Agosto de 2021 – Vol. 26 – Nº 08

Walmor J. Piccinini

A partir de depoimentos recolhidos por Psychiatric Times resolvemos iniciar um debate sobre a prática psiquiátrica atual. Vários psiquiatras e historiadores da psiquiatria emitiram opiniões sobre a prática psiquiátrica atual. Suponho que boa parte da discussão partiu das afirmações de Thomas Insell, então todo poderoso chefe do INMH feitas no congresso da APA em Nova York em 2014.  No Congresso anterior em São Francisco, 2013, tinha sido lançado o DSM5 sob uma barragem de críticas de muitos psiquiatras, psicólogos e psicanalistas. Insell começou com um gráfico em que demonstrava que com todo progresso da Medicina em geral, a psiquiatria permanecia com poucas alterações entre seus indicadores e o maior deles era o de suicídios. Propunha o RDOC um novo sistema de diagnóstico baseado nos mais recentes progressos em genética, epidemiologia e novas drogas. Muitos fatores podem ser considerados, mas para um observador parece evidente uma luta pelo mercado do tratamento dos problemas mentais. De um lado os psiquiatras apoiados na medicina “hardcore” e dos outros psicólogos e filósofos, psicanalistas, sociólogos e agregados propondo distúrbios de ordem sociais ou psicossociais.

Voltando aos depoimentos, começamos com Allen Frances, crítico maior do DSM5, embora tenha participado na elaboração do DSM4. Eis o que declarou sobre a Psiquiatria que considera à deriva das melhores práticas

“Eu penso que a psiquiatria está entre as mais nobres das profissões, mas eu penso que ela se afastou das melhores práticas. Corta o coração saber que 600 mil dos nossos pacientes mais doentes estão ou nas prisões ou morando nas ruas e que tenhamos feito tão pouco para advogar por Centros Comunitários de Saúde e residências acessíveis que os libertassem do confinamento e terminasse a vergonhosa negligência. Eu temo que um exagerado número de psiquiatras estão agora reduzidos a empurrar pílulas, com pequeno tempo para realmente conhecer bem seus pacientes e aplicar o modelo biopsicossocial que é absolutamente essencial para o bom tratamento. (Allen Frances, MD.)

Voltamos a uma questão que assombra a psiquiatria desde seu início, assistência social, benemerência ou tratamento da doença mental. Ao isolar os pacientes em asilos, com objetivo de protegê-los e tratá-los os psiquiatras do século XIX e da primeira parte do século XX passaram a ser acusados de repressores, carcereiros e torturadores. A tentativa de tratá-los em comunidade resultou em negligência e abandono e prisões. Os cerca de 600 mil doentes mentais recolhidos a prisões nos Estados Unidos, representa o número aproximado de doentes mentais recolhidos nos Hospitais Estaduais antes do surgimento da Clorpromazina. Segundo Frances, caberia a psiquiatria advogar a criação de Centros Comunitários de atendimento e advogar em benefício dos pacientes. Quer dizer o seguinte, os psiquiatras foram afastados do atendimento aos doentes, não deu certo e agora são acusados pelo descalabro da assistência.

  • Há progressos na Psiquiatria? (Resposta de Ann Harrington, autora de “Mind Fixers” e outros importantes livros sobre a psiquiatria sob a visão de uma historiadora de Harvard).

Pela perspectiva de um historiador, somente faz sentido falar em progresso, ou imaginar a psiquiatria aprendendo por cada uma das eras, se se puder mostrar que as novas gerações esteja, de fato, sendo ensinadas a respeitar e refletir o que puder ser aprendido de projetos que agora são visto como grandes fracassos. É minha impressão que em cada tempo houve projetos de abordagem que fracassaram grandemente. É minha impressão que em cada tempo a psiquiatria pensava que estava à beira de uma revolução e na perspectiva que seus rivais estariam à míngua de oxigênio. As pessoas se tornaram mais conhecedoras de algumas coisas e mais ignorante acerca de outras. Os Livros textos são reescritos de maneira a enfatizar novas ortodoxias. Programas de treinamento são renovados. Esta maneira de reencontrar o passado e, certamente, não inevitável. Anne Harrington

Em 1916 Emil Kraepelin escrevia sobre a história da psiquiatria e demonstrava entusiasmo comparando com os duzentos anos anteriores de assistência aos doentes mentais. Acho que foi ele quem cunhou a expressão que a psiquiatria é um museu de histórias fracassadas. Começamos com a ideia do asilo, do tratamento moral, das colônias para crônicos, dos tratamentos ditos biológicos; choque de Meduna, choque Insulínico de Sackel, Malarioterapia de Von Jauregg e o Eletrochoque de Cerletti e Bini. Na metade do século XX o progresso veio com a penicilina que esvaziou os hospitais dos sifilíticos e o surgimento dos antipsicóticos. Quanto aos livros textos ela tem razão, se repetem numa expectativa sonhadora.

