Abril de 2020 – Vol. 25 – Nº 4

Luiz H. M. Pereira

 

1 INTRODUÇÃO

 

A notoriedade da carreira médica recai no caráter intensivo que a permeia desde o preparo acadêmico para o exercício da profissão – em que o grande volume de informações e de técnicas a serem diariamente assimiladas se faz expressivo desde os primeiros anos de preparo2 -, até a atuação em medicina, por si – em que os profissionais precisam atender às múltiplas demandas simultâneas que vão desde a perfeição clínica à correspondência com visões socialmente instaladas de aptidão e onipotência20.

Essa natureza intensa da profissão, entretanto, tem sido continuamente estudada e revisada, haja vista o grande potencial adoecedor de um ofício cuja fama e papel sociais ditam uma dedicação extraordinária – e, por vezes, exclusiva – de modo a culminar na exaustão física e psíquica dos profissionais. A condição adoecedora do curso, então, é traduzida nos altos índices de comorbidades psíquicas, principalmente no que tange à depressão – a classe médica figura como a principal população acometida por essa psicopatologia, dentre os demais grupos ocupacionais – e o suicídio – aqueles que ingressam no âmbito médico exibem índices de prevalência e incidência para o suicídio superiores àqueles observados para a população geral, sendo esse aumento ainda mais dramático quando se analisam os mesmos índices para as mulheres que compõem o grupo2.

Nesse contexto, destaca-se a vulnerabilidade aferida para a classe médica feminina que a acompanha desde o preparo na academia ao exercício pleno da profissão médica. Essa vulnerabilidade se traduz, como visto neste estudo, em níveis alarmantes de comorbidades psicológicas que, por vezes, culminam na ideação e no ato suicida. Esse cenário se faz urgentemente preocupante, pois, além de nutrir um fator destrutivo ao bem-estar e saúde das mulheres que compõem a população médica, vai, também, de contramão à tendência observada ao âmbito profissional de maior inserção de representantes do gênero nessa comunidade10, 11.

A presente revisão, portanto, visa ao levantamento de hipóteses pertinentes ao entendimento efetivo do fenômeno (sem haver, com isso, a ambição de esgotamento do debate) e à viabilidade de ações interventivas futuras, as quais venham a firmar um meio mais salutar ao bem-estar das mulheres que constituem o grupo médico.

Palavras-chave: Suicídio. Depressão. Gênero. Médicos. Estudantes de medicina.

 

2 FENÔMENO

 

Não raras são associações feitas entre a carreira médica e a concepção de um alto rendimento e grau de exigência de seus representantes, havendo a ligação automática entre os profissionais e estudantes de medicina a um espírito de extrema resiliência e racionalidade.

Esse ideal historicamente erigido foi pautado no reconhecimento do curso médico em seu caráter de fina e árdua seleção de estudantes para o seguimento na formação, de construção de uma linguagem acadêmica de fluência exclusiva para os seus pares e de uma carga horária e disciplinar de notória extenuação. Como resultado, o preparo em medicina tem sua legitimidade assentada no treinamento de alunos para uma rotina extrema e uma alfabetização técnica intensa. Soma-se a isso, um reconhecimento, mais atual, do cenário médico indutor da negação e supressão do aspecto sensível e subjetivo, de um cotidiano face à dor e sofrimento de outros e aos maus relacionamentos em hierarquias ainda perpetradas no curso médico e no dia a dia desses profissionais8.

Como consequência, a escola médica se torna âmbito propulsor de estresse e com repercussões negativas na saúde e bem-estar geral de seus integrantes. O quadro descrito, além do certo impacto destrutivo em termos de qualidade de vida do grupo, converge para uma redução significativa no rendimento acadêmico da classe estudantil; para a adoção de respostas não adaptativas para lidar com angústias e sentimentos negativos – a exemplo do uso de drogas, lícitas ou não, como refúgio, a negação à ajuda profissional e outros comportamentos de risco –; para o abandono do ofício9; e para o desenvolvimento de comorbidades psíquicas. Esse viés se torna continuamente reforçado pela literatura, a qual aponta a grande incidência de transtornos psiquiátricos, como depressão, abuso de substâncias, estresse, Burnout e ansiedade associada ao meio acadêmico e atuação profissional dos futuros médicos e daqueles que já se encontram em pleno exercício da profissão3, 8. Dessa maneira, a classe médica passa a figurar como aquela, dentre todos os grupos ocupacionais, portadora de maiores índices de prevalência e incidência de ansiedade e depressão2, 7.

