![]() ![]() Janeiro de 2013 - Vol.18 - Nº 1 Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello |
Janeiro de 2013 - Vol.18 - Nº 1 COLUNA PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA TRANSE E CULTURA BRASILEIRA. JACQUES MONGRUEL E AS ORIGENS DA PSICOTERAPIA DO TRANSE (TRANSETERAPIA) NO BRASIL Fernando Portela Câmara, MD, PhD Resumo O valor
terapêutico do transe ritual nos cultos espiritistas foi pela primeira vez
observado e estudado por Jacques Mongruel, no Rio de
Janeiro, que criou o conceito de transe psicautônomo. Relatamos aqui algumas notas biográficas
e suas conclusões sobre a transeterapia ritual. Palavras chaves:
transeterapia, transe psicautônomo, cultos espíritistas. Summary O
médico carioca Jacques Mongruel foi o primeiro entre
nós a perceber a natureza terapêutica dos transes nos cultos espiritistas
praticados no Brasil. Ele dedicou-se a estudar os transes do chamado
espiritismo de mesa, pois este movimento tem uma estrutura que favorece o
controle e ab-reação pelo transe. Mongruel foi diretor
médico do Hospital Santa Catarina de Alexandria, na cidade do Rio de Janeiro, uma
entidade beneficente dedicada ao tratamento do alcoolismo. Ele combinava
tratamento medicamentoso e psicoterapia sugestiva, tendo obtido grande sucesso.
O paciente ficava internado por cerca de 60 dias e só era liberado quando, ao
ser forçado a beber um gole de álcool, expressasse intensa aversão emocional e
neurovegetativa. Isso mostra que Mongruel aplicava a
terapia aversiva. Os pacientes recebiam tratamento psíquico, social e
laborterapia, além do tratamento específico propriamente dito. Por esse hospital
passaram desenhistas, pintores, escritores, arquitetos, ao lado de modestos
trabalhadores e funcionários públicos, todos tratados do “vício” alcoólico. O
sucesso desse tratamento lhe deu uma breve fama, tanto quanto durou o hospital,
o que mereceu uma reportagem no jornal A Noite, em 1952. Seu
interesse na recuperação de alcoolistas é bem anterior e provavelmente isso o
levou a estudar esses centros espíritas que tinham como parte importante de
suas atividades a caridade, especialmente aos doentes mentais e alcoolistas,
tendo fundado vários hospitais mantidos pela contribuição dos seguidores. Mongruel não gostava que tratassem os alcoolistas de
doentes mentais, e compartilhava a noção de que os tratamentos químicos eram
mais danosos para a mente do paciente do que o próprio vício. Ele considerava a
reinserção social do paciente, e, sobretudo, o desenvolvimento de sua
personalidade e aptidões latentes como base essencial do tratamento, uma
convicção que ele formaria anos antes ao estudar os transes dos médiuns
espíritas. Estes estudos surgiram de uma curiosidade ao visitar centros
espíritas kardecistas levado por um amigo, também médico, que professava o
credo espírita e realizava trabalhos num desses centros como clarividente. A
mente investigativa de Monguel, que conhecia o
hipnotismo e a reflexologia Pavloviana,
logo se colocou a observar os fenômenos e anotá-los cuidadosamente. No I
Congresso Interamericano de Medicina, ocorrido no Rio de Janeiro, em 1946, Monguel apresentou uma comunicação onde ele expunha suas
observações sobre o fenômeno de transe e possessão praticado ritualmente nas
setas animistas brasileiras (Mongruel, 1947). Ele
estudou esses transes dentro do contexto psicológico e social dos centros
espíritas, seu efeito terapêutico a pessoa do médium e no desenvolvimento da
personalidade, formando uma casuística significativa que lhe permitiu chegar a
conclusões seguras. O trabalho de Mongruel
concentrou-se unicamente nos aspectos psicoterapêuticos e fenomenológicos dos
transes mediúnicos, descontextualizando-os dos aspectos doutrinários da
religião, os quais têm em si um valor social significativo na regulação da
conduta moral dos crentes. …perante
determinados fatos como a preparação dos médiuns para o “estado de transe”, o
meu procedimento foi de investigação psicológica desses comportamentos e não de
explicações doutrinarias igualmente respeitável. (Mongruel, 1947) Transes psicautônomos Os