  • Os Limites da Nosologia Psiquiátrica

Parece-me que a noção de que a nosologia psiquiátrica almejaria descrever e catalogar toda a manifestação e transformação do desconforto humano é fora da realidade. As complexidades do cérebro e do meio social em que ela funciona são tais que a proposta que os problemas psiquiátricos devem vir em números de pacotes tratáveis, umas suficientemente descritíveis (etiologicamente, fenomenologicamente etc.) de forma a se fazer diagnóstico categóricos, com sentido e úteis, é certamente desviada. (G. Scott Waterman e Sandra Steingard. MDs).

Esta observação faz sentido, não podemos catalogar toda a vivência humana dentro de patologias. Viver é experimentar, crescer, fracassar, tentar de novo. Nem tudo pode ou deve ser diagnosticado. Neste ponto devemos lembrar Henry Ey que considerava a doença mental como uma patologia da liberdade. O psiquiatra deve trabalhar com o paciente a libertação das amarras que o impedem de atingir seu melhor. Um psiquiatra não transforma ninguém em gênio, apenas favorece que se realize.

 

  • Uma crise intelectual

“A psiquiatria atravessa uma crise intelectual. Esta crise é compartilhada por outras áreas da medicina clínica e vinculada ao um conceito estreito de ciência que negligencia a prática clínica como uma fonte de questões fundamentais para pesquisa. A maioria das pesquisas não tem relevância para a prática. O progresso das neurociências nas últimas duas décadas levou a crença que os problemas clínicos em psiquiatria seriam resolvidos por esta forma de abordagem. Tais esperanças são compreensíveis considerando a propaganda maciça operada pela biotecnologia e corporações farmacêuticas. Um crescente número de psiquiatras está questionando, entretanto, porque as curas e o conhecimento que as neurociências prometeram, não aconteceram”. (G. Fava.MD).

Este é um assunto redundante. Vivemos um momento de grande influência da indústria na prática médica em geral e na psiquiatria também. Os mais jovens acham saudosismo os médicos que advogam colocar a “mão na massa”, ouvir o paciente, tocá-lo, entendê-lo, atender suas necessidades reais e não ficar na espera de uma solução tecnológica ou de uma “pílula” especial. Se avançarmos nessa dependência das máquinas, facilmente seremos substituídos por um computador

  1. Além da Redução Sintomática ((Lisa Cosgrove MD))

“O modelo contextual de redução dos sintomas propõe a individualização da pessoa que sofre e afasta o foco do contexto sociopolítico no qual a “depressão”, sempre se manifesta. Então eu penso, pode tal modelo inadvertidamente minar nossa habilidade como clínicos de entrar por completo e empaticamente no mundo do outro? Estamos perdendo uma apreciação pelo conteúdo da narrativa de um indivíduo ou por causa de uma super ênfase no modelo biomédico de depressão e com orientação pelo resultado da evolução da doença? O sofrimento emocional tem uma dimensão social, moral e existencial que não pode facilmente ser reduzida a categoria de doença.

Estou trabalhando a ideia da “depressão” a partir do livro “Império da Depressão” e que será objeto de um artigo à parte.

 

6.) “Resistência ao Tratamento” e a Negação da Dinâmica da Personalidade.

“Tempos atrás eu perdi a conta do número de pacientes que eu via com Depressão resistente ao tratamento que era ajudados pela psicoterapia. Me mostra um paciente com resistência ao tratamento ou algo similar, eu mostrarei alguém cuja dinâmica de personalidade nunca foi compreendida ou abordada em psicoterapia… Nossas dificuldades são tecidas na construção de nossas vidas e com raízes em repetidos padrões de pensamento, sentimento, motivação, ligação, cópia, defesa e relacionada a outros- isto é que chamamos de personalidade. A partir desta perspectiva, depressão é um efeito e não a causa. Não pode ser tratada no vácuo, separada da experiência pessoal. (Jonathan Shelder PhD).

Voltamos ao tema da depressão que examinaremos com maior profundidade em outro artigo

7.) A deterioração do Ambiente da prática. (George Dawson, MD)

O ambiente da prática não é mais um lugar de inclusão médica e orgulho nos aspectos técnicos e humanitários do trabalho. É um modelo baseado na produtividade e os médicos não são mais tratados como trabalhadores especializados. Eles são tratados como qualquer operário que pode ser substituído por gerentes de negócios ou seus comandados que não tem nenhum conhecimento sobre cuidado a pacientes. A média dos pacientes não tem a mínima ideia da atmosfera no qual seu médico está trabalhando quando ele entra num hospital ou clínica”.

Esta é uma verdade que assistimos com tristeza, o médico perdeu seu nome, não é mais um indivíduo, é médico do plano A. ou B., pode ser substituído a qualquer momento e não fará diferença para o paciente que deixou de sê-lo, agora é usuário. Tudo massificado, otimização de resultados. Procedimentos caros, repetidos e depois encaminhados. O médico cuidadoso e meticuloso, é criticado, demora muito. O paciente chega com uma lista de exames que exige que o médico atenda. Muitas vezes nem vai fazer os tais exames que viu na Internet. Enfim é um mundo de horrores que exigem mais de um livro para descrevê-lo.

Referência


10 Critical Conversations to Evaluate the Status Quo in Psychiatry
 May 24, 2021 By Laurie Martin (10 Critical Conversations to Evaluate the Status Quo in Psychiatry (psychiatrictimes.com)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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