Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Janeiro de 2012 - Vol.17 - Nº 1

COLUNA PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA

CONSIDERAÇÕES SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE O MUNDO INTERNO (SUBJETIVO) E O AMBIENTE, QUANTO AOS DESVIOS DA HARMONIA MENTAL

Edson Engels Garcia dos Santos
Psiquiatra e Psicoterapeuta


 

Resumo – apresenta-se aqui a segunda parte de uma síntese das idéias essenciais que nortearam o ensino e a construção da psiquiatria de Aníbal Silveira no Pavilhão Escola do Hospital Juqueri, hoje denominado Pavilhão Aníbal Silveira Residência Médica. O artigo foi elaborado a partir de notas de aulas e palestras na época em que autor foi professor na citada residência sob a direção de Aníbal Silveira.

 

“Entre o homem e o mundo é preciso a Humanidade”

(A.  Comte).

 

Inicialmente, consideramos importante definir a noção geral de saúde e moléstia e, em seguida, conceituar a saúde mental ou Harmonia Mental e seus desvios.

 

“Saúde consiste em um estado de harmonia de indivíduo consigo mesmo e com o ambinete, que se traduz pelo bom aspecto, não só morfológico como também nas suas manifestacoes sociais”. (Maffei, 1971)

                                                                                                           

A saúde resulta do concurso de todas as funções cerebrais e corporais. Ela é baseada na harmonia constante entre o organismo e o meio, base de toda a unidade. Como a unidade individual supõe a unidade no coletivo social. E como as modificações desta última atuam sobre o indivíduo, tem-se que o estado de saúde varia sob a influência das circunstâncias exteriores, que físicas, quer sociais. Estas circunstâncias atuam como modificadoras tanto da harmonia vegetativa quanto da harmonia cerebral.

É pertinente aqui propor que a unidade individual é o sujeito objeto do exercício do clinico psiquiatra.

Portanto é um SER ou ONTO no sentido biológico e/ou filosófico.

Há um modelo biológico de espécie, de SER celenterado, de SER jacaré, de SER onça e de SER seu pet cão, gato, etc. Corresponde a este modelo a uma morfologia, um comportamento e uma expressão genotípica peculiar a espécie em ambiente modulador da unidade individual.

No sentido filosófico e/ou Epistemológico filiado ao pensamento de Aristóteles, consideramos Ontologia a parte do conhecimento (Episteme Gnoses) tendo como objetivo de estudar as propriedades mais gerais das espécies, ou seja, o modelo do SER de uma espécie.

O objetivo da Psiquiatria é o Homo sapiens, infelizmente a única espécie do gênero restante na Terra. 

Na orientação positiva de linhagem nascida filosoficamente em Aristóteles, perpassando Tomas de Aquino, Descartes, Kant, Leibniz, Hume, Gall, desembocando em A. Comte (1850) constitui-se uma Teoria Cerebral ou Teoria da alma humana (Onto Homo Sapiens).

Após os trabalhos de Wundt, marco da psicologia moderna no século XX os termos clássicos Onto – Ser – Alma passam a ser substituídos por Eu – Natureza  Humana – Psiquê  etc.

O termo Personalidade é adequado e suficiente para referir esses conceitos.

Personalidade segundo Aníbal Silveira é uma teoria da subjetividade humana. Para Silveira, são três as principais construções teóricas de personalidade: Augusto Conte (1850), e Freud e Kon Monakov, no século XX.

Define Aníbal Silveira: “Personalidade é um conjunto de funções subjetivas hierarquicamente organizadas, inatas e coexistentes, cedidas no cérebro e ligadas ao seu funcionamento o qual resulta da comunicação com o meio externo e interno do organismo. Estas funções regem continuamente e de modo harmônico as disposições genéticas do individuo e suas inter-relações com o ambiente físico e social”.

A personalidade, com base em Conte, é formada por três esferas de funções subjetivas: 

1-     Afetividade, conjunto de funções (e órgãos cerebrais) dos instintos tais como conservação da vida (nutritivo), reprodução da espécie a sexualidade; agressividade, desejo de poder e ambição.  Inclui também os sentimentos pelos outros, a sociabilidade ou instintos morais.

