Volume 11 - 2006
Editor: Giovanni Torello

 

Janeiro de 2006 - Vol.11 - Nº 1

História da Psiquiatria

O Acompanhante Terapêutico

Walmor J. Piccinini

O surgimento da atividade de acompanhamento terapêutico no Brasil ocorreu a partir dos anos 60 com a introdução do conceito de psiquiatria dinâmica. Coincide com o surgimento dos antipsicóticos, com a influência da psicanálise na atividade psiquiátrica e com a expansão da prática ambulatorial. Da idéia de comunidade terapêutica e do tratamento intensivo dos pacientes surgiu a figura do atendente psiquiátrico, do emprego de estudantes universitários na atenção e no acompanhamento dos pacientes. Os primeiros estudantes utilizados foram os de medicina e enfermagem. Até meados dos anos sessenta, o Curso de Psicologia era complementar a outros cursos de nível superior como o de História Natural por exemplo. Com a lei que regulamentou a profissão de psicólogo surgiram as Faculdades de Psicologia com currículos próprios e muitos estudantes de psicologia e mesmo psicólogos formados passaram a atuar na área de acompanhamento terapêutico.

A história pode ser apresentada de muitas formas, a que vou utilizar nesse trabalho é a de depoimento pessoal. Enquanto estudante de medicina, fui atendente psiquiátrico, acompanhante terapêutico, instrutor de atendentes. Depois de formado e especialista em psiquiatria, fui titular da cadeira de Psicopatologia no Instituto de Psicologia da PUC/RS e ainda dei aulas de Técnica de Entrevista e de Psicologia Clínica. Essas vivências todas me permitem afirmar que o surgimento do acompanhamento terapêutico não tem nenhuma relação com o movimento da antipsiquiatria e muito menos com o movimento de reforma psiquiátrica como tenho lido em vários "sites" dedicados ao assunto de AT.

Sem querer ser repetitivo, para simples lembrança, registro que a Clínica Pinel de Porto Alegre, fundada por Marcelo Blaya em 28 de março de 1960 introduziu, no Brasil, uma nova maneira de encarar o tratamento dos doentes mentais. Equipe multiprofissional focada nas necessidades reais ou imaginárias dos pacientes, mantinha-se em atividade permanente nas 24 horas do dia. Isso só era possível devido à presença da figura do atendente psiquiátrico. O nome pode variar, auxiliar psiquiátrico, acompanhante terapêutico, enfermeiro psiquiátrico, mesmo que não seja um profissional de enfermagem dentro dos conceitos tradicionais.

Os atendentes psiquiátricos trabalham sob orientação de uma equipe que pode incluir psiquiatras, psicólogos, enfermeiras psiquiátricas, assistentes sociais e terapeutas em geral. Além de auxiliar nos cuidados básicos do enfermo, tais, como, vestir-se, tomar banho, pentear-se, e alimentar-se, o atendente psiquiátrico com ele socializa e o encaminha para atividades educacionais e recreativas. O atendente psiquiátrico participa de atividades esportivas com o paciente, joga cartas, dança, vê televisão e participa em atividades em grupo como nos esportes ou em excursões. Eles observam o dia a dia do enfermo e relatam qualquer sinal físico ou na conduta que pode ser importante para a equipe de atendimento. Eles acompanham os pacientes nas consultas externas, exames e tratamento. Essa atividade conjunta, do atendente com seu paciente, reflete-se na maneira como o paciente se comunica e no desenrolar do seu tratamento.

Na Clínica Pinel, os primeiros atendentes eram jovens sem uma formação especializada. Já no terceiro mês de funcionamento, foram admitidos estudantes de medicina. Posteriormente foram admitidos estudantes de enfermagem, de psicologia e outros jovens com nível universitário. Do grupo inicial da Clínica Pinel, além de mim, poderia lembrar a Dra. Carmen Dametto, a enfermeira Ruth Myllius Rocha, o Psicólogo e enfermeiro Jorge Rodrigues, o enfermeiro Baltazar Lápis. A rigor foram centenas de jovens que hoje são psiquiatras, psicanalistas, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais. Alguns seguiram outros rumos da medicina e todos reconhecem o benefício para suas atividades profissionais advindos do trabalho com os doentes mentais.

