Volume 5 - 2000
Editor: Giovanni Torello


Maio de 2000 - Vol.5 - Nº 5

6 de maio - Entrevista com o fantasma de Sigmund Freud

Claudio Duque

Vivo fosse, Freud completaria hoje 144 anos de idade e, além de estar no Guiness Book como um prodígio de longevidade, seria certamente alvo de muitas homenagens. Foi precisamente para homenageá-lo que a revista "Der Spiegel", famosa pela publicação dos diários íntimos de Adolf Hitler, procurou o seu fantasma (que ainda assombra muita gente por aí) para essa entrevista, realizada no terreiro da Ialorixá Mãinha do Piraloquê, obtida com a intermediação do seu grande amigo Pierre "Fatumbi" Verger:

Der Spiegel: Herr Professor, como o Sr. vê a situação da psicanálise no ano 2000, com essa crescente tendência biologizante?

Sigmund Freud: É mesmo? Começou de novo? Bem, sessenta anos de além-túmulo não deixam a gente propriamente atualizado. Veja, a psicanálise cresceu num campo muitíssimo restrito. No início, tinha apenas um único objetivo — o de compreender algo da natureza daquilo que era conhecido como doenças nervosas ‘funcionais’, com vistas a superar a impotência que até então caracterizara seu tratamento médico. Os neurologistas daquele período haviam sido instruídos a terem um elevado respeito por fatos químico-físicos e patológico-anatômicos e estavam sob a influência dos achados de Hitzig e Fritsch, de Ferrier, Goltz e outros, que pareciam ter estabelecido uma vinculação íntima e possivelmente exclusiva entre certas funções e partes específicas do cérebro. Eles não sabiam o que fazer do fator psíquico e não podiam entendê-lo. Deixavam-no aos filósofos, aos místicos e — aos charlatães; e consideravam não científico ter qualquer coisa a ver com ele. Por conseguinte, não podiam encontrar qualquer abordagem aos segredos das neuroses, e, em particular, da enigmática ‘histeria’, que, na verdade, era o protótipo de toda a espécie (1). Então parece que continua... Oh, Himmel! Por que os homens precisam repetir as mesmas bobagens indefinidamente? Bem.. ops, ia dizendo que "eu explico", he, he, he. Ainda bem que não estou vivo para ver!

D.S. - Estarei percebendo na sua posição uma certa animosidade à psiquiatria biológica, como estão chamando agora?

S:F. - Isso seria contrariar toda uma vida, Jamais me opus a qualquer tipo de pesquisa científica, às excursões do pensamento em busca do entendimento dos fatos. Acho que esse pessoal sempre foi e será importante. Falando de animosidade entre nós, lembre-se de que o fluxo sempre teve o sentido inverso. Agora...bem, pra falar a verdade, tem uma coisa que não consigo engolir... é que cada vez estão ouvindo menos os pacientes. E quando ouvem é com uma tabelinha na mão, marcando quadradinhos como quem faz um rol de roupa. Mas tenho um ex-paciente e grande amigo que está do lado de cá que pode falar de camarote sobre isso, aliás de divã. Segue-me por toda a parte e é fiel como um cão. Eu disse cão? Quase acertei. Gostaria que falasse por mim, caro "Homem dos Lobos".

Homem dos Lobos - Boa noite. Sobre esse assunto, gostaria de lembrar ao leitor a desolada situação de um neurótico nesse período que precedia a psicanálise.(...) Já que nada se sabia dessas coisas, só duas explicações eram possíveis: uma era a do leigo, que considerava o aumento da intensidade do afeto como sendo desproporcional à situação geral; tal explicação dizia que o neurótico exagerava tudo. A outra, do neurologista ou do psiquiatra, atribuía o psíquico e o emocional ao físico e tentava persuadir o paciente que sua doença se devia a um transtorno funcional do sistema nervoso. O neurótico ia ao médico com o desejo de abrir seu coração para ele e ficava amargamente desiludido quando o médico apenas ouvia desinteressadamente os problemas que tanto o perturbavam.; nem vamos falar em tentar entendê-los. Mas o que para o médico não era mais que o produto adicional e carente de importância de um estado objetivamente grave, para o neurótico era uma profunda experiência íntima. E aí não podia haver contato real entre o médico e o paciente; o tratamento das enfermidades mentais parecia ter chegado a um beco sem saída.(2).

S.F. - (exaltado) E não era qualquer idiota ou incompetente não! Estamos falando de Kraepelin! O grande Kraepelin! Escreva uma história da Psiquiatria que não considere Kraepelin uma figura fundamental e pode jogá-la no lixo, pois está absolutamente furada!

H. d. L. - Pois é, consultei um número considerável dos neurologistas mais famosos, como o professor Ziehen em Berlim e o professor Kraepelin em Munique, sem que meu estado melhorasse absolutamente. O professor Kraepelin, mundialmente conhecido, teve a honestidade necessária para confessar seu fracasso. Finalmente me explicou que havia errado o diagnóstico. Quando lhe perguntava o que deveria fazer então, respondia sempre: "Sabe como é que é, cometi um erro"(2).