Uma vez analisados os índices para o predomínio do transtorno depressivo para a população médica, torna-se possível perceber a sua alta prevalência no grupo em análise, além de estar associado com outras comorbidades psíquicas e abuso de substâncias.

Essa assertiva se baseia na observação de um alto grau de desordens emocionais performadas por estudantes de medicina numa observação de dois anos, a qual aponta para níveis preocupantes de depressão, ansiedade e estresse em quase 50% da população estudada5. A conclusão dessa alta prevalência para a depressão, associada a outras comorbidades, fez-se comum aos vários estudos que se somam à literatura a respeito da problemática e acompanham os indivíduos ao longo do exercício da carreira3, 9, 12, 13.

Nesse contexto, a depressão isolada, num estudo de coleta de dados de mais de 60 mil estudantes de medicina, figura em 30% dessa população7 (Gráfico 01).

 

Trata-se, portanto, de dados eminentemente alarmantes na medida em que apontam para uma vulnerabilidade emocional da classe médica, como um todo.

Soma-se a isso a observação de um padrão, para o grupo em análise, consoante ao comportamento percebido para a população geral, o qual dita maiores níveis de desordens depressivas em mulheres, uma vez comparadas à tendência masculina de desenvolvimento do transtorno4, 5, 18. Nesse contexto, estudos alemães constataram uma razão para a prevalência de depressão entre mulheres da população médica 2 a 2,5 vezes superior àquela encontrada para a população masculina13.

Esses resultados, entretanto, fazem-se extremamente urgentes, na medida em que também é aferida uma incidência expressiva de suicídio entre mulheres que compõem a carreira médica. Sabe-se, assim, que ambos os índices – tanto aquele que aponta para alta incidência de depressão quanto o que faz menção aos eventos suicidas – estão intimamente vinculados, na medida em que a comorbidade mental supracitada figura como o principal fator predisponente à ideação e ação suicida24, 25.

O aumento desse índice foi constatado em estudos comparativos, e começa tão cedo é iniciada a preparação em medicina, podendo alcançar níveis 3 a 5 vezes superiores aos números relativos à população geral, aumentando à medida que há avanço acadêmico3, 4. Logo, as taxas de suicídio entre os representantes do gênero masculino e feminino, na classe médica, passam a se equiparar, em tendência oposta à observada, em que a população masculina geral exibe padrão superior para os níveis de suicídio e ideação suicida que aquele observado para a população feminina em sua totalidade5, 24, 26, 27.

A conclusão supracitada é corroborada na medida em que a análise da literatura permitiu a aferição de um crescimento de 40% nas taxas de suicídio entre médicos, uma vez comparada àquela relativa à população masculina norte-americana geral, e um crescimento de 130% para as taxas de suicídio entre médicas, paralelamente analisada à da população feminina, segundo estudo americano2 (Gráfico 03). Trata-se de resultados urgentes, na medida em que a ciência de uma alta prevalência de suicídios para a população masculina geral implicaria a expectativa de um crescimento mais significativo para esse gênero face à aridez do programa de preparação médica do que aquele esperado para o sexo feminino. Entretanto, a literatura aponta um comportamento inverso – com um aumento substancialmente maior para o sexo feminino, de modo que a taxa de suicídio entre médicas e estudantes de medicina, mesmo considerando ajustes de idade, torna-se comparável àquela observada entre os colegas masculinos21.

 

Gráfico 03: Análise comparativa da prevalência de suicídios entre a população médica em relação à população geral, a partir dos dados veiculados pelo trabalho de Schernhammer, E. (2004)23.

Masculina (p<0,001), Feminina (p=0,14). Logo, há um crescimento de 40% nos índices de suicídios para homens que vêm a compor a população médica, comparado ao aumento de 130% visto na prevalência de suicídios entre as mulheres dessa classe.