2-     Inteligência, com as funções de observar, perceber, elaborar e simbolizar através da linguagem.  Localizadas nas áreas frontal e pré-frontal.

3-     Caráter ou Conação, com as funções motoras e psicoativas de iniciar, manter e parar atos e os mecanismos psicofisiológicos da atenção, mediando a relação da afetividade com as funções da inteligência.

 

Quando à harmonia geral do organismo se perturba, aparece o estado de moléstia, que consiste unicamente na modificação da intensidade dos fenômenos vitais, pois, “Toda e qualquer modificação da ordem universal é limitada à intensidade dos fenômenos cujo arranjo fica inalterável”. Temos a Lei geral da Patologia de Broussais “Entre o normal e o patológico só existe diferença de intensidade”.

            Aplicando-se esse conceito à noção de harmonia mental que decorre da inter-relação e da interdependência sinérgica, relativas, às esferas e às funções da personalidade, vamos verificar que a afetividade estimula o trabalho intelectual e as ações no mundo externo, físico e/ou social, além de reger o metabolismo visceral com as quais se liga pelo núcleo hipotalâmico e a rede nervosa simpática e parassimpática. A inteligência orienta diretamente o caráter (ação) para satisfazer as necessidades afetivas e, indiretamente, através da emoção reage sobre a afetividade. 

            A harmonia destas funções é regida pelas leis estáticas e dinâmicas do entendimento humano e os desvios mentais constituem variações de intensidade nas manifestações destas mesmas leis (Santos, 2011).

             Tem a harmonia mental como tipo abstrato ideal, uma afetividade (sociabilidade) universal, uma inteligência no estado científico (ou lógico) e uma atividade (caráter) produtiva ou industrial.

            A desarmonia mental decorre das variações de dois elementos, um mais estático ou estrutural, que é o genético-constitucional, portanto individual, aqui denominado de elemento predisponente e outro, mais dinâmico, decorrente do ambiente ou mundo externo – físico e/ou social – que chamaremos de elemento determinante ou desencadeante.

             É importante estabelecer aqui algumas noções relativas à carga genética (heredologia) para se compreender a fundamental participação do primeiro elemento (predisponente) citado na gênese dos desvios da harmonia mental.

             Sabemos, através da observação medica no decorrer dos séculos, que praticamente nenhuma moléstia se manifesta se não houver no individuo uma estrutura genética sensível – em vários graus de intensidade – aos agentes modificadores da harmonia vital. E é principalmente no campo das alterações mentais onde este elemento mais se revela com toda a intensidade e clareza.

A carga genética dos seres vivos constitui os genótipos, cujo substrato material são os elementos cronossômicos do núcleo celular. Da interação do genótipo com o ambiente, temos o fenótipo, que é o aspecto diretamente observável dos seres vivos. Estes conceitos abstratos permitem-nos equacioná-los da seguinte forma:

            genótipo + ambiente = saúde ou doença

            Tal visão levou à primeira grande classificação das doenças mentais por Kraepelin, que dividiu as doenças em funções da predominância de causas endógenas (ou genéticas) e doenças cujas causas são predominantemente exógenas (ou ambientais). Desde esta divisão realizada nos fins do século XIX, até nossos dias, um longo caminho foi percorrido por inúmeros pesquisadores, dos quais destacamos Luxemburger, Kleist e Anibal Silveira.

            Outro conceito que se faz necessário para a compreensão da harmonia mental e seus desvios é o homeostasia, isto é, o conhecimento da norma ou limite de variação da reação do genótipo na adaptação dos seres vivos às condições do meio ambiente. Com isso estamos falando da capacidade de adaptação aos estímulos externos, que é variável de um para outro indivíduo. Esse fenômeno (homeostasia) é regido pela 10ª Lei da Filosofia Primeira – “Todo estado, estático ou dinâmico, tende a persistir espontaneamente, sem nenhuma alteração, resistindo às perturbações exteriores”.