S.F. - Bonito essa humildade dele... Pô!... sempre admirei esse cara.

H. d. L. - Então fui encaminhado pra esse barbudo aí. A atitude dele e a forma como me escutava o diferenciava de maneira surpreendente de seus famosos colegas a quem havia conhecido até então e em quem havia encontrado uma total carência de compreensão psicológica profunda. No nosso primeiro encontro tive a sensação de me encontrar frente a uma grande personalidade(2).

S.F.- Sem confetes, bitte!

H. d. L. - Imediatamente percebi que ele descobrira uma região inexplorada da alma humana e que um mundo novo se abriria para mim se fosse capaz de seguí- lo por essa trilha (2).

D. S. - Mas que interessante! Nunca vi isso, estou entrevistando o fantasma de um médico e ele traz o fantasma de um paciente junto!

S.F. - Pois é, tocou no ponto-chave agora. Vou confessar uma coisa com exclusividade: o que mais me orgulho de ter feito, minha maior contribuição não foi nenhuma dessas que dizem por aí. Foi botar os pacientes pra falar, e ouvi-los atentamente. Pronto, é isso. Não é um grande segredo. Os meus pacientes falavam. Meus livros estão cheios da fala deles. Tem livros e livros sobre o que os pacientes falaram sobre mim! Conhece algum outro médico que fez com que se ouvissem os pacientes sobre ele? Esse mérito é meu, e o boi não lambe! Olhe, quando um redemoinho traz até aqui uma dessas revistas indexadas, cheias de estudos duplo-cegos, eu leio (continuo lendo tudo o que me chega): N= 173. Imediatamente me dá uma vontade louca de chegar e dizer: ô n.º 92, vem cá, sentaí, cara, me fala da sua filhinha linda, do grande amor da sua vida, do dia em que chorou porque seu cachorro morreu, da sua primeira brochada, qualquer coisa que nos faça cúmplices na nossa humanidade!

D.S. - Mas o Sr. não teme então que com esse posicionamento a psicanálise não seja considerada científica e fique de fora do campo da medicina, ou dos métodos de tratamento ditos científicos?

S.F. - E será considerada o que? Humorismo? Literatura? Poesia? Taí, gostei de poesia. E quem serei eu? Dante? João Cabral? Fernando Pessoa? Bom, nada mau Fernando Pessoa. Aliás o reconhecimento público do meu trabalho só começou naquela noite gelada de 6 de dezembro de 1907 quando, na casa do meu amigo Heller li "O poeta e os devaneios" (3) para uma platéia muito especial: Hermann Bahr, August Forel, Thomas Masarik, Hermann Hesse, Arthur Shnitzler, Jakob Wassermann, é pouco?. No outro dia, Die Zeit, que fingia me ignorar, publicou uma resenha bastante favorável. A poesia nunca será má companhia para a psicanálise. Saiba, por outro lado, que não considero absolutamente conveniente para a psicanálise ser devorada pela medicina e encontrar seu último lugar de repouso num livro de texto de psiquiatria sob a epígrafe ‘Métodos de Tratamento’, juntamente com procedimentos tais como sugestão hipnótica, auto-sugestão e persuasão, que, nascidas da nossa ignorância, têm de agradecer à indolência e à covardia da humanidade por seus efeitos efêmeros. Merece melhor destino e, pode-se esperar, o terá. Como uma ‘psicologia profunda’, uma teoria do inconsciente mental, pode tornar-se indispensável a todas as ciências que se interessam pela evolução da civilização humana e suas principais instituições como a arte, a religião e a ordem social. Em minha opinião ela já proporcionou a essas ciências considerável ajuda na solução de seus problemas. Mas essas são apenas pequenas contribuições em confronto com o que poderia ser alcançado se historiadores da civilização, psicólogos da religião, filósofos e assim por diante concordassem em manejar o novo instrumento de pesquisa que está a seu serviço. O emprego da análise para o tratamento das neuroses é somente uma das suas aplicações; o futuro talvez demonstre que não é o mais importante. Seja como for, seria errôneo sacrificar todas as outras aplicações a essa única, só porque diz respeito ao círculo de interesses médicos (4).

D.S. - Pode-se deduzir daí que a sua opinião é de que qualquer pessoa pode praticar a psicanálise?

