos muito bem denominar de inibição a uma restrição normal de uma função. Um sintoma, por outro lado, realmente denota a presença de algum processo patológico. Assim, uma inibição pode ser também um sintoma. O uso linguístico, portanto, emprega a palavra inibição quando há uma simples redução de função, e sintoma quando uma função passou por alguma modificação inusitada ou quando uma nova manifestação surgiu desta. Muito amiúde parece ser assunto bem arbitrário, quer ressaltemos o lado positivo de um processo patológico, e chamemos o seu resultado de sintoma, quer ressaltemos seu lado negativo e intitulemos seu resultado de inibição. Mas tudo isso é realmente de pouco interesse e o problema conforme o enunciamos, não nos leva muito longe” (in “Inibições, sintomas e angústia”, ESB, Rio de Janeiro: Imago, vol. XX, p. 91).

Mais tarde, entretanto, em “Mal-estar na civilização” (1930), a questão da inibição adquire toda a sua importância psicopatológica.

Porém, é importante ressaltar que, depois de Freud, a literatura praticamente ignora a questão da inibição e suas consequências clínicas. Não há, na vasta e rica bibliografia psicanalítica, nenhum livro tratando, com destaque, dessa questão.

Graças, entretanto, à pesquisa que Marciela Henckel vem realizando no âmbito do Laboratório de Psicopatologia Fundamental do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo que, brevemente, resultará em importante dissertação de Mestrado, o tema da inibição é tratado de forma sistemática.

Aproximando a inibição da melancolia, a partir da reviravolta psicopatológica proposta por Freud, ao contrário do que ele inicialmente acreditava, a inibição deixa de ser manifestação pré-consciente e passa a ser resultante do conflito intrapsíquico entre a instância do superego e a do ego. A neurose narcísica, ao contrário da neurose resultante do conflito intrapsíquico entre as instâncias do id e do ego, não produz sintoma, mas inibição, panema, lançando o sujeito no mal-estar e no âmbito da impossibilidade funcional. A melancolia, Freud insiste, não é uma psicose, mas uma neurose narcísica manifestando-se como mal-estar, e por uma impossibilidade generalizada sem a correspondente manifestação de sintoma.

A inibição, no limite, pode levar à catatonia, mas não são formas graves de impossibilidade as que nos interessam e, sim, as formas mais “amenas”. Estas têm íntima relação com o processo de socialização, ou seja, a maneira institucionalizada de transmissão cultural, onde toda uma população pode se sentir impossibilitada de certas funções.

Nesta altura, é legítimo perguntar se o tratamento da inibição deve ocorrer da mesma forma como se trata o sintoma, ou seja, através da interpretação.

Como a inibição não é sintoma nem deve, como imaginava Freud, ser reduzida a um, o tratamento dessa impossibilidade generalizada afetando as funções solicita outro tipo de procedimento clínico ainda pouco explorado.

Sabemos, hoje, que o tratamento da inibição passa por uma clínica do social, onde as crenças são analisadas e reveladas, principalmente na sua capacidade de provocar impossibilidades.

De qualquer forma, estamos longe de dominar a clínica da inibição, especialmente porque, sendo extensa no âmbito do ego, fica muito difícil de ser percebida como imposta pela instância superegóica e pela cultura, como ocorre no caso de Itá.

Similar Posts