 

Observa-se, a partir da análise quantitativa dos dados veiculados pela literatura, que a situação da população médica feminina se torna alvo de extrema preocupação, haja vista os grandes níveis de transtorno depressivo – consoante à tendência global para esse gênero – e a grande incidência para o suicídio – contrária àquela esperada, uma vez observado o comportamento para a população geral. Torna-se possível, então, afirmar a especial vulnerabilidade desse grupo frente ao fenômeno em análise, trazendo a urgência para a interpretação e intervenção sobre esses dados.

 

3 A MEDICINA E O ADOECIMENTO

 

O entendimento desses números notáveis em prevalência e incidência do transtorno depressivo e do suicídio se faz, inicialmente, por meio do reconhecimento das condições adoecedoras do próprio curso de medicina e da carreira médica, condições essas às quais ambos os gêneros estão submetidos, ainda que não de maneira equânime.

Nesse sentido, as circunstâncias a que estudantes são submetidos, tão cedo é iniciada a formação em medicina, já figuram como geradoras de sofrimento físico e psicológico. Essa premissa se torna extremamente preocupante, na medida em que, pelo comprometimento de suas funções cognitivas e psicológicas, a qualidade de vida e o aprendizado desses estudantes são igualmente prejudicados, o que, em grande medida, influi negativamente sobre o trato com pacientes. Essa influência reflete a pouca capacidade de alunos mental e fisicamente esgotados na apropriação da vasta bagagem teórica e técnica apreendida durante o curso – sendo essa crucial na formulação diagnóstica e intervenção clínica –19, além disso, estudantes cansados ou que exibem danos psíquicos consideráveis possuem menor eficácia na demonstração de um senso de empatia inerente, tornando o trato humano aquém daquele necessitado por um indivíduo em vulnerabilidade7.

A vasta literatura acerca do assunto aponta que o árduo processo seletivo para ingresso nas universidades já figura como contribuinte para os quadros de suicídio e de depressão na classe médica7. Isso porque os altos padrões de ingresso no curso – representado pela grande concorrência às vagas ofertadas pelas universidades – torna-se critério seletor de sujeitos com personalidades voltadas ao alto desempenho e autocobrança, ambos traços de personalidade que ditam uma propensão à ansiedade, estresse e à própria depressão.

À medida que ocorre o avanço acadêmico desses estudantes, há a necessidade de resistência a determinados fatores que corroboram com o desenvolvimento de quadros de estresse e exaustão. Nos primeiros momentos do curso, os estudantes tendem a experienciar o estranhamento com o novo ambiente, demandando uma cisão abrupta com o estilo de vida anterior – e, portanto, mais familiar – à medida que o docente se vê dotado de maior autonomia para a coordenação dos próprios estudos e de maior cobrança em face ao grande volume de informações diariamente repassadas e que devem se fazer prontamente assimiladas19. Paralelo a isso, a frustração, durante o ciclo básico, de idealizações quanto ao curso – pelo afastamento dos anos iniciais da real prática médica – também compõe a sua rotina, tornando-se um critério de grande desestímulo à continuidade do aperfeiçoamento acadêmico, o que culmina, muitas vezes, na desistência ainda nos períodos iniciais do curso9, 22.

Além disso, a carga horária extensa, a competitividade entre os estudantes – que não os abandona uma vez terminado o período de vestibulares – e o entendimento de um ambiente acadêmico alheio às suas demandas emocionais –seja pela postura distante e autoritária de professores, seja pela pouca valorização de aspectos subjetivos no âmbito científico8, 20 – também compõem o dia a dia desses alunos.

