ESCREVER COMO SE EU CONTASSE UM SONHO

 

Sonho quase todas as noites, por isso não entendo as pessoas que dizem  nunca sonhar. Esta noite sonhei uma primeira vez, acordei-me às 5 horas, relembrei meu sonho e repeti, temendo esquecê-las ao despertar, as palavras: dúvida, obsessão e paranoia. Mas esqueci a primeira palavra desta sequência, o que me intrigou bastante. Porque a primeira? Porque só retive as seguintes: dúvida, obsessão e paranoia? Vou ter de encontrar a palavra esquecida, ela me parece ser a chave que me permitirá esclarecer o sonho.

Fui buscar nos dicionários, sinônimos das palavras dúvida, obsessão e paranoia, verificar se a palavra esquecida  não se encontra  no campo semântico das três outras, escancarada ou dissimulada.

 

Em mãos o dicionário francês  Synonimes et nuances. Le Robert.

Mas fico na dúvida; sonhei em francês ou em português? Se for em português, seria  melhor consultar meus Aurélio e Houaiss, não? Deixei o Le Robert e fui buscar os dois dicionários de língua portuguesa. O Houaiss me responde: ‘’veja sinonímia de desconfiado’’. Vou a ‘’desconfiado’’ e retenho desconfiado, receoso, temeroso,  que se zanga ou se melindra com facilidade.

 

Vou buscar a palavra obsessão: o Houaiss que instalei no computador me responde rapidamente:

  1. “Suposta apresentação repetida do demônio ao espírito.”
  2.  “Apego exagerado a um sentimento ou a uma ideia desarrazoada.”
  3. “Motivação irresistível para realizar um ato irracional; compulsão, neurose obsessivo-compulsiva”.
  4. “Ação de molestar com pedidos insistentes; impertinência, perseguição, vexação.

 

Lembro-me haver pensado ao me acordar que a sequência que agora me obseda pode me ajudar a entender melhor as relações entre os referidos termos.

 

Quando quero rememorar um sonho, vêm-me ao espírito coisas vagas, palavras esparsas, perco a ‘’construção’’ do sonho, seu desenrolar, as emoções que as acompanham. Quando me ocorre interromper o sono por uma razão qualquer-necessidade fisiológica (sede, vontade de urinar, sensação de calor ou de frio, dores diversas…) ou desejo me rememorar uma cena, uma palavra que me marcou,  ou um forte desejo de compreender o conteúdo manifesto do sonho ou pesadelo, geralmente sou bem sucedido. Mas procuro anotar a genialidade do meu inconsciente, indiscutivelmente muito mais inteligente em suas intuições do que sou capaz.

 

Sonho:

Dormindo num quarto com uma janela de vidro sem cortina, de repente vi uma figura humana com cabelos longos, vermelhos e amarelos, ou uma mistura dos dois. Voava com a ligeireza, leveza e rapidez de um colibri ou de uma libélula. Tive um susto muito grande ao ver aquela imagem fantasmática. Ao acordar, pensei em Lurdinha- minha irmã mais velha, a anjinha morta  aos três anos-  também pensei em mulheres cujos cabelos são pintados com cores espalhafatosas e em pessoas disfarçadas. Os anjos seriam pessoas disfarçadas?

Levei tempo a dormir hoje de noite! Quase uma hora a pensar no que li sobre a família. Isto tem me suscitado certa inquietação. Nem sempre saímos o mesmo quando empreendemos um trabalho memorial e mergulhamos no passado. O passado pode nos reservar  muitas surpresas!

 

No mesmo sonho: uma mulher dirigia um carro e me levava de volta para a minha casa. Como devia ir fazer ainda uma longa viagem antes de chegar na sua, partiu cedo de manhã sem me dizer adeus. Desaparecimento. Pensei em Dona Arquiminia, esposa do Pastor Gabino. Um dia, ela me advertiu por haver pronunciado a palavra ‘’arretado’’.

Consultei o Houaiss: palavra-ônibus que abrange um grande número de ideias apreciativas, expressando elogio à beleza, elegância, algum tipo de habilidade, etc.

