Fevereiro de 2022 – Vol. 27 – Nº 2

                                  Walmor J. Piccinini

“Uma descoberta feito por um psiquiatra desconhecido sem nenhum treinamento em pesquisa, trabalhando em um pequeno hospital de crônicos com primitivas técnicas e equipamentos insignificantes, provavelmente não chamaria a atenção ” (Cade,1980)

 

A pequena cidade de Bundoora é praticamente um arrabalde de Melbourne, importante cidade australiana da Província de Victória. Foi lá que o Dr. John Cade desenvolveu suas pesquisas sobre o Lítio. Seu trabalho, publicado em 1949, pode ser considerado um marco da psicofarmacologia. Tradicionalmente foi estabelecido que o surgimento da Clorpromazina em 1952 seria o início deste campo de pesquisa. É fácil imaginar que Bundoora não tinha possibilidade de competir com Paris. Quem poderia imaginar que um jovem médico australiano, recém egresso de um campo de prisioneiros japoneses na segunda guerra mundial iria fazer uma descoberta tão importante como a da ação do Lítio nos transtornos maníacos. Sem histórico de grande pesquisador, mas com firme determinação John Cade desenvolveu suas pesquisas.

Foi na sua cozinha em Bundoora, Austrália que John Cade conduziu os experimentos que iriam marcar seu nome para a posteridade. Durante o curso de seus experimentos ele descobriu que porquinhos-da-índia ingerindo concentrados de urina obtidos de pacientes maníacos mostraram efeitos tóxicos, enquanto as cobaias ingerindo urina concentrada de indivíduos normais não.Ele também descobriu que a ureia ingerida isoladamente produzia toxicidade, mas em menor grau.Ele então pensou na hipótese de que o ácido úrico seria e é um possível contribuinte a este fenômeno.Para testar esta hipótese ele aumentou a solubilidade de ácido úrico pela adição de carbonato de lítio taurina.Depois de administrar carbonato de lítio junto com a uréia e creatinina, Cade observou um significativo redução da toxicidade (Cade JF (1949) Lithium salts in the treatment of psychotic excitement. The Medical Journal of Australia 2(10): 349–352.).

Encorajado por estes achados ele aventurou-se a estudar os efeitos de carbonato de lítio em humanos.Ele ele próprio ingeriu lítio para demonstrar sua segurança em humanos. Cade então passou a conduzir sua pesquisa numa pequena clínica. Em 1949, publicou o fruto do seu trabalho, produziu um “paper” onde descreveu que o lítio tinha um efeito calmante em pacientes maníacos.Seu ensaio era fundamentado em apenas 10 pacientes, um com transtorno esquizoafetivo, seis pacientes com mania episódica e três com mania crônica, mas todos responderam dentro de alguns dias da administração do lítio, com cinco pacientes mostrando suficiente melhoria para ter, eventualmente, alta do hospital. Contudo, a utilidade do lítio logo foi restringida devido ao seu perfil de efeitos colaterais. Muitos viram suas descobertas com ceticismo e Cade lamentou esse ceticismo inicial anos depois, comentando “uma descoberta feito por um psiquiatra desconhecido sem nenhum treinamento em pesquisa, trabalhando em um pequeno hospital de crônicos com primitivas técnicas e equipamentos insignificantes, provavelmente não chamaria a atenção ”

“John Cade nasceu em Murtoa, Victoria, Austrália em 18 de janeiro de 1912. Seu pai, que era clínico geral, partiu para a Primeira Guerra Mundial quando Cade era apenas um menino. Voltando da guerra, com sequelas emocionais, seu pai decidiu abandonar sua prática de clínico generalsta. Atribuiu ao “cansaço da guerra” e suas atrocidades. Assumiu uma posição com o Departamento de Higiene Mental. O jovem John e seus irmãos passaram muito tempo nas várias instituições onde o pai serviu nas duas décadas seguintes. Essas experiências causaram uma profunda impressão em Cade e permitiu que desenvolvesse uma compreensão do doente mental e um conhecimento das suas necessidades. Seguindo os passos de seu pai, Cade frequentou a escola de medicina em 1934 e, em seguida, se especializou em psiquiatria. Estourou a segunda guerra mundial e a Austrália, tradicional aliada dos ingleses participou ativamente e ele foi convocado para servir na força australiana em 1940. Na guerra, logo no início da sua participação foi feito prisioneiro dos japoneses e ficou três anos e meio na prisão de Changi. Ao voltar para casa em 1946, ele se tornou superintendente do Hospital Psiquiátrico de Repatriação em Bundoora, Victoria, Austrália. Ali realizou suas pesquisas com lítio. Seu trabalho com Lítio ficou anos sem despertar atenção até que em 1954 Mogens Schou demosntrou de forma conclusiva a eficácia do Lítio (Schou et al. 1954)Experimentos cruciais de John Cade e suas conclusões foram justificadas com a demonstração conclusiva da eficácia do lítio por Schou e seu colegas. Não bastou a confirmação por Schou, pois alguns pesquisadores ingleses continuaram a se opor ao Lítio e a duvidar dos seus efeitos. Sobre Cade, o mínimo que diziam era que tinha descoberto o Lítio por acaso. A palavra utilizada era Serendipity ( fruto do acaso) o que deixava Cade frustrado e irritado. Vencidas estas resistências que perduraram até 1970, ano em que o Lítio foi aprovado pela Food and Drug Administration.

Depois disso, muitas homenagens foram acontecendo. Cade foi eleito presidente da Associação Australiana e Neozelandesa de psiquiatras (1969-1970), e  ele foi feito um ilustre fellow da APA (Associação Psiquiátrica Americana. Em 1985 estimou-se que a descoberta de Cade economizou ao mundo US $ 17,5 bilhões e aliviou o sofrimento de milhões (Rubinstein e Rubinstein, 1996).

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