Ademais, a progressão frente aos anos de preparo lega a esses estudantes novos desafios, na medida em que fatores como a ansiedade frente à necessidade de alto rendimento – de modo a atender às expectativas dos professores e aos modelos exemplares conformados pela competitividade entre os alunos – e o contato com o íntimo físico de outrem12, somados à dúvida quanto às próprias habilidades clínicas, tornam-se mais expressivos no curso médico. Além disso, a exposição continuada ao sofrimento alheio, com baixo desenvolvimento de habilidades positivas de exercício empático e de não introjeção7 – sendo, segundo a literatura11, 18, especialmente preocupante nas representantes mulheres da classe, na medida em que essas performavam maior empatia e responsabilidade no contato com o paciente, o que, em contextos saudáveis, figura como aspecto positivo para o senso de eficácia e competência profissional – e a tomada de consciência, cada vez maior, da falácia da onipotência médica – o que ratifica um grande medo de falhar –20, figuram como aspectos geradores importantes de sofrimento psicológico entre estudantes. Esses principais componentes do curso médico são grandes indicativos de um ambiente cujo enorme potencial adoecedor catalisa o desenvolvimento de comorbidades psicológicas entre os integrantes do público em análise.

Entretanto, não é observada uma atenuação de fatores estressores uma vez abandonado o ambiente acadêmico e ocorrido o ingresso na prática médica. Isso porque médicos e médicas passam a lidar com novas demandas que se misturam às antigas, a exemplo da alta carga de trabalho, da atuação em ambientes limitados e insalubres, das preocupações financeiras, do manejo de pacientes difíceis e da necessidade de manutenção de uma reputação médica historicamente construída19. Todos esses fatores se somam à exaustão pela necessidade de alto rendimento, à privação de sono, à grande competitividade e ao abuso de substâncias3, 20 – valendo salientar, nesse aspecto, que as mulheres da população passam a exibir uma prevalência de alcoolismo superior à de mulheres da população geral2 –, fatores esses familiares à classe médica por acompanhá-la desde o início do treinamento médico, reforçando um cenário adoecedor.

Logo, todos os indicadores apontados colaboram para a continuidade da triste ironia em que a classe de cuidadores – de ambos os gêneros – vê-se imersa num ambiente que tarda em promover condições ótimas ao seu próprio bem-estar e saúde – seja física ou psicológica –, cenário que se inicia, tão cedo há o curso pela proficiência em medicina.

 

4 ESPECIFICIDADES DO FEMININO

 

A diferenciação entre masculino e feminino, para que haja o entendimento e a interpretação do fenômeno objetivado – qual seja a aparente vulnerabilidade das representantes do sexo feminino, explicitada estatisticamente, frente ao curso e à carreira médica –, deve abarcar a dimensão psicossocial que distingue as vivências de homens e de mulheres, sendo a classe feminina envolvida por um processo ideológico e material de opressão e legado à subserviência, que, certamente, influi em seu adoecimento, principalmente se for levado em consideração o caráter histórica e predominantemente masculino do meio médico14-17, 23.

Nessa discussão, um aspecto de relevância é o estigma carregado pelo feminino em decorrência do próprio processo histórico e acadêmico da sua definição enquanto constructo social. Nesse âmbito, é notório o próprio levantamento de um discurso médico e biologicista que justificava a postura feminina avessa ao ambiente e ao exercício intelectual, condições essas ditas “naturais” ao gênero. A criação de uma ideologia de tal natureza, inclusive, teve repercussões contextuais à época, na medida em que mulheres as quais tentavam o ingresso em escolas médicas eram duramente repudiadas e, por vezes, expulsas e agredidas nesses meios, retardando a entrada feminina no meio acadêmico médico17.

Os fundamentos para esse desenvolvimento teórico remontam à medicina do século XVIII, período – vale salientar – em que a luta por mais autonomia e ampliação de direitos das mulheres ganha força em múltiplas instâncias da sociedade. Nesse contexto, a ciência se ocupa com a justificativa de um dimorfismo radical entre os sexos, lançando as bases de uma visão de intransponibilidade inerente da condição sexual, refletida em aspectos da fisiologia e da própria morfologia distinta de homens e mulheres. Assim, a condição biológica se torna paradigmática para os princípios que regiam a ordem social.

