Novembro de 2025 – Vol. 31 – Nº 11
Walmor J. Piccinini
Resumo
A pós-graduação em psiquiatria no Brasil, que floresceu entre as décadas de 1980 e 2000, vive hoje um período de retração acadêmica, contrastando com o crescimento explosivo da procura pela formação clínica e pela certificação profissional. Este ensaio analisa as causas desse aparente paradoxo — a perda de vitalidade intelectual nas universidades e o aumento da demanda por especialização prática — e propõe caminhos para reequilibrar a formação psiquiátrica entre o saber científico, o exercício clínico e a reflexão crítica.
Abstract
Postgraduate education in psychiatry in Brazil, which flourished between the 1980s and 2000s, is now undergoing an academic decline, contrasting with the rapid growth in demand for clinical training and professional certification. This essay examines the causes of this apparent paradox — the loss of intellectual vitality within universities and the rise of practical specialization — and proposes ways to rebalance psychiatric training between scientific knowledge, clinical practice, and critical reflection.
Palavras-chave: pós-graduação; psiquiatria; formação médica; pesquisa; título de especialista; história da psiquiatria.
Keywords: postgraduate education; psychiatry; medical training; research; board certification; history of psychiatry.
Introdução
A pós-graduação em psiquiatria no Brasil, que teve seu auge entre as décadas de 1980 e 2000, representou um marco na formação de gerações de professores, pesquisadores e líderes clínicos. Naquele período, consolidaram-se grupos de pesquisa em psicofármacos, esquizofrenia, transtornos do humor e dependência química, e surgiram as primeiras redes de intercâmbio internacional. Os programas funcionavam como núcleos de pensamento e inovação, e sua produção científica contribuiu decisivamente para a legitimação acadêmica da especialidade.
O processo de declínio acadêmico
Nas últimas duas décadas, contudo, a pós-graduação em psiquiatria entrou em um ciclo de esvaziamento progressivo. O interesse clínico e teórico foi substituído por uma orientação pragmática, voltada a protocolos, diretrizes e ensaios multicêntricos. O psiquiatra pesquisador deu lugar ao psiquiatra executor de projetos alheios, frequentemente desvinculado da reflexão crítica.
A burocratização universitária e o sistema de avaliação da CAPES transformaram programas em estruturas administrativas dedicadas à contagem de artigos e à busca de pontuação, muitas vezes à custa da qualidade formativa. A pesquisa deixou de ser espaço de criação intelectual para tornar-se uma obrigação curricular.
A fuga de talentos também se intensificou: diante da precarização da carreira docente e da atratividade da prática privada, poucos jovens médicos se dispõem a seguir o caminho acadêmico. As bolsas de pesquisa, cada vez mais insuficientes, e a fragmentação temática dos programas completam o quadro de desânimo.
Por fim, observa-se uma mudança geracional e cultural. A nova geração de psiquiatras acessa conhecimento por meios digitais, congressos e plataformas de atualização contínua, reduzindo a dependência da formação formal. O declínio, portanto, não se limita a números: expressa uma mudança de paradigma na circulação do saber psiquiátrico.
O paradoxo contemporâneo da formação em psiquiatria
Em contraste com o enfraquecimento dos programas de mestrado e doutorado, verifica-se um aumento expressivo da procura pela formação profissional. Residências médicas e cursos preparatórios para o exame de título da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) passaram a registrar centenas de candidatos para poucas vagas.
Esse fenômeno mostra que a psiquiatria mantém forte prestígio social e crescente valorização profissional. O foco, entretanto, deslocou-se: o objetivo principal já não é o doutoramento, mas a obtenção do título de especialista, símbolo de competência clínica e de inserção segura no mercado de trabalho.
As razões são claras. O aumento dos transtornos mentais, a visibilidade pública da saúde mental e a ampliação do setor privado criaram um campo fértil para a atuação do psiquiatra clínico. Ao mesmo tempo, o afastamento entre universidade e prática e o excesso de burocracia desestimularam as vocações acadêmicas.
Vivemos, assim, um paradoxo: uma psiquiatria cada vez mais procurada, mas menos pensada. O entusiasmo pela prática clínica convive com o empobrecimento da formação teórica e da pesquisa original — uma fase de prosperidade quantitativa e empobrecimento qualitativo.
Perspectivas de revitalização
Superar esse desequilíbrio exige reaproximar os polos clínico e acadêmico que sempre se alimentaram mutuamente. É urgente integrar residência e pós-graduação, aproximar os serviços clínicos das linhas de pesquisa e valorizar a reflexão interdisciplinar.
Os critérios de avaliação da CAPES e das instituições de ensino deveriam privilegiar o impacto formativo e clínico, e não apenas o número de publicações. Programas que dialoguem com as demandas reais dos serviços de saúde mental e estimulem o pensamento crítico poderão reconquistar relevância e vitalidade.
Conclusão
O declínio da pós-graduação em psiquiatria não significa decadência da especialidade. Ao contrário: o vigor do interesse pela formação clínica demonstra sua importância social crescente. O desafio é reconciliar a prática com o pensamento, para que o aumento de candidatos e o entusiasmo atual não resultem apenas em expansão numérica, mas em uma verdadeira renovação intelectual e científica.
Epílogo
Falo também como testemunha direta dessa mudança. Estive ligado a dois programas de formação em psiquiatria e vi de perto o aumento vertiginoso do número de candidatos às residências e aos cursos preparatórios para o exame de título. O que antes exigia esforço para preencher vagas transformou-se em disputa acirrada — cem candidatos para dez lugares. Essa nova realidade confirma o interesse crescente pela especialidade, mas também alerta: o entusiasmo pela prática não deve eclipsar a vocação reflexiva que sempre sustentou a psiquiatria. A verdadeira vitalidade do campo dependerá da capacidade de equilibrar esses dois impulsos — o da clínica e o do pensamento.
Sobre o autor:
Walmor J. Piccinini é psiquiatra, professor, ensaísta e editor de Psychiatry Online Brazil. Autor de extensa obra sobre a história da psiquiatria brasileira, tem se dedicado à preservação e análise crítica da produção científica nacional e à genealogia da formação acadêmica em psiquiatria no país.
