Junho de 2020 – Vol. 25 – Nº 6

Sérgio Telles

 

CORINGA (2019), filme de Todd Phillips, foi indicado para Oscar em várias categorias e venceu o de melhor ator (Joaquin Phoenix) e trilha sonora.

É parte de uma safra de filmes baseados em personagens de histórias em quadrinhos que pretende dotá-los de uma densidade psicológica inexistente nas versões originais. Ao invés da convencional narrativa onde o herói é a impoluta encarnação do bem e o bandido o perverso representante do mal, essas versões mostram que ambos podem ter momentos ambivalentes de dúvidas, medos, angústias. Seus inusitados comportamentos passam a serem vistos como decorrentes de traumas e sofrimentos vários sofridos em seus passados. É o que ocorre nesse CORINGA, que já foi por muitos comparados ao filme TAXI DRIVER, de Martin Scorsese.

A genealogia do Coringa é interessante, pois remete ao mito de dois irmãos em luta e rivalidade. Embora negado, Wayne, pai de Bruce Wayne, o Batman, de alguma forma é “pai” de Arthur Fleck,  o que faz com que Batman e Coringa sejam “irmãos”, uma espécie de Caim e Abel, um voltado para o bem, outro para o mal.

Embora o filme tenha sido aclamado por público e crítica, nos Estados Unidos alguns julgaram que ele estimula a violência e o crime, encorajando solitários e desajustados a cometerem assassinatos em massa nas escolas e ajuntamento de pessoas, como é frequente naquele país. Outros aproximaram o personagem aos incels – sigla referente a Involuntary Celibates (Celibatários Involuntários), grupo formado por homens heterossexuais brancos que não conseguem arranjar parceiras sexuais ou estabelecer relações amorosas e que estão listados entre os haters, grupos de ódio que atuam na internet. Observadores negros disseram que a simpatia e condescendência com as quais o personagem foi construído seriam impossíveis se ele não fosse branco.

 

Do ponto de vista psicanalítico, uma visão après-coup da história de Arthur Fleck poderia ser resumida assim: uma criança rejeitada pelos pais biológicos é adotada por uma mulher psicótica, que a negligenciou, colocou várias vezes sua vida em risco, sem defendê-la das agressões de seus namorados. Posteriormente a envolve num romance familiar delirante, no qual assume a maternidade e atribui a paternidade a um homem importante e poderoso. É de se supor que para continuar vivendo com essa “mãe” numa relação simbiótica e indiscriminada (vide cena na qual a banha com desvelo), sem referências paternas, Arthur teve de fazer uso de maciças repressões, cisões e negações. Teve, pois, a sua disposição figuras frágeis e distorcidas para introjetar como modelos estruturantes de seu psiquismo, de sua identidade, deixando a porta aberta para a eclosão da psicose.

Com sua gargalhada compulsiva, uma internação psiquiátrica anterior e tomando 7 medicações ao dia, Arthur vive em condições financeiras precárias e tem um subemprego trabalhando como palhaço, enquanto sonha uma carreira de comediante, fascinado pelas celebridades da televisão. Poderíamos pensar que suas escolhas profissionais, e até mesmo sua risada compulsiva, estariam marcadas pelo fato de a mãe chamá-lo de Happy e dizer que ele viera ao mundo para trazer alegria e felicidade para todos.

Arthur explicita seu frágil estado mental nas entrevistas com a assistente social que lhe dá suporte terapêutico. Ali ele fala de seu estado depressivo, suas vivências de despersonalização e dissociação, confessando que “nunca teve um instante de felicidade” – o contrário do vaticínio da mãe. Sua debilitada estrutura interna recebe forte abalo com os dois episódios de violência física perpetrada pelos adolescentes e pelos homens no metrô e com a humilhação pública trazida pela exibição na televisão de sua apresentação vexaminosa no clube de stand-up comedy. A isso se soma a traumática descoberta de suas origens, o que faz entrar em colapso os parcos remanescentes de seu equilíbrio psíquico.

