Junho de 2020 – Vol. 25 – Nº 6

Walmor J. Piccinini

Fazendo História

Os anos 1960 foram cheios de acontecimentos que vão do surgimento da pílula anticoncepcional aos Beatles. Da difusão dos antipsicóticos ao surgimento da antipsiquiatria. Na psiquiatria brasileira o fato marcante foi a inauguração da Clínica Pinel de Porto Alegre em 28 de março de 1960. Com ela foi introduzida uma nova concepção de atendimento psiquiátrico hospitalar. Criada nos moldes da Clínica Menninger dos EUA, revolucionou o atendimento psiquiátrico hospitalar no nosso meio. Vou reproduzir dois trabalhos da época. O primeiro foi publicado nos Arquivos de Neuropsiquiatria e o segundo nos Arquivos da Clínica Pinel. Eles têm valor, no mínimo histórico, pelo menos o feito por mim e que foi meu primeiro artigo publicado e relata minhas experiências como atendente psiquiátrico.

  1. Ambientoterapia por Marcelo Blaya Perez
  2. Experiências de um estudante de Medicina em um hospital psiquiátrico. Por Walmor J. Piccinini

 

AMBIENTOTERAPIA: COMUNIDADE TERAPÊUTICA

MARCELO BLAYA *

Ao focalizar os aspectos relevantes das tendências psiquiátricas contemporâneas, três parecem destacar-se: 1) o emprego da psicoterapia; 2) o uso de drogas tranquilizadoras e energizadoras; 3) a estruturação do ambiente hospitalar como fator terapêutico. O método de tratamento psiquiátrico hospitalar que venho utilizando difere da prática hospitalar em outros centros pelas seguintes características:

1) o dia do paciente é planejado de forma que as 24 horas dentro do hospital tenham sentido terapêutico;

2) o tratamento é tarefa de equipe constituída pelo psiquiatra, enfermeiros, terapeutas ocupacionais, assistente social, psicólogo e recreação;

3) o tratamento é orientado para proporcionar ao paciente oportunidades de satisfazer seus impulsos conscientes e inconscientes, de modo a tomar o sintoma desnecessário;

4) o internamento é seguido por fases de hospital-dia e de consultório;

5) o tratamento utiliza métodos físicos, químicos, psicológicos e sociais, de acordo com as necessidades e a situação do enfermo.

Conceito de doença mental — Considero a doença mental como um fracasso dos processos integrativos do ser humano, o que obriga a lançar mão de ações reparadoras para fazer face a situações internas ou externas intoleráveis. O sintoma é a manifestação clínica desses processos reparadores que visam diminuir o nível de angústia e permitir uma integração em um plano regressivo de adaptação. Os fatores capazes de determinar esses fracassos podem ser de natureza hereditária, congênita, orgânica, psicológica e social. Como os fatores de natureza emocional desempenham papel importante, quer isoladamente quer associados a outros, são objeto de maior atenção. Isso não exclui a necessidade de examinar, cuidadosamente, os demais aspectos no diagnóstico da doença mental.