             Do ponto de vista mental ou psicológico, o mecanismo homeostático frente aos estímulos do ambiente, sobretudo social ou inter-humano, é constituído pelos seguintes processos:

1-     a catatimia

2-     a projeção

3-     a racionalização

4-     a realização imaginária do desejo

5-     a sublimação

O esquema de Luxemburger (vide quadro I) permite-nos ter uma visão clara e dinâmica da inter-relação dos fatores endógenos (disposição) e exógenos.

 

 

LEGENDA: Polo D - disposição (carga genética); Polo A - fatores ambientais; X - doenças em que a carga genética exerce papel fundamental: a influência ambiental é secundária (são  os chamados quadros constitucionais e marginais ou psicoses benignas, ex: esquizofrenia, psicose maníaco-depressiva ( PMD) e psicoses diatéticas (benignas); Y  - doenças desencadeadas fundamentalmente pelos conflitos dinâmicos (sociais) ou alterações físicas decorrentes da relação do indivíduio-ambiente, porém as características dos desvios são decorrentes da carga genética: citamos como exemplo as reações neuróticas, as psicoses ocasionais e as neuroses e manifestações psicossomáticas. 

            É importante desatacar que não há condições mórbidas 100% genéticas ou 100% devido a fatores ambientais. O professos Anibal Silveira classificou os desvios mentas segundo os ciclos heredológicos em psiquiatria da seguinte forma:

 

ESBOÇO DE CLASSIFICAÇÃO PSIQUIÁTRICA, BASEADO NA GENÉTICA HUMANA (1947 e 1970)

 

 

I – PSICOSES DE ORIGEM INFECCIOSA PREDOMINANTE

1-     Meningo-encefalite difusa sifilítica (P.g.)

2-     Neuro-sífilis, em geral

3-     Neuroaxite epidêmica

4-     Psicose por doença infecciosa, em geral

 

II – PSICOSES DE ORIGEM TÓXICA PREDOMINANTE

5-     Psicose por hétero-intoxicação aidental

6-     Psicose por auto-intoxicação, endócrina ou metabólica

 

III- CONDIÇÕES ENDÓGENAS CONSTITUCIONAIS

7-     Epilepsia propriamente dita (endógena)

8-     Psicose maníaco-depressiva

9-     Esquizofrenia

10- Parafrenia

11- Paranóia

12- Óligofrenia propriamente dita (endógena)

13- Psicose mista. Quadro associado (ou enxertada)

 

IV – CONDIÇÕES ENDÓGENAS MARGINAIS (POR DISPOSIÇÃO LATENTE)

14- Psicose diatética (Kleist)

15- Personalidade psicopática

16- Toxicofilia

17- Neurose

18- Psicose reativa. Quadro “psicógeno” em sentido escrito

19- Convulsões sintomática

20- Delírio Alucinatório crônico (Roxo)

 

V- QUADROS DEFICITÁRIOS POR LESÕES FOCAIS OU ABIOTRÓFICAS DO CÉREBRO

21- Doença de Alzheimer, de Pick, artério-esclerose cerebral

22- Demência senil propriamente dita (Presbiofrenia)

23- Lesões focais do cérebro, em geral

24- Deficiência mental por encefalopatia não endógena

 

 

QUADRO II

 

Análise empírica da anamnese heredológica de 2.166 pacientes índex,

entre 5.600 observação pessoal – 1932-1950

 

Estabelecendo um paralelo entre o esquema de Luxemberg e o ciclo herodológico em psiquiatria, verificamos que, teoricamente, o item 4 – Traços anormais de caráter corresponde à linha “M” de Luxemburger. Os itens 1,2 e 3 (neste ordem), à medida que se afastam do pólo “D”em direção a “M” caracterizam-se como os desvios mentais mais independentes do ambiente. Da mesma forma, os itens 5 e 6 (nesta ordem), na medida que se afastam da linha “M”em direção ao pólo “A” caracterizam os desvios mais dependentes do ambiente físico e social.