Quando Arthur mata a mãe, de certa forma estava apenas concretizando na realidade algo que já ocorrera em seu mundo interno.  A descoberta de suas origens é um momento decisivo que marca a perda de importantes sustentáculos simbólicos: a figura da mãe, que, por mais precária que fosse, era um esteio identificatório – como também perde Wayne como uma remota e idealizada figura paterna. O posterior assassinato de Murray, o admirado homem de televisão, também vai nessa linha, ele também era uma figura paterna que o traiu  e humilhou, agindo de forma diferente daquela como o tratara numa ida anterior ao programa, quando o protegeu da chacota da plateia e lhe disse que gostaria de ter um filho como ele. Provavelmente essas situações dramáticas atualizam os traumas arcaicos primários de abandono e maus tratos.

Nesse sentido, o filme propõe uma explicação traumática clara e transparente da psicose, da loucura, da violência. Artur é louco e violento por ter sofrido inúmeros e variados traumas provocados pelo meio externo – abandono, abuso, humilhações, feridas narcísicas insuportáveis. Após suportar passivamente tais agressões por um longo tempo, ele finalmente reage, devolvendo as agressões sofridas.

Colocada nesses termos, essa explicação traumática da psicose mais parece decorrer de uma visão cognitivo comportamental do psiquismo, próxima ao do arco reflexo automático de estímulo e resposta, bem diferente da visão psicanalítica, que reconhece o trauma, mas pensa como ele vai ser processado no mundo interno e suas dinâmicas inconscientes.

Essa visão revela sua deficiência quando lembramos que a agressividade não estava circunscrita a Arthur, estendia-se a todos os demais personagens. Como entender a violência dos colegas de trabalho, dos adolescentes, dos homens de Wall Street, dos grupos de protesto que provocam motins e saques nas ruas durante as manifestações políticas contra as autoridades da cidade? Como entender os desmandos destrutivos das autoridades, o descaso que deixou a cidade entregue ao lixo e aos ratos? O que pensar da atitude agressiva e soberba de Wayne que despreza os pobres e diz que eles são “palhaços” invejosos? Teriam todos sofrido traumas como Arthur?

Seguramente eles não teriam sofrido agressões e traumas do meio ambiente tão marcantes como Arthur. Não obstante, sem a intensidade extrema com que se abateu sobre Arthur, o meio externo, o meio ambiente, atinge a todos através do desejo e imposições dos pais, da família, do grupo, da cultura. Sem exibir a forma brutal vivida por Arthur, o mundo externo, através do desejo dos pais, vai sempre condicionar e organizar o psiquismo do sujeito. É uma condição estrutural, pois nós nos constituímos no desejo do outro.

Do ponto de vista psicanalítico, esse é um aspecto a ser corrigido no filmes. A loucura e o próprio psiquismo não se reduzem a um funcionamento reflexo simples de estímulo-resposta, há toda uma complexa estrutura que possibilita o funcionamento consciente e inconsciente da mente. Mais ainda, esse funcionamento psíquico é posto em movimento pela força das pulsões de vida e de morte, Eros e Tânatos.

Da maneira como o filme mostra, Arthur sofre passivamente a violência do meio e, ao se desestruturar, reage na mesma moeda. É como se ele fosse uma vítima passiva que, num determinado momento. se vinga. Ele apenas reage, nada vem propriamente dele, a não ser a reação.

Ao incluirmos na equação o entendimento de que existe uma complexa estrutura psíquica movida por uma dotação pulsional, vemos que o mundo interno não é apenas uma cópia do mundo externo. Ele é internalizado e transformado pela pulsão e pelos mecanismos do inconsciente, pelo processo primário. No caso de Arthur, a inclusão do pulsional faz entrar em jogo o sadismo e o masoquismo, o que lhe dá uma outra complexidade. Ao sofrer e exercer a violência e a destrutividade, ele não estaria apenas suportando ou descarregando de forma ativa o que tivera de sofrer passivamente, mas está gozando de forma sádica ou masoquista.