Conceito de comunidade terapêutica —

Uma comunidade terapêutica pode ser posta em funcionamento em enfermaria de hospital psiquiátrico, em secção psiquiátrica de hospital geral, em escola para oligofrênicos, em prisões. O que a caracteriza é a organização estrutural, ligando um grupo de pacientes e uma equipe terapêutica, de modo que o ambiente funcione como elemento do tratamento. Nessa situação, todas as pessoas que fazem parte do ambiente participam no sentido de oferecer ao enfermo uma situação onde os contatos interpessoais bem como as manobras terapêuticas tenham a mesma finalidade. As formas de tratamento podem ser, arbitrariamente, divididas em físicas, químicas, psicológicas e sociais. Métodos físicos — Em nossa comunidade terapêutica fazemos uso do eletrochoque em casos de depressões psicóticas com risco acentuado de suicídio e nas formas que não respondem bem ao tratamento medicamentoso. Usamo-lo também em certas formas de reações esquizofrênicas de tipo catatônico, quando a recusa de líquidos e alimentos põe em perigo a vida do paciente. O uso dessa técnica é, sempre que possível, discutido com o próprio doente; dificilmente um paciente é tratado com qualquer forma de terapia sem o seu prévio conhecimento e, geralmente, consentimento. O coma insulínico foi totalmente abandonado; julgamos que os melhores resultados obtidos com ele, são comparáveis ou inferiores aos que se obtêm com o uso de drogas fenotiazínicas, sem terem estas os riscos e as dificuldades peculiares à técnica de Sakel. Métodos químicos — O advento dos tranquilizadores veio mudar extraordinariamente o aspecto das enfermarias psiquiátricas e tornar obsoletas certas precauções, como é o caso das celas de segurança, das grandes medidas de contenção. As drogas contribuíram para maior difusão da comunidade terapêutica. Elas agem como antipsicóticas por sua capacidade de reduzir o nível de angústia nos enfermos e, desse modo, diminuem ou fazem desaparecer as ideias delirantes e as manifestações alucinatórias. O paciente agitado e agressivo, assim como o retraído, por ficarem em melhor contato com a realidade, podem ser abordados para serem tratados com as demais técnicas. Por esse motivo é que essas drogas, especialmente as de grupo dos derivados da fenotiazina, são de importância no programa terapêutico. Métodos psicológicos — Praticamente todas as técnicas usadas têm efeito psicológico, mas quero referir-me especialmente às várias formas de psicoterapia. A comunidade terapêutica se baseia, principalmente, nas relações entre o enfermo e uma equipe liderada por um psiquiatra: o contato entre o paciente e o médico é feito a intervalos regulares (30 a 60 minutos, duas a três vezes/semana), tendo como objetivo o diagnóstico e o tratamento. Esses contatos formais independem dos informais, cotidianos, fora do ambiente do consultório. Não empregamos o tratamento psicanalítico e sim várias formas de psicoterapia com orientação psicodinâmica. Classificarei essas técnicas em psicoterapia de apoio e de exploração. A psicoterapia de apoio procura reforçar os mecanismos de defesa capazes de dar ao paciente oportunidade de viver em sociedade; é usada especialmente com psicóticos, principalmente com o grupo de esquizofrênicos. A psicoterapia exploradora visa o estabelecimento de situação transferencial e a sua resolução mediante interpretações; é mais empregada com pacientes psiconeuróticos e com distúrbios de conduta. Com a mesma diferença, empregam-se as psicoterapias de grupo; temos presentemente dois grupos, um com predomínio de pacientes esquizofrênicos e, outro, com psiconeuróticos.