 

Libélula,  designação. Comum aos insetos da ordem dos odonatos, facilmente reconhecíveis pelo abdome longo e estreito, pelas quatro asas alongadas, transparentes e providas de rica inervação [São carnívoros em todas as fases vitais, alimentando-se de insetos e outros organismos.]

Consultei igualmente outro dicionário(https://www.sonhos.com.br/busca.phtml) e encontrei a definição:”Quem foi que nunca teve um sonho diferente e ficou pensando neste o dia inteiro? A linguagem dos sonhos é simbólica, o que instiga ainda mais a nossa curiosidade sobre o que eles querem dizer. E não há limite para quem sonha. Durante o sono, mesmo deitados em nossas camas, podemos voar, nos transformar, e viajar por mundos imaginários inimagináveis. Por vezes, são sonhos tão positivos que quando acordamos, tentamos até dormir de novo. De acordo com a psicanálise, os nossos desejos reprimidos podem, de certa forma, ser realizados durante o sonho. Outras vezes, temos pesadelos, às vezes recorrentes, dos quais temos muito medo, e despertamos assustados ».

 

INTERCÂMBIO DE MENSAGENS COM LUIZ SALVADOR

 

Caro amigo

Perdi você de vista cedo demais, mas aqueles tempos de Recife, aquela efervescência política da qual fomos participantes ativos ( lembra-se que fui presidente do Diretório Acadêmico da Faculdade de Medicina da UEP ?)

Eu não sei se você sabia, caro e fleugmático Luiz Salvador, que eu tive de deixar o Brasil por ter sido enquadrado  na Lei de Segurança Nacional? Antes de ser preso, torturado ou enviado para Fernando de Noronha, como alguns de nossos companheiros, consegui deixar o Brasil. Tomei a decisão após minha convocação pelos jornais- que consegui fotocopiar nos arquivos do Estado de Pernambuco- as primeiras páginas do Diário e do Jornal do Comércio, onde constavam os nomes dos 31 subversivos indiciados  e intimados a comparecer ao QG do IV Exército …) afim de serem interrogados sobre suas atividades na UNE, na UBES e na UEP.

Estou lhe enviando cópia do edital de convocação saído na primeira página do Jornal do Comércio de 27 /08/ 1965. Você reconhecerá os nomes de muitos amigos nossos. Ao escrever os nomes deles, ao falar com você dessas coisas, dessas lembranças, faço-o com emoção.

Numa outra ocasião enviarei a lista dos estudantes enquadrados na Lei de Segurança Nacional, onde meu nome aparece ao lado dos nomes de colegas de todo o Brasil.

 

MINISTÉRIO DA GUERRA, IV EXÉRCITO, EDITAL DE INTIMAÇÃO

 

Manoel Costa Cavalcanti- Ten. Cel., encarregado do IPM – UNE UBES-/PE, por delegação de poderes do Exmo. Snr. Gen. Cmdt. Do Primeiro Exército, Portaria n. 10 de 15-07-65, determina que os indiciados abaixo assinados compareçam (…)

 

Você vai se lembrar de muitos: Aybère Ferreira de Sá, Cláudio Antônio Vasconcelos Cavalcanti, Clovis Assunção de Melo, Diniz Cabral Filho, Gilvan Cavalcanti de Melo, João Alfredo dos Anjos, João Zeferino da Silva, Lídio Guilherme Cintra, Marcos Correia Lins, Miguel Newton Arraes de Alencar, Oswaldo Coelho, Albérgio Maia de Farias, Jarbas de Holanda, José Fernandes, Nelson Rosas Ribeiro, Liana Maria Aureliano, David Capistrano da Costa Filho, José Fortuna de Melo, Moab Henrique, Aníbal Valença, Clodomiro Morais, Clemente Rosas Ribeiro, Eliezer de Hollanda Cordeiro , José Regueira Teodósio, João Antônio Caixeiro de Vasconcelos, Drummond Xavier Cavalcanti Lima, José Carlos Rodrigues de Melo, Geraldo Gomes da Silva e Marcelo Cerqueira.

 

Quando estive em Recife em Julho 2002, fui várias vezes à Secretaria de Segurança Pública e passei horas consultando todos os arquivos me dizendo respeito, e encontrei muita coisa. Tirei fotocópias de tudo, até dos depoimentos dos delatores que não hesitaram em agravar o meu caso:’’Comunista, subversivo, inocente útil, agente de Cuba e de Moscou, pessoa deletérea que corrompe a juventude’’ (…) francamente, não me reconheci nesses retratos que fizeram de mim.

