Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Giovanni Torello |
Janeiro de 2014 - Vol.19 - Nº 1 História da Psiquiatria MEMÓRIAS DE UM JOVEM PSIQUIATRA Walmor J. Piccinini
Uma das formas de contar a história é a vivência das pessoas envolvidas
nos acontecimentos. Neste artigo vou iniciar a contar fatos por mim vividos e
que podem transmitir um pouco do meu aprendizado neste mundo extraordinário da
loucura. Mundo que entrei sem ter noção de onde estava me metendo e que se
tornou parte significativa da minha vida. Muito jovem, aos 18
anos de idade, vindo de um curso secundário feito no interior do estado, entrei
para a Faculdade de Medicina da UFRGS. Seja por ingenuidade, auto-confiança
ou apenas ignorância da realidade, não me passava pela cabeça a idéia de não
ser aprovado no vestibular. Minha preocupação era de como sobreviver
em Porto Alegre. Meus pais fizeram um grande esforço para que todos pudéssemos estudar, mas como sobreviver foi tarefa que
eu e meus irmãos tivemos que enfrentar desde muito cedo. Preocupado em arrumar
uma fonte de sustento, certo dia me deparei com um aviso num mural que existia
na entrada do prédio da faculdade, hoje Instituto de Biociências na rua Sarmento Leite. A Clínica Pinel de Porto Alegre estava
selecionando candidatos à atendente psiquiátrico. Não sabia bem o que era
aquilo, mas prometia salário e era próxima da faculdade. Lá fui me candidatar e
logo na chegada uma frustração, a maioria dos pretendentes eram alunos do
terceiro ano, achei que não teria como disputar vaga com alunos mais
experientes, mesmo assim fui para a entrevista com o Dr. Marcelo Blaya Perez. Não lembro bem da entrevista, mas ao sair
conversei com um colega do terceiro ano que me disse ser impossível conciliar o
horário dele com as exigências da clínica. Parece que com os demais aconteceu
algo semelhante e eu acabei sendo contratado. Comecei a trabalhar em 1 de junho de 1960, depois descobri que a Clínica tinha sido
fundada em 28 de Marco daquele ano. Tempos depois descobri as origens da
Clínica Pinel. O Dr. Marcelo Blaya tinha retornado a
Porto Alegre depois de quatro anos nos EUA. Fez um ano de neurologia no
Hospital Walter Reed e depois mais três anos de formação em psiquiatria na Menninger Clínic de Topeka,
Kansas.
Voltando a Porto Alegre começou a trabalhar em consultório e internar
seus pacientes
no Hospital Espírita de Porto Alegre. Era uma prática comum, os primeiros
analistas formados por Mário Martins, Celestino Prunes,
José Lemmertz e Cyro Martins tinham que se desdobrar no atendimento dos
pacientes de análise, mas não podiam deixar de atender psicóticos. Dessa época
surgiu uma observação irônica sobre esta atividade dicotômica. Os analistas
ministravam ECT pela manhã e analisavam à tarde.
Certo dia, Marcelo Blaya foi visitar um
paciente no Hospital Espírita no horário da tarde e descobriu que seus
pacientes estavam sendo submetidos a passes e sessões de desobsessão.
Foi tirar satisfações com o presidente do hospital e este lhe disse
candidamente, o que ele esperava de um hospital espírita? Aceitando que quem
mandava na casa era o dono, começou a trabalhar a idéia de ter seu próprio hospital.
Recebeu apoio de vários colegas, entre eles o Dr. Manoel Albuquerque que
aceitou ser fiador dos alugueis de três casas na Av. João Pessoa em Porto
Alegre e no dia 28 de Marco de 1960 foi inaugurada a clínica. Em termos de
Porto Alegre e de Brasil, era uma revolução no atendimento ao doente mental. Os
pacientes não eram separados por sexo, vestiam roupas comuns e eram estimulados a convivência, a praxiterapia
e a socializar. Os primeiros tempos foram muito complicados, havia uma
resistência natural em relação a maneira como os
pacientes eram tratados, uma preocupação quanto a mistura de homens e mulheres
e as características de tratar os pacientes como gente como a gente. Meus
primeiros tempos foram difíceis, era um mundo novo, eu não tinha noção do que
estava acontecendo. Estava fazendo história sem saber.