Métodos sociais

Várias atividades da comunidade terapêutica são feitas em grupos, visando a atividade específica e a oportunidade de ressocialização que o grupo oferece; estas atividades incluem terapia ocupacional, recreação, discussões informais e formais em grupos, psicoterapia de grupo, festas, excursões, administração pelo próprio doente, grupos de trabalho. Vou usar, especificamente, o caso da terapia ocupacional para ilustrar os aspectos da ocupação e do grupo, implícitos nessas atividades. Kris denomina de regressão a serviço do ego aquele tipo de regressão no qual o adulto pode tornar a criar e a viver fantasias infantis, descarregando tensões acumuladas por conflitos e frustrações do viver cotidiano sem, contudo, perder a sua capacidade crítica e a orientação dentro da realidade. É uma maneira de conservar satisfeitos os anseios infantis que todo adulto abriga. O teatro, o cinema, a televisão, os esportes, os jogos, os passatempos são várias maneiras de obter essas satisfações, sem entrar em choque com as imposições do grupo social. O enfermo psiquiátrico perdeu, em grande parte, a capacidade de fazer isso. As suas necessidades estão aumentadas e ele procura satisfazê-las através do faz-de-conta, da fantasia, mas de modo a perder o controle com a realidade exterior. Apesar de satisfazer os impulsos instintivos, não serve aos interesses do ego. As várias formas de terapia ocupacional são métodos auxiliares na comunidade terapêutica. Não têm como finalidade apenas ocupar o tempo do enfermo. É uma forma de tratamento estruturada em bases psicodinâmicas. O primeiro e mais importante dos objetivos da terapia ocupacional é proporcionar ao paciente oportunidades para a expressão ou a sublimação de impulsos instintivos e das necessidades emocionais, conscientes e/ou inconscientes. Além da relação interpessoal grupal, conta-se com a atividade propriamente dita. Para usar eficientemente a relação com e entre os pacientes, deve o terapeuta conhecê-los e contar com a supervisão de pessoa experiente. É, pois, importante que o médico e terapeuta, diríamos melhor a equipe toda, trabalhe harmônica e conjugadamente e que o primeiro possa fornecer aos demais não só um rótulo nosológico, mas também um quadro compreensivo da psicopatologia do enfermo em termos dinâmicos, os aspectos das necessidades instintivas a serem satisfeitas, o modo de tratar o enfermo, o tipo de atividades aconselháveis e os objetivos em mira. Do que se disse a respeito da terapia ocupacional é fácil compreender por que o terapeuta e o atendente psiquiátrico desempenham papéis de relevância na estruturação do ambiente. Eles têm um contato contínuo com os pacientes e por essa razão julgo importante melhorar a qualidade de seu atendimento, o que é feito através de cursos teóricos e de supervisão em grupo, na frequência de três vezes por semana. Com essa capacidade melhorada, são encarregados de executar os programas de tratamento idealizados e prescritos pelo médico. Torna-se de importância crucial o estabelecimento de atitude coerente por parte de todos com relação ao enfermo. Se um for indulgente e o outro polido, mas ríspido, a confusão do paciente fica potencialmente aumentada pela incoerência de atitudes dos membros da equipe. Se, por outro lado, se pretende estabelecer uma uniformidade absoluta nas atitudes de todos, incorre-se no grave erro de tolher a espontaneidade do terapeuta e obrigá-lo a forçar o paciente a ajustar-se ao hospital, quando o objetivo é criar programas hospitalares elaborados sob medida para atender às necessidades do enfermo. É indispensável a organização de um sistema de comunicações amplas e fáceis entre o médico e os demais membros da equipe. Em nossa comunidade terapêutica facilita-se isso na prescrição médica, a qual abrange instruções específicas quanto à atitude e ao ambiente em cinco áreas: 1) a estratégia do tratamento, onde se dá à equipe uma orientação geral e uniforme quanto ao procedimento com o paciente e seus problemas e conflitos; 2) a atitude, onde se sistematiza a forma de lidar com o paciente quanto às suas solicitações, pedidos, interrogações e negativas; 3) as relações com outros pacientes, visando evitar ou favorecer o isolamento, proteger o paciente ou o ambiente, encorajar ou refrear a participação; 4) a atividade, especificando-a, bem como estabelecendo o grau de liberdade e a forma de lidar com os problemas surgidos nessa área; 5) estabelecimento de concessões e restrições, ambas de grande efeito terapêutico.

COMENTÁRIOS

O tipo de tratamento que descrevemos é, possivelmente, o resultado mais importante da evolução da terapêutica psiquiátrica. Com essa abordagem, o sistema hospitalar psiquiátrico em Kansas (USA), sob a orientação dos Menninger, tem obtido resultados superiores ao dos demais Estados norte-americanos. Em termos de assistência pública parece, à primeira vista, dispendioso. Em minha opinião é preferível esse tipo de gasto intensivo por paciente do que um maior, a longo prazo, para a manutenção de um enfermo crônico em custódia hospitalar.

Em termos de paciente-dia, é mais dispendioso; entretanto resulta mais econômico quando considerado em termos de paciente-total de hospitalização. O uso adequado e flexível desse esquema permite tratamento individualizado, capaz de proporcionar os melhores resultados. O tipo de esquema eclético que descrevo é especialmente adaptável a uma secção psiquiátrica de hospital geral. A combinação da comunidade terapêutica em hospital geral é, possivelmente, o maior progresso feito no tratamento psiquiátrico nos últimos cinquenta anos.

