Dezembro de 2025 – Vol. 31 – Nº 12

Antonio Geraldo Da Silva

Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria apresenta

sete pontos sobre o papel e uso da Cannabis sativa no Brasil

O Brasil voltou a discutir, com intensidade e polêmica, o papel da Cannabis sativa, popularmente conhecida como maconha, depois da movimentação na Câmara dos Deputados para votar o Projeto de Lei nº 399/2015, que prevê a autorização do plantio da planta em território nacional sob a justificativa de “uso medicinal”. Embora o tema desperte paixões e levante bandeiras ideológicas, há um ponto que não pode ser ignorado: a ciência não reconhece a planta cannabis como medicamento. E é justamente isso que precisa ser dito com clareza ao público. Vamos lá:

1 – A diferença entre medicamento e planta, e por que isso importa

Para um produto ser considerado medicamento, ele precisa cumprir requisitos rígidos: moléculas isoladas, pureza comprovada, dosagem padronizada, estabilidade química e previsibilidade farmacológica. A cannabis in natura não atende a nenhum desses critérios.

A planta possui:

• mais de 500 componentes químicos,
• mais de 100 canabinoides com efeitos variados,
• concentrações que mudam conforme clima, solo, cultivo e armazenamento.

Essa variabilidade torna impossível garantir controle terapêutico seguro. Não por acaso, a Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora mais respeitada do mundo, jamais aprovou a planta cannabis como medicamento.

O que existe são fármacos purificados, como o canabidiol isolado, produzidos em ambiente controlado. Confundir isso nomenclaturando como MEDICINAL é um equívoco técnico que promove distorção, reduzindo a percepção da população, colocando-a em risco perigoso.

2 – O que a ciência já sabe sobre os riscos

As evidências acumuladas ao longo das últimas décadas são contundentes. Pesquisas internacionais mostram que:

• O uso regular de cannabis pode triplicar o risco de desenvolver psicoses, incluindo esquizofrenia, especialmente em indivíduos jovens, com predisposição genética.
• O THC, principal composto psicoativo da planta, altera regiões cerebrais responsáveis por memória, atenção, emoções e controle de impulsos.
• Há impacto negativo na performance cognitiva, na produtividade e na capacidade de tomada de decisão.
• O consumo da substância tem sido correlacionado ao crescimento consubstancial de ocorrências no trânsito, incluindo acidentes graves e fatais
• O risco de dependência está fortemente presente e é subestimado pela sociedade

Considerando que a população brasileira lidera os índices globais de ansiedade e ocupa a segunda posição em depressão, conforme dados da OMS, facilitar o acesso a uma substância potencialmente agravante de quadros emocionais configura uma medida temerária e absolutamente imprudente.

3 – A narrativa do “uso medicinal”: uma estratégia antiga

O discurso que tenta revestir a cannabis de benefício clínico generalizado não é novo. Nas décadas passadas, a indústria do tabaco fez exatamente o mesmo: vendeu cigarros como produtos de “status”, “suaves”, “seguros” e até “relaxantes”.

O resultado dessa estratégia de marketing foi devastador: mais de 100 milhões de mortes no século XX relacionadas ao tabagismo.

Reduzir artificialmente a percepção de risco sempre favorece interesses econômicos, nunca a saúde pública.

4 – A experiência internacional: o que realmente aconteceu

Nos países onde houve flexibilização do uso da cannabis, foram observadas consequências graves, e algumas nações chegaram a reverter decisões de liberação, circunstâncias que raramente são consideradas para debate público no cenário brasileiro.

• Holanda, Itália e Portugal não eliminaram o tráfico e tiveram aumento de consumo em adolescentes.
• Nos Estados Unidos, estados que aprovaram o uso “medicinal” avançaram rapidamente para o uso recreativo, com crescimento de intoxicações em crianças, dependência e produtos com concentrações altíssimas de THC.
• Canadá e Uruguai viram surgirem novos produtos, com formatos atrativos para jovens, aumentando a experimentação precoce.

A lição é clara: quando o acesso cresce, o consumo cresce. E quando o consumo cresce, os danos crescem.

5 – O impacto sobre a violência e o tráfico: um mito desmontado

A ideia de que a liberação reduziria o poder do tráfico ignora a realidade observada no mundo. Países que flexibilizaram viram, no início, a coexistência entre o mercado legal e o clandestino, que continuou competitivo por oferecer produtos mais baratos, mais concentrados e sem controle.

Ou seja, não há evidência de que legalizar diminua o crime organizado, e há risco real de que o aumento do consumo gere mais conflitos, dependência e vulnerabilidades sociais.

6 – Um país já fragilizado emocionalmente não pode brincar com fogo

Antes da pandemia, o Brasil já convivia com índices alarmantes de adoecimento mental. Abrir portas para o plantio e uso da planta cannabis significa:

• aumentar a demanda por atendimento psiquiátrico,
• sobrecarregar o SUS,
• desencadeamento de doenças mentais graves,
• comprometer o desenvolvimento físico e mental de crianças e adolescentes,
• elevar o número de acidentes, internações e óbitos.

Trata-se de uma decisão com impacto direto na vida de milhões de famílias — e que não pode ser tomada sem prudência, profundidade e responsabilidade. Além de reduzir o cultivo de alimentos, o viés econômico é desigual.

7- A urgência de um debate sério e desapaixonado

A votação do PL 399/2015 em meio a eventos globais como a COP-30, que naturalmente desviam a atenção da sociedade, acende um alerta. Mudanças legislativas de grande impacto jamais devem ocorrer de maneira acelerada, muito menos quando envolvem questões de saúde pública.

Não se trata de moralismo.
Não se trata de ideologia.
Não se trata de restringir liberdades individuais.

Trata-se de proteger vidas, preservar mentes e garantir o futuro das próximas gerações.

Conclusão: responsabilidade hoje para evitar tragédias amanhã.

O debate sobre a cannabis precisa ocorrer, mas com ciência, transparência, amplitude e sem a ilusão de que o Brasil terá resultados positivos quando a mesma questão já fracassou absolutamente em outras regiões do mundo.

Peço, com respeito, que o Parlamento brasileiro rejeite o PL 399/2015 em sua forma atual. Este assunto já foi arduamente debatido.

A psiquiatria brasileira permanece firme na defesa do que realmente importa: a segurança da população, o bem-estar coletivo e a proteção da mente humana.

*Antônio Geraldo da Silva é médico formado pela Faculdade de Medicina na Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES. É psiquiatra pelo convênio HSVP/SES – HUB/UnB. É doutor pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto – Portugal e possui Pós-Doutorado em Medicina Molecular pela Faculdade de Medicina da UFMG.

Entre 2018 e 2020, foi Presidente da Associação Psiquiátrica da América Latina – APAL. Atualmente é Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Diretor Clínico do IPAGE – Instituto de Psiquiatria Antônio Geraldo e Presidente do IGV – Instituto Gestão e Vida. Associate Editor for Public Affairs do Brazilian Journal of Psychiatry – BJP. Editor sênior da revista Debates em Psiquiatria. Review Editor da Frontiers. Acadêmico da Academia de Medicina de Brasília. Acadêmico Correspondente da Academia de Medicina de Minas Gerais.

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