Amigos e familiares insistem para que eu intente um processo ao Governo, pedindo-lhe uma indenização por ter sido vitima da ditadura, indenização por prejuízos moral, financeiro, etc.

Como você sabe, fundei com Rodolfo Veloso de Araujo, um estimado colega de turma, a primeira clínica psiquiátrica no interior do Nordeste, na cidade de Caruaru, em 1965. Tive de abandoná-la quando embarquei para Paris, o que me causou um grande prejuízo financeiro. Minha documentação está pronta, mas não sou homem de processos e querelas.

Mas ninguém pode me amordaçar, caro Luiz Salvador. Quando acho que alguém está querendo quebrar o meu direito de me exprimir de maneira livre, de dar uma opinião  sobre alguma coisa,  costumo dizer  a minha esposa: « Même la Dictature militaire brésilienne n’a réussi à me faire taire » (mesmo a ditadura militar brasileira não conseguiu me amordaçar).

Veja o que eu escrevi a alguns colegas: não são as criticas que me incomodam mas a maneira como elas são feitas. De fato, qual é a finalidade de uma critica? Para mim, sua finalidade consiste em dar informações aos outros a fim de melhorar uma relação, uma situação, resolver um problema… Na crítica, devemos evitar: acusações, discursos moralizadores, condenações e palavras que engendrem conflitos sem trazer soluções  para os problemas .

Bom, confesso-lhe que estou longe de atingir esses objetivos, mas  tento aproximar-me dos mesmos.

É somente, Luiz Salvador, para lhe agradecer as palavras calorosas que você me enviou. Ao mesmo tempo, é para mim uma maneira de me apresentar aos colegas e amigos.

Um abraço cordial,

Eliezer

 

PLURALISMO EXPLICATIVO EM CIÊNCIAS HUMANAS

 

Referência :Jean–François Dortier, in Les Sciences Humaines, Auxerre, France, 1998

 

Autor deste artigo, JFD lembra-nos que o Século XX foi marcado por uma progressão espetacular, qualitativa e quantitativa das ciências humanas. Donde resultaram  um formidável crescimento quantitativo que engendrou uma extrema especialização e  uma proliferação de modelos e métodos que tornam difícil uma leitura unívoca.

 

Este crescimento conduziu a uma fragmentação dos conhecimentos. Com efeito, a divisão do trabalho científico supõe um acréscimo e uma dispersão dos conhecimentos. Cada disciplina é subdividida numa infinidade de campos especializados. Os efeitos da especialização são contraditórios. Por um lado, eles permitem um aprofundamento dos conhecimentos, mas, por outro lado, eles tornam difícil a síntese e a acumulação dos conhecimentos.

Questão: esta hiperespecialização dos campos de pesquisas não vai acabar com as teorias gerais que pretendem oferecer respostas globais às questões fundadoras das ciências humanas? Não, porque existem sempre em cada disciplina, modelos explicativos que pretendem à universalidade. Mas estes modelos são raramente articulados com as pesquisas, são teorias gerais sem bases sólidas. 

O pluralismo explicativo em ciências humanas repousa nos seguintes princípios:

 

1) A diversidade das abordagens, dos modelos, dos métodos é constitutivo da complexidade do real. Para explicar um fenômeno social ou humano, que se trate de sonho, sexualidade, dinheiro, trabalho, etc.- existem vários ângulos possíveis. 

Exemplos ligados à nossa disciplina. Citar DW E sua dupla análise de uma fobia.

  1. Em cada disciplina, existe uma diversidade de modelos : cada um  destaca um aspecto ou faceta da realidade, excluindo certos aspectos que outros modelos privilegiam.

 

Por conseguinte, se quisermos abordar a realidade de maneira global, isto supõe a confrontação e o cruzamento de vários modelos. Mas antes de opormos de maneira sumária teorias e modelos, torna-se necessário situar cada um dentro de seu contexto, seu projeto, seu programa de pesquisa específica.

 

1) Jean–François Dortier, in Les Sciences Humaines, Auxerre, France, 1998).

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