RESUMO

Revisa-se neste relato o conceito de comunidade terapêutica, destacando-se a importância do ambiente como fator terapêutico, ao lado de outras formas de tratamento (físicos, químicos, psicológicos e sociais). Essa nova feição do tratamento psiquiátrico hospitalar capitaliza sobretudo a utilização das várias relações interpessoais que o paciente estabelece dentro do hospital. São “amizades” transitórias capazes de fortalecerem os conceitos de relacionamento interpessoal do enfermo e, desse modo, constituem fator de primeira grandeza no processo curativo. Chama-se a atenção para as possibilidades desse esquema em unidades psiquiátricas de um hospital geral.

SUMMARY Milieu therapy: the therapeutic Community. A concept of therapeutic community, emphasizing the milieu as a factor next to the other types of treatment is presented. This new kind of psychiatric inpatient care takes advantage of various types of interpersonal relationships within the hospital. The y are a sort of temporary friendships, capable of strenghtening the capacity of the patient in this respect. A s such it is a very important factor in the therapeutic process. Attention for the possibilities of such a plan in the psychiatric units of the general hospitals

“Relato apresentado ao simpósio sobre Aspectos relevantes da Psiquiatria, no XI Congresso Nacional de Medicina, Rio de Janeiro, julho de 1962. * Docente-livre de Clínica Psiquiátrica na Fac. Med. Univ. do Rio Grande do Sul

Experiências de um estudante de Medicina em um hospital psiquiátrico. Por Walmor J. Piccinini

Introdução

Este trabalho é fruto de experiências vividas pelo autor, estudante de Medicina, exercendo o cargo de atendente psiquiátrico na Clínica Pinel de Porto Alegre. Este hospital é o primeiro no RGS e um dos primeiros no Brasil, onde a orientação terapêutica repousa na aplicação de princípios psicodinâmicos e onde se procura adaptar o ambiente à satisfação das necessidades reais, conscientes e ou inconscientes do doente mental.

Resenha Histórica

A evolução dos hospitais mentais através da história acompanhou o progresso da Psiquiatria. À medida que novas luzes clareavam o espírito humano, permitindo melhor compreensão dos doentes mentais, os hospitais sofriam transformações, que permitiam a sua melhor recuperação.

O desenvolvimento dos hospitais pode ser dividido em etapas, cada uma com características particulares de encarar o doente.

Na primeira etapa tem-se a organização de asilo, cuja finalidade principal era a de isolar o enfermo do convívio social, poupando o grupo humano dos malefícios reais ou imaginários que sua presença poderia acarretar. O asilo foi uma forma benigna de fazer desaparecer o doente que provoca a angústia e a hostilidade na coletividade. As ouras formas eram as diferentes modalidades de tortura e morte que lhes eram infligidas.

Na segunda etapa, a Sociedade e a Medicina se convenceram que estes enfermos mereciam ser tratados como seres humanos e não como possessos do demônio. Nesta etapa devemos destacar o nome de Philippe Pinel, a partir de cuja atuação se começou a encarar o doente mental como ser humano.

Na terceira etapa o hospital passou a oferecer possibilidade de satisfação das necessidades psicológicas aparentes do enfermo, dando-lhe ocasião para trabalhar, divertir-se, etc.

Na quarta e última etapa, graças às descobertas de Freud e seguidores, abriram-se novos horizontes à psiquiatria. Nesta etapa, o hospital procura satisfazer as necessidades reais conscientes e inconscientes do enfermo. Temos nesta etapa o surgimento do primeiro hospital psiquiátrico a funcionar com orientação psicanalítica, o Sanatório Tegel de E. Simmel.