transes observados em nossa cultura animista, que envolve diferentes
orientações doutrinárias e grupos de crença (espiritismo, candomblé, umbanda,
xangô, etc.) têm como fenômeno comum o que denominamos em psiquiatria de transe
e possessão, uma forma de transe em que a personalidade ordinária é substituída
por uma personalidade alternativa, estereotipada, com características
tutelares. Mongruel denominava essa forma de transe
de “transe psicautônomo de personificação verbal”, ou
transes controlados pelo próprio médium. Mongruel
relatou sua experiência no Congresso Internacional de Psicoterapia Folclórica,
Transes Rituais e Terpsicoretranseterapia, que se
realizou no Rio de Janeiro em 1984 (Mongruel, 1987). Quanto
à hipótese que adotei, eu estava consagrando a autonomia (função por leis
próprias) do psiquismo humano (cérebro), o que é uma realidade, porque todos os
órgãos humanos, sistemas, aparelhos, funcionam “por leis próprias”, ligados
entre si pelo sistema nervoso autônomo (SNA) e periférico (SNP), quando estamos
acordados (realizando-nos) ou dormindo (recuperando-nos). (Mongruel, 1987) As
observações começaram nas salas onde os médiuns
trabalhadores prestavam assistência aos crentes e visitantes, realizando
rituais de cura e clarividência em estado de transe. Ele notou que esses
médiuns eram pessoas saudáveis, treinadas, cooperativas e benevolentes, que estavam
no grupo há muitos anos, e os dirigentes dos centros eram homens e mulheres que
condiziam os trabalhos igualmente em transe, em um ambiente de respeito, fé e
caridade. Mongruel investigou a origem desses médiuns
em nossa cultura: …parte
dos candidatos a médiuns eram sofredores por fatores pessoais ou sociais,
encaminhados às “sessões de desenvolvimento”. (Mongruel,
1987) Essas
sessões de desenvolvimento espiritual consistiam no trabalho de preparação dos
médiuns, geralmente padecentes para os quais a medicina não encontrava remédio
e eram curados de seus problemas nessas “escolas de médiuns”. A teoria espírita
que tais sofrimentos não reconhecidos pelos médicos deve-se à uma mediunidade
não desenvolvida ou controlada, e a terapia, nesse contexto cultural, consiste
em “desenvolver a mediunidade” como realização da missão do médium que é a de
fazer alguma forma de caridade às pessoas. Semelhantes idéias observamos também
nos cultos afrobrasileiros e indígenas, e parece-nos
ser um principio universal no xamanismo. Observei
que os dirigentes eram bem selecionados, crentes devotados, com prática para
recuperar emocionais desajustados. (Mongruel,
1987) Quanto
aos candidatos, que ele identificou como emocionais desajustados, observou: …eram nervosos
padecentes, e essa patologia cessava o progressivo autocontrole psíquico. (Mongruel, 1987) Ele
então acompanhou essas sessões de “desenvolvimento espiritual” e relatou suas
observações sobre a evolução desses indivíduos de padecentes a médiuns ativos
trabalhando para a comunidade atendida pelos centros espíritas respectivos. Nas
sessões rituais, ao falarem ou escreverem em transe, manifestavam equilíbrio
emocional, bom senso e criatividade em vários setores culturais. O transe educado
revelou-se uma manifestação cerebral natural: é psicautônomo
como deduzi. (Mongruel, 1987) Na sua
comunicação em 1946 Mongruel chamou a atenção da
comunidade médica internacional para as “escolas de médiuns” como uma
experiência coletiva empírica que constituiu a fase pré-científica de uma
psicoterapia de distúrbios emocionais. Essa psicoterapia: …consiste
em educar o paciente para o uso normal da psicautonomia,
e que equivale a provocar estados semelhantes aos períodos de inspiração dos
artistas ou de imaginação criadora dos sábios e inventores. Fato novo,
objetivo, e de valor científico, surgiu quando presenciei dois casos em que
senhor e senhora (em datas e locais diferentes), instruídos, responsáveis,
bruscamente entraram em transe sem intenção, em preparo prévio, com os meios
familiares diferentes. Acabaram aderindo a dois centros. Esses casos não são
raros. (Mongruel, 1947) Embora