Dessa forma, a perspectiva acadêmica passa a compreender a mulher – bem como todo o universo do feminino – como ser iminente e exclusivamente passional e, até mesmo, desprovido de qualquer traço racional. Nessa perspectiva, a educação feminina não é apenas vista como inadequada, mas também como de evitação necessária, na medida em que a tarefa intelectual árdua e extensiva, além de ser compatível com a sensibilidade masculina, configurava-se como uma ameaça potencial à fertilidade e natureza reprodutiva do corpo feminino. Essa visão foi sustentada por inúmeras teorias que permeavam a composição corporal da mulher pós-púbere (a qual legava à classe uma fragilidade, vulnerabilidade e amadurecimento racional similares aos infantis) até o direcionamento de fluidos corporais vitais (a exemplo da visão, à época, que associava o direcionamento do fluxo de sangue para áreas centrais e masculinas do sistema nervoso que acontecia durante o exercício intelectual e que, portanto, deixaria de nutrir órgãos femininos voltados para a reprodução – no caso, o útero e os órgãos sexuais)17.

Todos os discursos teóricos alavancados historicamente apontavam para as diferenças intransponíveis entre os sexos biológicos – refletidas em sua morfofisiologia – e que, portanto, determinariam seu comportamento e orientação moral. Nesse âmbito, os homens eram percebidos como resilientes e suficientemente fortes para a superação de obstáculos, enquanto, num plano oposto, mulheres eram descritas como capazes de ceder às menores pressões, com mínima capacidade de resistência e inteligência emocional infantil1. Todas as características até então descritas também passavam a ser admitidas aos homens ditos “efeminados” ou “degenerados”, o que reflete a aversão do feminino para a construção de uma teoria de distinção de sexos.

Nessa perspectiva, é possível inferir que o histórico de esforço, que parte da própria comunidade acadêmica médica, para o afastamento feminino dos campos de exercício intelectual, a criar uma atmosfera redutora do potencial e questionadora da competência da mulher em termos profissionais e científicos, é passível de reverberar na contemporaneidade, gerando um ambiente profissional avesso à presença e crescimento – que se torna cada vez mais expressivo e factual10, 11, apesar do fundo histórico de aversão e distanciamento do meio acadêmico – da figura feminina. É, portanto, possível elencar esse histórico como fator contribuinte ao cenário discutido, de alta incidência e prevalência de comorbidades psiquiátricas e de suicídio nesse estrato da população médica.

A reverberação da construção de um discurso excludente influi num segundo aspecto de igual relevância à discussão, que são as várias barreiras encontradas por mulheres na ascensão profissional e em ciência.

A despeito do reconhecido processo de feminização da medicina e ciência10, 11, ainda são expressivos os múltiplos entraves encontrados por essas profissionais no crescimento em suas carreiras11, 14-16. A esse fenômeno foi dado o nome de “teto de vidro”, metáfora utilizada para unir, num conceito estruturado, todos os mecanismos institucionais, diretos ou não, que retardam o crescimento da mulher em seu âmbito de atuação ou, ainda, dificultam a chegada desse gênero aos níveis de poder e status dos companheiros do gênero oposto, ainda que possuam as mesmas condições e formação para tanto.

Esse efeito deriva do fracasso de lideranças em prover condições necessárias ao crescimento de mulheres em suas áreas de atuação, fomentando e retroalimentando um ciclo de exclusão e frustração que, decerto, influi para um processo de adoecimento psíquico, na medida em que muitas dessas mulheres são submetidas a cargas de trabalho excessivas, para a prova de competência, e ao sofrimento de uma jornada extensa16.

Uma nova interpretação voltada para esse entrave ao crescimento no exercício da profissão pode se dar em seu potencial catalítico de feridas narcísicas3 que acompanham médicos e médicas, desde o período de preparo em medicina.

Essas “feridas” dizem respeito à construção, tão cedo há o ingresso acadêmico, de expectativas irreais frente à própria aptidão e empenho pessoal – como na necessidade de performar alto rendimento e na aversão ao fracasso – que, ao longo da prática médica, tendem à frustração irremediável. Isso porque o contato cotidiano com o sofrimento e com a morte converge para o descrédito de crenças da onipotência médica, impingindo dúvida e nervosismo frente à não correspondência de idealizações socialmente perpetradas.