Simmel acreditava que, utilizando técnicas administrativas apropriadas era possível jogar com as variáveis do ambiente hospitalar indo de encontro às necessidades conscientes e/ou inconscientes do paciente, possibilitando a satisfação do instinto erótico. A dosagem adequada de frustração permitiria a análise de seus efeitos sobre o paciente. As ideias de Simmel encontraram ressonância na América do Norte onde surgiram dois hospitais que se tornaram modelos no tratamento e treinamento psiquiátricos: a Menninger Clínic, fundada pelos irmãos Karl e William Menninger e o Chestnut Lodge Sanitarium, ao qual estão ligados os nomes de H.S.Sullivan, Frida Fromm-Reichmann e D.Bullard. A Clínica Pinel de porto Alegre obedece, em linhas gerais, a estes modelos.

Equipe terapêutica

A Equipe terapêutica é constituída por um médico supervisor, um médico-residente, atendentes psiquiátricos e praxiterapeutas. Presentemente incluem-se assistentes sociais e psicólogos.  O hospital está constituído por diversas destas equipes que visam o atendimento individual dos pacientes. A equipe busca a recuperação do paciente adaptando-se às suas necessidades reais. Cada equipe atende um máximo de dez pacientes num dado momento. Ao lado destes serviços, temos a administração, encarregada dos assuntos gerais.

Participação do Atendente Psiquiátrico

O atendente psiquiátrico é um dos componentes mais importantes da equipe terapêutica, pois está diretamente ligado ao paciente. O atendente deve ser diferenciado do enfermeiro tradicional porque não se restringe aos cuidados higiênico-dietéticos-medicamentosos do paciente, mas além disto, convive com ele, estimulando-o para as mais diversas atividades.

O paciente mental encontra no atendente psiquiátrico alguém que lhe serve de companhia, que com ele joga e passeia, que o vigia e lhe dá conselhos. O atendente psiquiátrico é utilizado pelo psicoterapeuta, individual e coletivamente, em benefício do paciente. Coletivamente os atendentes caracterizam-se pela coerência no trato com o enfermo: deste modo adotam uma atitude amigável ativa em relação a um esquizofrênico ou uma atitude profissional firme em relação a um deprimido. Individualmente o psicoterapeuta utiliza o atendente por suas características pessoais que venham de encontra às necessidades inconscientes do enfermo.

Experiência Pessoal

O exercício da função de atendente psiquiátrico contribuiu para minha formação como estudante e abriu-me novos caminhos para o relacionamento interpessoal com meus pacientes e as demais pessoas. O relacionamento com aqueles não foi conseguido apenas pelo fato de trabalhar num hospital psiquiátrico, mas sim através da vivência dinâmica com eles e seus problemas. Tive oportunidade de mudar várias vezes meus conceitos sobre eles durante nosso convívio.

Creio que o meu amadurecimento como atendente psiquiátrico pode ser esquematizado em três fases distintas.

A primeira é a que chamo de apreensiva e nela situo as minhas primeiras experiências como atendente. O início de minha atividade foi cheia de temores, pois o conceito que tinha de doente mental era de pessoa perigosas, necessitando de grades para ser contida devido ao risco de agressão iminente. Com o passar dos dias, observando e mantendo contatos, comecei a sentir-me melhor e mais seguro. Delírios e alucinações, por mais berrantes que fossem, passaram a ser encarados com naturalidade e compreendidos como mecanismos defensivos patológicos. Nesta primeira fase, as situações inusitadas que se criavam no ambiente hospitalar, repercutiam-na minha maneira de ser. Algumas situações me deixavam angustiado, mas com a supervisão do psicoterapeuta enfrentava-as sem muito desgaste individual. Um caso particularmente difícil foi o de um rapaz esquizofrênico, tipo catatônico crônico, com sintomas paranoicos que não aceitava o tratamento e procurava demonstrá-lo evitando o relacionamento com a equipe terapêutica e deixando de participar das atividades hospitalares. Procurei de diversas formas conseguir sua amizade, mas fazia poucos progressos. Em determinada ocasião agrediu-me e isso compeliu-nos a utilizar a força para contê-lo. Este acontecimento, estranhamente, foi o marco inicial de uma boa amizade entre nós. Este fato fez-me compreender que o paciente não fica ressentido com o uso da força de maneira contensora, em situações que tenha perdido o seu autocontrole. Fez com que se sentisse mais seguro e ciente que tem alguém ao seu lado capaz de ajudá-lo.