Talvez o filme reflita aspectos da psicanálise norte-americana das relações de objeto, excessivamente centrada no relacional em detrimento do pulsional.

Na verdade, essa é uma questão central na psicanálise – o que predomina na constituição do sujeito, os fatores internos (o pulsional) ou os fatores externos (o outro, o relacional)?

Laplanche diz que essa questão se inicia com Freud ao ouvir suas pacientes relatarem ter sido seduzidas na infância por um adulto, o pai, quando elabora a teoria da sedução. Logo substitui essa visão pela teoria pulsional – as cenas de sedução relatadas pelas pacientes não são lembranças de fatos ocorridos e sim fantasias decorrentes das pulsões. Apenas mais tarde Freud sistematiza a teoria do complexo de édipo, mas sem articulá-la suficientemente com a teoria pulsional das fases de evolução da libido. Laplanche diz que nesse percurso se sintetiza a oscilação teórica entre a primazia do outro ou do pulsional no acontecer psíquico.

Disso deriva duas concepções do aparelho psíquico, a primeira que o vê como uma mônada solipsista pulsional, e a outra como uma estrutura aberta para o outro. Um exemplo mais simples desse impasse teórico se apresenta com o narcisismo: é ele uma estrutura fechada em si, anobjetal, ou implica necessariamente o outro, a mãe?

A psicanálise atual pende para a concepção aberta do aparelho psíquico, que permite ir além do intrapsíquico e incluir o interpsíquico, o interrelacional, o intersubjetivo, o transubjetivo. Tal visão psicanalítica se inicia com os estudos sobre  a transferência e contratransferência, que levantam uma importante questão tópica, desde que ambas acontecem não nos aparelhos psíquicos individuais de cada um da dupla analista-analisando, e sim entre eles, é um produto hibrido que ocorre num espaço comum criado pela fantasia dos dois, espaço posteriormente chamado de transicional por Winnicott. Além das considerações em torno da transferência e contratransferência, a questão da relação com o outro já aparecia em Freud em seus estudos de grupo (“O ego e a psicologia das massas”), nos trabalhos de Melanie Klein sobre identificação projetiva, nos estudos de Bion sobre grupo e todos os trabalhos mais recentes dos autores que propõem diferentes enfoques para o que chamam de “terceira tópica”.

O enfoque pulsional e o relacional (relação de objetos) não se excluem, a pulsão e o objeto estão intimamente ligados, na medida em que o último é onde ela descarrega sua energia. As pulsões são moduladas através das relações com o outro e essas relações, por sua vez, são internalizadas e reinvestidas pelas pulsões, que as submetem aos mecanismos psíquicos inconscientes.

Vê-se que a violência de Arthur não decorre apenas das experiências traumáticas violentas com o mundo externo, mas também da intensidade de sua dotação pulsional e de sua estrutura psíquica, que não permitem integrá-las e processá-la respeitando o princípio da realidade.

Que a agressividade deva ser modulada dentro do princípio da realidade não deve ser confundido com a adaptação à realidade social. E esse é um outro aspecto interessante no filme – a ligação entre a loucura de Arthur e a loucura social, colocada já na primeira cena: vemos a cidade tomada pelo lixo e pelos ratos, ao mesmo tempo em que aparece Arthur se maquilando e forçando, de forma dissociada, expressões faciais grotescas. Já aí entramos em contato com a dificuldade de Arthur com seu corpo – as caretas, a risada, a deformidade da face do Coringa, sua surpreendente dança.

A superposição da loucura de Arthur e a loucura social é mostrada várias vezes em seus encontros com a multidão vestida de palhaço. Os manifestantes  estão assim vestidos como resposta à agressão de Wayne que, como vimos, chamara os pobres e despossuídos de “palhaços” e também como uma identificação com o palhaço que matara os executivos de Wall Street – o assassinato cometido por Arthur adquirira uma inesperada conotação política, representando a revolta contra o poder constituído que zela pelos interesses dos ricos e ignora os pobres, como diz sua terapeuta ao avisá-lo de que não terá mais medicação ou seguimento pois o serviço foi descontinuado  “e eles estão se lixando para gente como nós”. A greve dos lixeiros tem uma conotação simbólica, quer seja como referência ao lixo da corrupção política, ou metáfora do “lixo” humano produzido por uma economia criadora de grandes injustiças sociais.