Para tornar mais clara e precisa essa nossa exploração sobre os distúrbios do trabalho mental, recorremos ao quadro elaborado pelo Professor Anibal Silveira – ESBOÇO DE CLASSIFICAÇÃO PSIQUIÁTRICA BASEADA NA GENÉTICA HUMANA – bem como ao gráfico correspondente (vide o quadro II) onde se relaciona a carga genética, a ação ao ambiente e a ação ao tratamento com várias formas de moléstias mentais.

Tomemos alguns exemplos para melhor esclarecimento do quadro e gráfico acima referidos (quadro II) tendo como critério os seguintes parâmetros:

1.      Patológico mental decorrente principalmente do ambiente físico – como é o caso da Meningo-encefalite difusa sifilítica (P.G.) – nº 1 no quadro. Neste tipo de patologia a carga genética exerce influência básica somente no grau de sensibilidade ou refratariedade frente ao agente infeccioso (o Treponema).

O quadro psiquiátrico, porém, já depende mais da ação do microorganismo sobre o cérebro e a ação do tratamento, quando feito de forma em momento hábil, é quase total.

2.      Patologia mental decorrente de alteração do organismo, porém, exterior ao cérebro. Como exemplo citamos o item 6 Psicose por alto intoxicação, endócrina metabólica. Observamos que a carga genética e os fatores ambientais se equivalem e a ação do tratamento é muito significativa quanto aos resultados favoráveis. (É conveniente observar, também, que é neste item que se situa a hipótese do Professor Aníbal Silveira quanto ao quadro patológico da crise mental de Augusto Comte).

3.      Patologia mental devido quase exclusivamente à carga genética, como no caso do item 11 – Paranóia onde o ambiente contribui, em geral, apenas com o conteúdo da formulação das hipóteses mais complicadas e antipáticas que caracterizam o trabalho intelectual do paranóico. Quanto ao tratamento, este é quase nulo, pois trata-se de distúrbio basicamente intelectual sobre o qual os meios terapêuticos são ineficazes.

4.      Patologia mental com maior participação ambiental pode ser observadas nos itens 17 e 18, respectivamente as Neuroses e as Psicoses reativas. A participação do ambiente social vai ocorrer, principalmente sob a regência da lei biológica do hábito – “Qualquer manifestação orgânica que se de frente a um estimulo, tende a se reproduzir mesmo na ausência do estimulo que lhe deu origem”. Assim frente aos estímulos sociais negativos o sistema nervoso reage com emoções negativas (ansiedade, depressões etc.), as quais, pela lei do habito, tendem a se tornar cada vez mais freqüentes e mais intensas. No caso destes estímulos serem persistentes, podem provocar uma estruturação de juízos de valor (emoções) e comportamento inadequados, dando origem à reações neuróticas, as toxicofilias, as psicoses reativas etc.

Os estímulo sociais negativos decorrem na atualidade da falta de unidade social que depende de uma crença diretora, ou seja, de uma concepção filosófica capaz de unir as individualidades sob as ascendência da sociabilidade. Tal condição não existe em nossos dias, pois os sistemas filosóficos do passado (Teológico e Metafísico) não mais satisfazem as novas necessidades reais, e o espírito positivo e cientifico é desconhecido, apesar de já sistematizado e coordenado sob os influxos da sociabilidade (Religião da Humanidade) por Augusto Comte.

 

 

BIBLIOGRAFIA        

Anibal Silveira - O aspecto Heredológico na Classificação das Doenças Mentais; Acepção de Semiologia no Domínio das Doenças Mentais. Notas, Hospital Juqueri, s/d.

Augusto Comte - Exame do Tratamento de Broussais sobre a Irritação, Opúsculos de Filosofia Social (1850), trad. Anibal Silveira, s/d.         

Walter Maffei – Os Fundamentos da Medicina – Ed. Artes Médicas – S.P. – 1971

Santos, EEG. Exposição do trabalho do prof. Anibal silveira sobre as leis estáticas e dinâmicas da inteligência e suas aplicações à patologia mental, Psychiatry On-line Brazil, vol. 11, Nov 2011. http://www.polbr.med.br/ano11/cpc1111.php#1

           


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