O Dr. Marcelo ia arregimentando colegas que se mostraram de um valor
inestimável. O primeiro foi o Dr. David E.Zimerman,
depois foram chegando o Isaac Sprinz, o Flávio Rotta Correa, o Bernardo Brunstein,
Álvaro Medeiros e muitos outros. Na avenida Oswaldo
Aranha, existia o Bar do João, ponto de encontro dos médicos do HPS (hospital
de pronto-socorro) e de moradores do Bairro Bom Fim. Foi lá que Marcelo Blaya
encontrou muitos colaboradores. Esta era uma realidade da época, não existiam
muitos candidatos a psiquiatra, a especialidade tinha que ser vendida como
fonte de satisfação pessoal e financeira. Um grande apoiador foi o Professor
Oscar Schelp da Faculdade de Medicina de Santa Maria.
Ele era neurologista, mas garimpava residentes para a Pinel. De lá vieram o Isacc Sprinz, anos depois o
Milton Shansis, o Hans Ingomar
Schreen e o Carlos Gari Faria. O sucesso da Clínica
começou a atrair médicos de outros pontos do país. Assim, do Pará veio a Dra.
Carmen Tuma, do Recife a Marlene Silveira, do Paraná veio o Harri
Valdir Graeff e de Santa Maria a Dra. Themis Groissman. Antes deles, a Eufrides
Matte. Em outra ocasião escreveremos mais sobre os profissionais da Clínica.
Nesta minha viagem pelos anos sessenta, vou me ater a experiências
pessoais. Das histórias que guardo na memória, uma foi de um grande susto. Os plantões noturno dos atendentes era das 23 horas até as 7
da manhã. A ordem era que ficássemos acordados e vigilantes. Terminado o
plantão, íamos para a Faculdade de Medicina que era próxima da Clínica.
Enfrentava o dia e só ia dormir na noite seguinte. Quando digo íamos era porque
tinham outros estudantes que enfrentavam a mesma labuta, entre eles, a Carmen Dameto, hoje psicanalista no Rio de Janeiro. Num dia de
inverno, com o Minuano soprando gelado, lá estava eu de plantão. Com frio, com
sono, enrolado num cobertor ficava observando os pacientes. A Clínica
funcionava em TRÊS casas adaptadas. No que seria a sala, funcionava uma
enfermaria masculina com cinco leitos. Quatro camas estavam ocupadas, os
pacientes dormiam e eu, enrolado num cobertor ficava namorando a cama vazia.
Estava num dilema, sabia que não deveria deitar na mesma, mas o sono, o frio, o
vento me faziam pensar que, com uns dez minutos de sono eu estaria refeito e
completaria o plantão. Esta dúvida entre o dever e o sono me consumia. E o
vento zunia nas janelas. Lá pelas 3horas a tentação prevaleceu e me decidi a dormir dez minutos. Como era de esperar, os dez minutos se
passaram e viraram três horas, mas pior ainda estava por acontecer.
Acordo com um paciente esquizofrênico sentado na minha bacia e me
estrangulando. Ele dizia que eu não podia dormir e ia apertando minha garganta.
Dizem que nestas horas um anjo está de prontidão. Olhei pro paciente e com a voz entrecortado pelas mãos no meu pescoço falei; “João,
porque tu ta sentado no meu pau?” Ele pulou de cima de mim, largou minha
garganta e exclamou, eu não sou homossexual, eu não sou homossexual”. Eu também pulei da cama e fui acalmá-lo. Bem,
depois desta experiência nunca mais deitei na enfermaria, fui desenvolvendo
outras técnicas de repouso. Conseguia tirar uns cochiilos
em de pé, encostado numa parede. Assuntos relacionados que podem ser lidos nos Arquivos da Psiquiatria Online Brasil: O Acampanhante Terapeutico http://www.polbr.med.br/ano06/wal0106.php Tratamenbto
Hospitalar com orientação psicanalítica http://www.polbr.med.br/ano05/wal1205.php Fragmentos da História da Psiquiatria no Rio Grande do Sul http://www.polbr.med.br/ano11/wal1111.php
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