Outubro de 2025 – Vol. 31 – Nº 10
Walmor J. Piccinini
Nas últimas décadas, poucas áreas da psiquiatria geraram debates tão intensos quanto o
autismo. Inicialmente descrito como uma condição rara, de manifestação grave e
incapacitante, o diagnóstico passou por uma expansão progressiva que o transformou em
“transtorno do espectro autista (TEA)”, abrangendo desde crianças e adultos com severas
limitações de linguagem e cognição até indivíduos de alto funcionamento que alcançaram
grande reconhecimento social e profissional.
Esse processo, ao mesmo tempo em que ampliou o acesso a serviços e legitimou a
diversidade de experiências autistas, trouxe consigo novas tensões. O recente artigo
publicado pelo New York Times (1º de outubro de 2025) retrata bem esse dilema: famílias
de pessoas com autismo profundo, que necessitam de cuidados integrais e permanentes,
sentem-se invisibilizadas em meio ao discurso atual, dominado por exemplos de sucesso de
autistas de alto funcionamento.
Alison Singer, presidente da Autism Science Foundation e mãe de uma jovem com autismo
severo, é uma das vozes que defendem a criação de uma categoria diagnóstica específica,
chamada “autismo profundo” (profound autism). Segundo ela, a ideia de que alguém como
Elon Musk compartilha o mesmo rótulo diagnóstico de sua filha, que não fala e depende de
apoio para todas as atividades diárias, é “ludicrous”.
Ao mesmo tempo, ativistas ligados ao movimento da neurodiversidade manifestam forte
oposição a essa cisão. Para eles, separar os diagnósticos significaria um retrocesso, com o
risco de marginalizar justamente aqueles que, no passado, já foram considerados apenas
“excêntricos” e privados de apoio adequado. Argumentam que as dificuldades menos
visíveis também demandam reconhecimento e suporte, e que a criação de uma categoria
distinta poderia enfraquecer conquistas sociais importantes.
O debate não é apenas acadêmico. Nos Estados Unidos, a prevalência de autismo passou de
1 em 150 crianças em 2000 para 1 em 31 em 2020, segundo dados do CDC. Grande parte
desse crescimento está relacionada à ampliação diagnóstica e não a um aumento real de
casos severos. Isso significa que, enquanto o financiamento total para pesquisas sobre
autismo aumentou, os estudos focados nos casos mais graves vêm diminuindo. Famílias
relatam dificuldades crescentes: 80% dos pais consultados pelo National Council on Severe
Autism disseram que seus filhos foram considerados “muito disruptivos” até mesmo para
escolas especializadas.
É nesse contexto que as falas de Robert F. Kennedy Jr., atual Secretário de Saúde norte-
americano, ganham peso. Ao declarar que crianças com autismo severo “nunca pagarão
impostos, nunca terão empregos, nunca escreverão um poema ou sairão para um encontro”,
ele gerou repúdio entre autistas adultos, que consideraram suas palavras desumanizantes.
Mas, paradoxalmente, encontrou eco entre famílias que vivem a realidade dura dos
cuidados cotidianos.
O que está em jogo é, sobretudo, a forma como a sociedade define quem é autista e como
deve oferecer suporte a essa população tão heterogênea. Separar diagnósticos pode dar
visibilidade aos casos mais graves, mas também corre o risco de fragmentar um movimento
que conquistou avanços significativos em termos de direitos e inclusão. Manter o espectro
unificado preserva a força coletiva, mas pode invisibilizar aqueles que mais necessitam.
A história da psiquiatria mostra que categorias diagnósticas nunca são estáticas: elas
refletem valores sociais, interesses políticos, avanços científicos e também disputas
internas. O debate atual sobre autismo profundo é apenas mais um capítulo dessa trajetória
em construção, que exigirá equilíbrio entre rigor científico, sensibilidade clínica e respeito à
diversidade humana.