Se, assim, forem adicionados a esse contexto os múltiplos empecilhos impostos às mulheres no exercício de seus potenciais frente às profissões em medicina, torna-se clara uma correlação possível de frustração ainda maior no que tange à não concretização – seja por questões inerentes à prática médica, seja por condições consolidadas em uma ordem social vigente – de suas próprias ideações frente ao presente – na atuação em medicina – e às perspectivas futuras16, 17.

Outra questão de relevância indubitável no levantamento destas hipóteses se volta para a determinação da responsabilidade social e histórica da mulher na gestão de uma vida familiar.

A identidade feminina, a despeito da força transformadora dos movimentos de mulheres iniciados nos anos 60, ainda está associada à sua função reprodutiva, de modo que as pressões exercidas para a responsabilidade familiar e matrimonial são muito maiores do que aquelas observadas para os colegas do gênero masculino17. Esse tipo de pressão, a partir de papéis socialmente designados, é mais um exemplo de força desigual que impede a visibilidade feminina nos espaços profissionais e acadêmicos por elas ocupados. Elas então se veem imersas numa realidade que, além de demandar o cumprimento de funções “tipicamente femininas”, a todo o tempo põe em xeque a sua competência e disponibilidade – reconhecendo a necessidade de maior esforço para compensar e desfazer esse estigma16.

Essa realidade se torna cada vez mais tangível, na medida em que as mulheres se tornam condicionadas, em suas escolhas relativas ao exercício próprio da profissão, pelas pressões exercidas por uma ordem social vigente. Dessa maneira, as representantes do gênero da classe médica se esquivam, por exemplo, de especialidades que passam a demandar mais tempo e dedicação ao ofício, como as cirurgias, na medida em que põem em risco o foco para a vida doméstica e familiar11, 21. Entretanto, essa mesma tendência não é observada entre os homens do grupo médico, os quais continuam a se dedicar a especialidades cirúrgicas e emergenciais com maior afinco, mesmo nas circunstâncias de necessidade de gestão de um ambiente paterno e matrimonial, o que reitera a desigualdade das pressões exercidas para a gestão de uma vida doméstica e paterna.

Então, é necessário ratificar que todos esses aspectos elencados não podem ser ignorados em sua dimensão de potencial agravante de um quadro voltado à maior incidência de suicídio e depressão das mulheres em medicina, sob pena de recair em uma nociva negligência à força adoecedora de um processo sociocultural, histórico e institucional factível. Todos os pontos levantados precisam, portanto, ser levados em consideração na determinação de estratégias que venham a mitigar disparidades entre os gêneros e contribuir para a criação de um ambiente profissional e acadêmico salutar.

 

5 CONCLUSÃO

 

Por fim, a observação do caráter nocivo da continuidade de um labor pautado na excelência incondicional e alto desempenho se torna acertada. Percebe-se, a partir dos achados do presente artigo, que os níveis de exaustão da classe médica são reiterados continuamente pelo ambiente assentado na competitividade entre colegas e na demanda por acerto contínuo. Essa exaustão, entretanto, atinge níveis ameaçadores à viabilidade da própria vida, assertiva que se traduz nos alarmantes níveis de depressão e suicídio que o grupo demonstra.

Nesse contexto, torna-se ainda mais urgente a situação das mulheres que integram o ofício. Imersas num ambiente eminentemente misógino e, portanto, despreparado para o ingresso crescente de mulheres na medicina – tendência observada em escala global –, as representantes do gênero feminino passam a exibir níveis ainda mais preocupantes de depressão, ansiedade e – como fim trágico – a ideação e o ato suicida.

Portanto, apesar da condição multifatorial e inerentemente subjetiva do fenômeno estudado, intervenções visando à promoção de maior bem-estar desses médicos são essenciais. Assim, a produção de um ambiente menos hostil à manifestação da realidade emocional de médicos e médicas no meio científico pode se fazer eficaz. Nesse aspecto, as demandas específicas do feminino – a respeito das próprias necessidades de voz, empoderamento e refúgio emocional – não podem mais ser alvo de negligência, sob pena de retroalimentar o estado datado e retrógrado de aversão à inevitável – e necessária – presença feminina no exercício da medicina.

 

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