Na segunda fase, desaparecido o temor inicial, fui possuído de um Excesso de confiança. Sentia no paciente uma criança e assim o tratava. Logo compreendi que estava errado e que ele necessitava algo mais do que as atenções dispensadas a uma criança.

A terceira fase pode ser chamada de amadurecimento. Vivendo intensamente a vida do hospital, estudando as noções básicas de Psiquiatria e com uma boa cobertura da equipe, passei a aceitar e entender os mecanismos patológicos defensivos e compreender melhor os seus portadores. Com os meus progressos no conhecimento da psicodinâmica do doente mental, tornou-se mais fácil interpretar a orientação do psicoterapeuta, pude funcionar melhor como atendente e com menor desgaste individual.

Graças a estas experiências, encarava com naturalidade as queixas hipocondríacas de determinados pacientes em estados depressivos. Sentia-me perfeitamente à vontade em forçá-los a funcionar na Praxiterapia e nas demais atividades hospitalares, conforme a prescrição. Com estes pacientes verifiquei que as gratificações secundárias apenas contribuíam para piorar o seu estado geral e que deveríamos propiciar a oportunidade a oportunidade que extravasassem a hostilidade. Particularmente, nos estados depressivos, além de forçar a atividade exercíamos uma vigilância constante pelo risco de suicídio.

Serviu-me de incentivo o fato que à medida que estes pacientes melhoravam, ficavam agradecidos e não demostravam agastamento com os que tinham tomado atitudes enérgicas com eles.

Com determinado grupo de pacientes esquizofrênicos a equipe procura dispender o máximo de atenções. Isto acontecia porque, de fato, são os mais necessitados devido ao seu grau de desintegração mental. Nota-se claramente a sua reação positiva às solicitações constantes e negativa às mudanças de atitude. Por ex., a chegada de um novo paciente mais necessitado de uma atenção especial, que implicasse na diminuição da atenção aos antigos, era seguida por um estacionamento ou regressão no tratamento de alguns esquizofrênicos.    Ao lidar com esquizofrênicos em atitude negativista, verifiquei que, embora pareçam estar “encistados” e alheio a tudo, ele observa o que se passa ao seu redor e mais tarde é capaz de relatar incidentes aos quais parecia não dar atenção. Isto serviu-me de exemplo para sempre tratar com respeito e fazer respeitar aos pacientes, nas mais diversas situações. O esquizofrênico é muito sensível às atenções de amizade sincera. Um exemplo característico foi o de uma paciente esquizofrênica tipo hebefrênica, que recebeu este trato de parte de um colega. Correspondia muito bem às solicitações e chegou a fazer delírios em torno da pessoa do atendente. Agia como gestante e dizia ser ele o pai da criança.

Os pacientes psicóticos são os que, basicamente, necessitam de amor em todas as relações com a equipe.

Creio que minhas experiências mais desagradáveis foram vividas com perturbados de conduta. Ao lado de uma “fachada normal”, as suas atitudes irresponsáveis, as manobras de envolvimento, particular e da equipe, vinha afetar consideravelmente as minhas noções de hierarquia. Minha reação inicial era de enfrentá-los agressivamente. Na supervisão médica foi-me apontado que assim agindo estaria me envolvendo emocionalmente e fazendo o jogo deles. Controlei meus impulsos e procurei compreendê-los melhor. A maioria luta contra a falta de uma identificação sadia na formação de sua personalidade. Seu tratamento consistia em dar-lhes um novo modelo de identificação, melhorando seus controles. A equipe de atendentes, agindo de maneira correta e coerente, torna mais fácil a missão do médico. A coerência nas atitudes deve ser comum no trato com todos os pacientes, mas estes se mostraram particularmente sensíveis a ela. Para sermos coerentes, utilizamos, às vezes, a força. Determinado paciente, em diversas situações, compeliu-nos a isso. Preocupei-me com as ameaças de morte feitas por ele a minha pessoa. Fiquei contente quando ele teve alta e veio me dizer-me que havia compreendido o porquê do emprego da força. Com os perturbados de conduta devemos estar sempre atentos, pois são hábeis e procuram atirar um membro da equipe contra o outro, dividindo deste modo a força do conjunto. Em certa ocasião, diversos perturbados de conduta, uniram-se num bloco coeso e com astúcia minaram a estrutura da equipe terapêutica. Tornaram-se donos do “jornal mural” do hospital e através dele davam classificações de bom e ruim aos atendentes, praxiterapeutas e médicos. Todos procuravam aparecer no jornal como bons, porém, o ambiente hospitalar ficou tão conturbado que foi necessária uma revisão na orientação com estes pacientes. Esta experiência mostrou-me que se deve ter uma compreensão emocional destas situações. Deve-se agir certo e coerente, mesmo que no momento isto pareça ao paciente que seria injusto. Estas, foram, em linhas gerais, as experiências que tive no trato com o doente mental. Creio que os ensinamentos obtidos me possibilitam um melhor relacionamento com pacientes e não pacientes.