as observações de Mongruel já sejam de 60 anos atrás,
continuam atualíssimas tendo sido confirmadas por Akstein
(1975) e Câmara (2005) em períodos posteriores. Ele ressaltou que os transes psicautônomos cumpre uma dupla finalidade, a primeira
descarregando a tensão emocional: [as
explosões emocionais que surgem no transe externam] causas de conflitos
íntimos, depois do que resulta grande alívio aos pacientes. […]
[os principais beneficiários dessa terapia seriam] os inadaptados aos choques e
torturas da existência, sofredores pela emoção, os quais formam legião
interminável. (Mongruel, 1947) Essas
descargas vão gradualmente decrescendo em intensidade e duração, e por fim o
paciente recobre o equilíbrio emocional e psicofísico, portanto, um processo
dessensibilizador. A
segunda finalidade dos transes psicautônomos consiste
em usá-lo para desenvolver a personalidade. O ambiente deve ser propício à
livre expressão das pessoas, permitindo que elas assumam o estado de atenção
introspectiva em relaxamento, deixando progredir interiormente os estímulos
iniciados por fatores morais, estéticos ou intelectuais, falando livremente o
que vão pensando e sentindo, se o desejarem, ou escrever, pintar, discursar sem
que nada restrinja a sua liberdade de fazer o que desejar ou ficar quieto se
isso for o que deseja para o momento. O psicoterapeuta ajudará o indivíduo a
elaborar seus conteúdos intelectuais e afetivos. Desse modo o terapia pelo
transe psicautônomo é uma psicoterapia ativa,
semelhante á hipnossíntese de Conn.
A
maioria dos alunos, em certa fase do adestramento, por momentos, sob o império
da emoção, pode sentir chegar à consciência uma ideia nova, uma solução desejada,
uma intuição elevada (falando, escrevendo, etc.), estados psicológicos estes (psicautônomos) semelhante aos períodos de inspiração dos
artistas ou de imaginação criadora dos sábios e inventores. Durante os
exercícios o aluno aprende a libertar-se de suas inibições, habituando-se a
sondar em si mesmo idéias de que a princípio quase não se julgava capaz. (Mongruel, 1947) A
atenção introspectiva que Mongruel se refere é a
auto-absorção da mente em uma ideia ou situação a resolver. Esta condição foi
denominada de monoideísmo por Braid, ao perceber que
ato mental era a base de toda indução hipnótica. “A concentração em uma única
idéia cria a sua realidade”, poderia ser assim definido o monoideísmo. A
educação da psicautonomia tem por objeto despertar
favoráveis processos intelecto-afetivos, bons impulsos desde logo aproveitados
na medida possível, no duplo sentido mental e moral, respeitados talentos ou
vocações individuais. (Mongruel, 1947) Vemos
assim que Mongruel é um pioneiro não apenas na
transeterapia como colocou esta modalidade terapêutica como uma psicoterapia
ativa, isto é, onde o terapeuta é apenas um orientador e o paciente faz a sua
própria terapia. Aspectos sociais do transe psicautônomo A
denominação de transe psicautônomo aplica-se não
apenas aos transes mediúnicos nas condições descritas por Mongruel,
mas também aos transes auto-hipnóticos e certas formas de êxtases artísticos e
religiosos, excluindo-se destes últimos aqueles decorrentes de manifestações
histéricas como no caso de catalepsias e estigmas. Muitos desses transes são
formas de transe e possessão que, no caso dos médiuns, são aqueles transes onde
se pratica a escrita automática, a pintura automática, a fala impulsiva, e
outras manifestações de estados segundo de Azam. Jacques
Mongruel descreveu e estudou empiricamente os transes
rituais praticados de forma controlada em centros espíritas, nas chamadas
“escola de médiuns”. Nessas escolas, padecentes nervosos que compartilham a
crença espírita ou são encaminhados para as “sessões de cura” desses locais, se
forem tidos pelo diretor do centro como médiuns potenciais necessitando de
“desenvolver a mediunidade”, passam por sessões de “desenvolvimento” pela
prática de transes rituais supervisionados. Esta educação do transe constitui
em si mesmo um fator terapêutico, dessensibilizador, pois, baseai-se no