Essa superposição é interessante na medida que confunde a loucura psicótica de Arthur com a violência de um protesto ou revolta política. É necessário discriminar a primeira – violência psicótica, regida por conflitos internos, da segunda, imposta por questões reais, como situações de tensão ou opressão social quando o protesto e o uso da violência podem ser legítimos e não expressão de loucura. Não se pode patologizar o protesto político.

As cenas com os palhaços são interessantes não só por proporem uma confusão entre a loucura psicótica e a violência política, mas por mostrar, por um lado, o esfacelamento da identidade de Arthur (o palhaço Arthur se dissolve no meio de uma multidão de palhaços) e, por outro, mostrar as situações de psicologia de grupo e do mal-estar na cultura, tal como descritas por Freud.

Essa confusão entre a violência psicótica e a social leva a outra distinção – a que existe entre violência e destrutividade. A violência é a expressão direta da força que muitas vezes é necessária para defender a vida e seus próprios interesses. A destrutividade visa aniquilar o outro enquanto ameaça ao próprio narcisismo. A violência e a agressão podem estar a serviço das pulsões de vida, a destrutividade é uma expressão da pulsão de morte. Melanie Klein afirma ser a inveja o sentimento destrutivo por excelência, avatar direto da pulsão de morte.

Para Arthur, entretanto, essa superposição reforça seus delírios de grandeza. Sente-se reconhecido como herói e exemplo seguido por todos. A psicose está consolidada. Ele mata mais um, a psiquiatra, e foge para dar seguimento a sua vida de crime, assumindo a nova identidade como Coringa, uma imagem que bem sintetiza vários aspectos de sua história.

É interessante que Arthur escolha se caracterizar de Coringa e sua maquiagem justamente acentue um riso perpétuo, que apontaria para a negação maníaca, a impossibilidade de deprimir, de fazer lutos. Alguns autores acham que o personagem foi vagamente inspirado no livro “O homem que ri”, de Victor Hugo. No livro, quando criança, o personagem foi roubado dos pais aristocratas por uma trupe ambulante de saltimbancos e sofreu incontáveis abusos e o acidente que lhe deformou definitivamente o rosto com um riso imutável. O ter um romance familiar complicado toldando as origens leva a problemas de identidade, como aparece no filme. A esse respeito, não esqueçamos que no baralho o coringa é uma carta sem “identidade”, ela pode assumir o valor de qualquer outra, o que bem ilustra o quadro psicológico.

Voltando ao filme, a fuga de Arthur, já metamorfoseado de Coringa, se dá ao som de That´s life, cantada por Frank Sinatra. Deveriam ter traduzido a letra, pois não é à toa que a música toca naquele momento final. É uma canção desesperada de alguém lutando com todas as forças, disposta a pagar qualquer preço para não perecer.

Para sintetizar, diria que o filme mostra uma visão parcial e um tanto ingênua da loucura, na medida que a descreve como uma mera reação reflexa a agressões externas, sem se dar conta da complexidade da atuação dos fatores do mundo externo, que não se reduzem aos traumas como os de Arthur e dependem fundamentalmente do desejo do outro, da fusão desses elementos externos provenientes do outro com os fatores pulsionais e o intricado jogo dos mecanismos inconscientes que eles colocam em andamento.

Outra confusão que o filme promove é equiparar a violência psicótica louca de Arthur com a violência de protestos políticos. O palhaço de Arthur não pode ser confundido com os palhaços que protestam contra Wayne.

Se quiséssemos ampliar mais ainda, diríamos que o filme aborda as origens do mal.

 

[1] Participação em mesa redonda com Dora Tognolli (SBPSP) promovida pela Associação de Psicoterapia Psicanalitica (SP) em 16/05/2020

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