Comentários

A experiência num hospital psiquiátrico permitiu-me obter um amadurecimento que se refletiu de maneira positiva no meu estudo, no meu relacionamento familiar e social. Embora sem poder dar um cunho científico a este trabalho, senti que minha experiência poderia ser útil como orientação para outros colegas.

No nosso curso preocupamo-nos em ser bons médicos e par isto dedicamos nossos esforços. Creio que, somente seremos bons médicos, quando além de uma técnica perfeita tivermos um bom conhecimento de quanto o homem sadio se parece com o doente. No dizer de Cerqueira3, a Universidade tem o dever de dar a melhor formação técnica, mas não é menor a sua obrigação em exigir desses técnico que se tornem homens equilibrados, personalidades emocionalmente amadurecidas, capazes de se darem adequada e equitativamente, pois vão lidar com o espírito de outrem. Ao citar estas palavras, seu pensamento estava voltado para a formação de praxiterapeutas, mas cito-as pesando no estudante de medicina.

Creio que meus progressos no relacionamento interpessoal sejam devidos a esta vivência e aprendizado. Saber compreender os pacientes e as pessoas ditas normais, requer algo mais que boa vontade. Requer conhecimento da dinâmica do indivíduo. Encarar situações de pânico e tentativas de suicídio com naturalidade, também só o conseguiremos vivendo situações inusitadas. Além disto tudo, uma coisa que muito nos custa é dar amor a alguém. Dar-se a si mesmo no trato do doente é difícil e requer longo aprendizado e um grande amadurecimento pessoal.

Conclusões

  1. O hospital mental de orientação psicodinâmica é o que melhor temos atualmente para o tratamento do doente mental, por se ajustar às suas necessidades reais conscientes e/ou inconscientes.
  2. A nossa equipe terapêutica é formada de profissionais com funções definidas, liderados pelo médico. Sua estrutura é dinâmica e tem como objetivo imediato a recuperação do doente mental.
  3. O estudante de medicina, exercendo a função de atendente psiquiátrico, tem a oportunidade de compreender a psicodinâmica do indivíduo e, ao mesmo tempo, de amadurecer emocionalmente.
  4. Para lidar com doentes mentais, o atendente psiquiátrico ou o estudante de medicina nesta função, deve possuir um determinado equilíbrio emocional e ser supervisionado pelo médico.
  5. Nossas escolas, além de formarem bons técnicos deverão se preocupar em formar homens emocionalmente maduros e aptos a compreenderem o homem são ou doente.

Referências nacionais.

  1. Blaya, Marcelo. Tratamento Hospitalar com Orientação Psicanalítica (Tese, 1960).
  2. Cerqueira, Luís. Praxiterapia numa Clínica Psiquiátrica Universitária. J. Bras. Psiquiat. 4:320330, 1958
  3. Zimerman David E. O Atendente Psiquiátrico como fator terapêutico hospitalar. Arq. Clín. Pinel, 1:163, 1961.

 

 

 

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