Lembro com carinho a intensa dedicação desses jovens idealistas que não tinham nenhuma dúvida na possibilidade de recuperação dos pacientes que estavam aos seus cuidados. Fora do horário de trabalho era comum levar pacientes a passeio, ao cinema e a prática de esportes. Minha primeira experiência como AT propriamente dito, ocorreu no verão de 1961 quando acompanhei um paciente, dos mais difíceis, para uma temporada na praia de Tôrres. Na época eu não me dava conta da intensa emoção dos seus familiares em poder tê-lo no seu convívio, fazia anos que perambulava por diferentes hospitais devido a sua conduta violenta e delirante. Outras experiências se sucederam e assim fui fortalecendo a convicção da importância do AT como agente de melhora da qualidade de vida do doente e da sua família. Passados os anos, agora como psiquiatra e psicoterapeuta, jamais prescindi da utilização de ATs. Os anos passam, muitos dos meus Ats cresceram nas suas profissões e hoje são professores no Curso de Psicologia, são psicanalistas e psiquiatras e, tenho certeza, nunca esqueceram do seu trabalho enriquecedor. Tenho ainda uma paciente muito especial que trato junto com meu AT. Digo que trato junto pois ele acompanha a paciente há 15 anos, já está formado em psicologia e ocupa importante função na Clínica Pinel de Porto Alegre. Trata-se do psicólogo Edílson Pastore que consegue conciliar as funções de AT, chefe de equipe de AT e seu trabalho como psicoterapeuta e responsável pela internação.

Em 1962 participei do II Congresso de Psicologia Médica em Ribeirão Preto, era aluno de medicina e apresentei minhas experiências com atendente psiquiátrico. Essa apresentação foi depois publicada nos Arquivos da Clínica Pinel.(Piccinini, Walmor J. Experiência de um estudante de medicina como atendente psiquiátrico. Arq. Clin. Pinel, 1962, 2 (3).

Do Índice Bibliográfico Brasileiro de Psiquiatria de minha autoria e que pode ser encontrado na Internet (www.biblioserver.com/walpicci) extraí alguns trabalhos sobre atendente psiquiátrico:

1. Alencastre, Márcia Bucchi. As condições sócio - econômico sanitárias do Atendente Psiquiátrico e sua relação com o trabalho que executa. Rev. Brasileira De Saúde Ocupacional. 1983; 11(42):27-29.
2. Blaya Perez Neto, Fulgêncio. O paciente-atendente. VII Jornada De Psiquiat.Dinâmica-Pelotas-RS. 1972.
3. Mylius, Ruth. O Atendente Psiquiátrico: Seleção Treinamento e Problemas. Rev. Arq. Clin. Pinel. 1963; 3(4):125-128.
4. Zimerman, David E. Atendente Psiquiátrico: Elemento Básico no Tratamento Hospitalar . Rev. De Psiquiat.Do CELG. 1961; 1(1,2,3):39-40.
5. Zimerman, David E. O Atendente Psiquiátrico como fator Terapêutico Hospitalar . Rev.Arq. Clin. Pinel. 1961; 1(3):123-126.

A figura do atendente psiquiátrico, na medida que foi saindo de dentro da instituição, adquiriu as características do Acompanhante Terapêutico. Tive oportunidade de ser atendente psiquiátrico, acompanhante terapêutico, psiquiatra trabalhando com acompanhante terapêutico e passados 45 anos, ainda utilizo esse co-participante no tratamento psiquiátrico.

