Setembro de 2025 – Vol. 31 – Nº 9

Autor: Walmor J. Piccinini Instituição: Especialista em psiquiatria pela ABP e colaborador na FUMM e CCYM]

Resumo: A reforma psiquiátrica brasileira provocou transformações profundas no modelo de atenção à saúde mental. No entanto, a implementação desarticulada entre leis federais e estaduais gerou um vácuo assistencial com efeitos significativos: diminuição de leitos hospitalares, crescimento das comunidades terapêuticas não clínicas e agravamento da vulnerabilidade social. Este artigo analisa as contradições entre a Lei Federal nº 10.216/2001 e a Lei Estadual nº 9.716/1992 do Rio Grande do Sul, associando contexto histórico, dados estatísticos e consequências práticas observadas, como a expansão da Cracolândia e a judicialização do sofrimento psíquico.

1. Introdução

A reforma psiquiátrica visava romper com o paradigma hospitalocêntrico e construir uma rede comunitária de atenção à saúde mental. No entanto, sua execução apresentou desequilíbrios normativos e operacionais. Este estudo parte da observação clínica e documental de experiências vividas e consolidadas ao longo de décadas no sistema de saúde brasileiro.

2. Contexto Histórico

Inspirada por experiências como o Massachusetts Mental Health Center, o Austen Riggs Center, Clínica Menninger, a psiquiatria brasileira incorporou técnicas psicodinâmicas e abordagens comunitárias. Contudo, a transposição acrítica desses modelos — aliada a medidas administrativas como capitation e managed care — comprometeu a sustentação clínica da reforma em solo nacional.

3. Análise Comparativa das Leis

AspectoLei Federal nº 10.216/2001Lei Estadual nº 9.716/1992 (RS)
Termo chaveTranstorno mentalSofrimento psíquico
Diretriz hospitalarRacionalização de leitosProibição de novos leitos públicos e privados
Internação compulsóriaRegulada por CRM e MPAdiciona Junta Interdisciplinar
Atualização legislativaAtiva e discutidaSem revisão em 30 anos

A concepção estadual, embora inovadora, não foi acompanhada por mecanismos reais de supervisão técnica, revisão periódica ou construção de alternativas terapêuticas sustentáveis.

4. Efeitos Assistenciais e Sociais

4.1 Redução de Leitos Psiquiátricos

  • SUS contava com 33.454 leitos psiquiátricos em 2013.
  • Em 2023, esse número caiu para 16.326 (queda de 53,7%).
  • Apesar da duplicação dos atendimentos psicossociais no mesmo período, serviços hospitalares tornaram-se insuficientes.
  • No sentido oposto aumentaram os leitos pagos para a parcela mais privilegiada da população.

Fonte: IEPS / Umane (2023)

4.2 Crescimento das Comunidades Terapêuticas

  • Mais de 2.000 unidades até 2017.
  • 74% em zonas rurais, 82% com orientação religiosa.
  • Investimento público: R$ 560 milhões (2017–2020).

Fonte: IPEA / Agência Brasil

Embora acolhedoras, muitas dessas comunidades não ofertam tratamento médico, tornando-se espaços paralelos fora do alcance regulatório da saúde pública.

4.3 Cracolândia como Síntese do Vazio

  • Média de 1.680 pessoas/dia na região da Luz (SP).
  • 62% em situação de rua; 58% com histórico de psicose.
  • Gasto médio com crack: R$ 192,50/dia.
  • Estimativa de movimentação mensal: R$ 10 milhões.

Fonte: UNIAD / UNIFESP

5. Discussão

A desarticulação entre diretrizes federais e estaduais impede a construção de um modelo híbrido, clínico e comunitário. O bloqueio à instalação de novos leitos — aliado à baixa atratividade econômica dos serviços psiquiátricos em hospitais gerais — gera lacunas na assistência intensiva, recaindo sobre alternativas não médicas ou espaços urbanos de exclusão.

Cita-se Gastal et al. (2007):

“Os hospitais psiquiátricos são alternativos e terapêuticas eficazes muito necessárias em situações de crise e devem ser remodelados, modernizados e não extintos.”

6. Propostas

  • Readequação normativa com revisão da Lei Estadual nº 9.716.
  • Implantação de leitos psiquiátricos clínicos em hospitais gerais.
  • Supervisão técnica em comunidades terapêuticas com integração ao SUS.
  • Criação de centros de emergência psiquiátrica com serviços interdisciplinares.
  • Articulação entre saúde, assistência social e políticas urbanas.

7. Conclusão

A reforma psiquiátrica brasileira representa avanço ético, mas seu modelo operacional requer urgente recalibragem. A coexistência entre hospital e comunidade não é excludente, mas complementar. Superar os dilemas legislativos é essencial para garantir assistência clínica eficaz, humanizada e territorializada.

Referências

  1. Lei Federal nº 10.216, de 6 de abril de 2001.
  2. Lei Estadual nº 9.716, de 7 de agosto de 1992 (RS).
  3. Gastal, F. et al. (2007). Reforma Psiquiátrica no RS: Análise histórica e de impacto. Revista de Psiquiatria do RS. 29(1).
  4. Instituto de Estudos para Políticas de Saúde – IEPS. (2023).
  5. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. (2024).
  6. UNIAD / UNIFESP. Estudo sobre perfil da Cracolândia. (2025).
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