progressivo treinamento do autocontrole psíquico. O
candidato melhora seu distúrbio emocional e passa a ter maior controle de si
mesmo, o que constitui, por si só, o objetivo de toda psicoterapia (Câmara,
2005). Entretanto, a educação do transe progride para o desenvolvimento de
faculdades criativas latentes tais como desenho, pintura, música e letras,
imitando a arte de algum suposto artista ou escritor morto. Essa produção de
médiuns, aliás, são famosas no Brasil e disputadas. Títulos de livros
psicografados constituem o maior volume de vendas no país (as livrarias
espíritas não entram nas listas dos jornais), muitas músicas populares do nosso
folclore são produto de transes criativos, etc. Quando
essas manifestações ocorrem espontaneamente, tais pessoas, que freqüentemente professam
a crença espírita, são convidadas a entrarem para um centro. O transe é o meio
mais natural para isso, uma via para desreprimir
aptidões latentes e desejadas. A liberação de potenciais criativos resulta de
um impulso no desenvolvimento da personalidade, e assim é uma terapia autêntica
que leva o indivíduo a um novo estado do ser, o estado real no qual se via
impedido e é causa de neuroses. O autor
deste artigo acredita que os centros espíritas e afro-brasileiros poderiam
prestar uma assistência muito mais ampla à saúde mental das comunidades em que
estão inseridos, se orientados para o seu valor terapêutico auxiliar na saúde
mental coletiva. A colaboração de psiquiatras com conhecimento e experiência
nas técnicas indutoras de transes e seu controle, em parceria com essas
instituições populares, provavelmente reduziria de modo significativo os custos
da saúde mental ampliando o acesso da população. Conclusão Os transes
mediúnicos, sejam as formas estáticas ou trofotrópicas
do espiritismo de mesa e possessão pelo espírito santo dos cultos neopentescostais, sejam as formas cinéticas ou ergotrópicas do candomblé, umbanda e outros cultos
afro-brasileiros, tem como mola impulsora fixações místicas religiosas. A
descarga da tensão emocional reduzindo a estase hipotalâmica possibilita o
autocontrole e a remissão de sintomas psiconeuróticos e psicossomáticos. Em
outras palavras, o benefício terapêutico dos transes psicautônomos
não decorre de elementos místicos religiosos, mas do transe em si mesmo
enquanto fenômeno psicofisiológico (Câmara, 2005). Em um
ambiente controlado de um setting terapêutico a ideação mística pode ser
substituída por absorção da atenção em certas vivencias ou sensações,
atingindo-se um estado de transe psicautônomo
orientado para propósitos terapêuticos, autocontrole, desenvolver certos
setores da personalidade e o desempenho em tarefas específicas. Técnicas de
auto-hipnose individual ou em grupo como o treinamento autógeno de Schultz (Câmara,
2006) e a hipnossíntese de Conn
(1956), para citar as conhecidas do autor, são eficazes e estruturadas para a
clinica psicoterapêutica, sem compromisso ideológicos ou religiosos. Referências Akstein,
D. Hipnotismo, eus aspectos médico-legais, morais e
religiosos, Rio de Janeiro: Ed. Hypnos, 1975. Câmara, FP. Psiquiatria popular brasileira: a função reguladora do transe, Psychiatry On-line Brasil, 2005; 10(5), disponível em http://www.polbr.med.br/ano05/mour0505.php (acessado em 30/12/12) Câmara FP. Treinamento
autógeno simplificado: um método de terapia integral, Psychiatry
On-Line Brazil, 11(07), 2006, disponível em http://www.polbr.med.br/ano06/artigo0706.php (acessado em 30/12/2009). Conn, JH. Hypnosis as a dynamic psychoterapy.
Sinai
Hospital Journal, 2: 14-32, 1956 Mongruel JL. O
“transe” de personificação verbal e a hipótese de “psicautonomia”,
Anais do I Congresso Interamericano de Medicina, Rio de Janeiro, Mongruel
JL. Transes psicautônomos, Rev. Brasileira de
Hipnose, 1987; 8: 60-6. Reportagem
“Beba! É só um trago, por favor”, jornal A Noite, edição de sexta-feira, 12 de
dezembro de 1952, p. 8. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=348970_05&pagfis=16125&pesq=&esrc=s (acessado em 20/12/12) ![]()
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