A figura do Acompanhante terapêutico cresceu em complexidade de atuação e hoje é uma profissão estabelecida. Na internet encontramos várias entidades ligadas ao trabalho de AT:

1. Anankê - Tratamento de neurose e psicose. Centro de convivência, saúde, doença mental e acompanhamento terapêutico. Brasília, DF.
2. ATO - Acompanhamento Terapêutico - Organização de psicólogos com experiência na área de saúde mental. Oferece um trabalho de acompanhamento terapêutico partindo de um referencial psicanalítico. Rio de Janeiro, RJ.
3. Companhia Terapêutica - Equipe de profissionais de acompanhamento terapêutico.
4. Conexão - Acompanhamento Terapêutico, Psicologia, Psiquiatria e Assessoria Organizacional. Porto Alegre, RS.
5. Grupo Circulação de Acompanhamento Terapêutico - Informações deste acompanhamento, que pode ser pensado tanto como um complemento a um tratamento já iniciado (psicologia, fonoaudiologia e psiquiatria), quanto a única modalidade de intervenção possível em um caso clínico. Porto Alegre, RS.
6. Instituto A Casa - Acompanhamento terapêutico, atendimento ambulatorial, hospital dia, conjuntura contemporânea, oficinas, República, companhia de teatro Ueinzz, etc.

Para acessar estes "sites" basta colocar o ponteiro do mouse no nome em azul e pressionar a tecla control. Esses locais ofertam serviços e apresentam suas idéias sobre o trabalho do AT.

Mais recentemente tem surgido novos trabalhos sobre a função de AT. ,um deles é o de Leonardo Segalin: Acompanhante Terapêutico na Comunidade .

"O papel do Acompanhante Terapêutico (A.T.) dentro de uma Comunidade Terapêutica viabiliza-se através da existência de uma proposta multidisciplinar. Aliado à equipe ele proporciona o desenvolvimento de uma prática clínica extraterapêutica junto ao paciente, em seu cotidiano. Um dos princípios deste serviço é o do não-confinamento, buscando-se alternativas para sujeitos cuja existência foi ou não de alguma maneira marcada por alguma forma de clausura. A partir desse princípio o A.T. promove encontros com o objetivo de produzir uma ação, um movimento, uma abertura, uma entrada, um contato. Entendendo o sujeito como singular tanto naquilo que faz como naquilo que poderá advir dele, o A.T. leva em conta que só será possível conhecê-lo num contato direto e através das possíveis construções que sejam estabelecidas a partir disso". (Site AT (http://siteat.cjb.net) em 26 de junho de 2001.)

O autor apresenta uma pequena bibliografia que vou registrar aqui:

1. Equipe de Acompanhantes Terapêuticos do Hospital - Dia a Casa (org.) (1991) A Rua Como Espaço Clínico. São Paulo: Escuta.
2. Grupo de Acompanhamento Terapêutico Circulação (org.) (1998). Cadernos de A.T.: Uma Clínica Itinerante. Porto Alegre: Feplam.
3. Kalina, Eduardo (1998) Tratamento de Adolescentes Psicóticos. Rio de janeiro: Francisco Alves.
4. Mauer, Susana K.; Resnizky, Silvia (1987). Acompanhantes Terapêuticos e Pacientes Psicóticos: Manual Introdutório a uma Clínica. Campinas: Papirus.

Nessa bibliografia estão citados nomes que, importantes no estabelecimento da função de AT na Argentina, o fizeram bem depois da sua instituição no Brasil. Eduardo Kalina, até porque é mais jovem que Marcelo Blaya, e com quem tive vários pacientes em comum, começou seu trabalho com ATs nos anos 70. As estudantes e agora psicólogas,Suzana Mauer e Silvia Resnitzky nos brindaram com excelente livro sobre AT em 1985, traduzido para o português em 1987. Elas trabalharam com Kalina e colocaram de maneira consistente e interessante a função do AT e uma visão psicodinâmica da sua atuação.

O trabalho de AT expandiu sua área de atuação, já não se limita ao paciente individual, começa a ser utilizado em populações de risco, em menores de rua, em grupos de idosos e outros segmentos marginais, como as profissionais do sexo. Para um modelo desse trabalho sugiro a leitura do artigo de Analice Palombini: O Louco e a Rua: A Clínica em Movimento Mais Além das Fronteiras Institucionais (http://siteat.cjb.net).

O grande desafio que esses profissionais tem que enfrentar é o mesmo que os demais terapeutas, sejam psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais tem que enfrentar que é a falta de reconhecimento do seu valor, traduzido em pagamentos crescentemente diminuídos.


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