S.F. - Sim e não. Em 1926 defendi Reik de um processo de charlatanismo que respondia só por não ser médico. Se considerarmos a obrigatoriedade de uma educação formal, registro em conselho, sim, qualquer pessoa pode. Se considerarmos a necessidade um treinamento específico, não. Não defenderia Reik se ele não estivesse conosco, estudando e praticando seriamente a psicanálise. Por isso entendo ter uma formação específica, que inclui necessariamente estar dos dois lados dessa dupla: ser tratado e tratar. Aprender psicanálise teoricamente é piada. Equivale a querer matar a fome lendo o cardápio. Se os representantes das várias ciências mentais devem estudar a psicanálise a fim de ser capazes de aplicar seus métodos e ângulos de abordagem ao seu próprio material, não lhes será suficiente parar de repente nos achados que são formulados na literatura analítica. Eles devem aprender a análise da única maneira possível — submetendo-se eles próprios a uma análise. Os neuróticos que necessitam de análise contariam assim com a companhia de uma segunda classe de pessoas, que aceitam a análise por motivos intelectuais, mas que sem dúvida também acolherão o aumento da capacidade que incidentalmente alcancem. Para efetuar essa análise far-se-á necessário grande número de analistas, para os quais qualquer conhecimento médico terá particularmente pouca importância. Mas esses ‘analistas didatas’ — vamos chamá-los assim — precisarão ter tido uma educação especificamente cuidadosa. Se se quiser que ela não fique tolhida, eles devem receber a oportunidade de colher experiência de casos instrutivos e informativos; e visto que pessoas saudáveis, às quais também falta o motivo da curiosidade, não se apresentam para análise, é mais uma vez somente com os neuróticos que será possível aos analistas didatas — sob cuidadosa supervisão — ser educados para a sua atividade não-médica subseqüente. Tudo isso, contudo, requer certa dose de liberdade de movimento, não sendo compatível com restrições mesquinhas (4).

D.S.: Noto que o Sr. dá enorme importância ao trabalho direto com doentes para a formação do analista. Eu pergunto: só com neuróticos, ou com psicóticos também?

S.F.: Claro que com psicóticos também! Está aí (pelo menos estava) o Dr. Bleuler de Zurich que não me deixa mentir. Aliás, cara legal pra caramba esse Eugen, deu a maior força quando eu estava na pior... Eu penso, sobre isso, que a patologia, tornando as coisas maiores e mais toscas, pode atrair nossa atenção para condições normais que de outro modo nos escapariam. Onde ela mostra uma brecha ou uma rachadura, ali pode normalmente estar presente uma articulação. Se atiramos ao chão um cristal, ele se parte, mas não em pedaços ao acaso. Ele se desfaz, segundo linhas de clivagem, em fragmentos cujos limites, embora fossem invisíveis, estavam predeterminados pela estrutura do cristal. Os doentes mentais são estruturas divididas e partidas do mesmo tipo. Nem nós mesmos podemos esconder-lhes um pouco desse temor reverente que os povos do passado sentiam pelo insano. Eles, esses pacientes, afastaram-se da realidade externa, mas por essa mesma razão conhecem mais da realidade interna, psíquica, e podem revelar-nos muitas coisas que de outro modo nos seriam inacessíveis(5). É porisso que eu repito: OUÇAM-NOS! Não há outra maneira de aprender! Quando uma pessoa faz análise, está na verdade ouvindo o psicótico dentro de si mesma!

D.S.: Permita-me uma curiosidade, Professor: como é, depois de morrer, encontrar os antigos rivais e desafetos, é mais fácil se relacionar por aí?

S.F.: Ah! Muito mais. Quase não discutimos. Deixamos o tempo passar. Tempora edax rerum!. Até com Stekel, a quem chamei de mau-caráter por escrito, tenho boas relações. À distância, claro. Outro dia encontrei o Tausk, o Victor Tausk. Pedi perdão por ter feito aquela armação com a Helen Deutsch que culminou no suicídio dele.

D.S.: Foi mesmo? E ele?

S.F.: Ah, o galego é fogo! Continua o mesmo. Disse que era muito fácil me perdoar, mas duvidava que eu conseguisse perdoá-lo por ter dormido com a Lou Salomé.

D.S.: Ih! Pegou pesado!

S.F.: Hahahahaha!! Arranca-rabo entre psicanalistas é fogo!! Uma das coisas boas de morrer é que o humor melhora muito!

D.S.: Hahaha! Mas voltando à terra, o Sr. temeu algum dia que a psicanálise se tornasse uma coisa digamos, mercantilista, ou algo assim? Na grande maioria dos países é exclusividade dos ricos. Isso não o constrange? Por aqui corre a piada de que a psicanálise só tem que ser paga por que o Sr. era judeu.

S.F.: Essa é velha, uma piadinha nazistóide que o Sachs vivia repetindo! Dei-lhe uns bons cascudos na careca por causa disso. Outras vezes, limitava-me a dizer: "Hans, você hoje está um Sachs!". Hahahaha! Era infame mas eu ria muito. Acontece o seguinte: um analista não discute que o dinheiro deve ser considerado, em primeira instância, como meio de autopreservação e de obtenção de poder, mas sustenta que, ao lado disto, poderosos fatores sexuais acham-se envolvidos no valor que lhe é atribuído. Ele pode indicar que as questões de dinheiro são tratadas pelas pessoas civilizadas da mesma maneira que as questões sexuais — com a mesma incoerência, pudor e hipocrisia. O analista, portanto, está determinado desde o princípio a não concordar com esta atitude, mas, em seus negócios com os pacientes, a tratar de assuntos de dinheiro com a mesma franqueza natural com que deseja educá-los nas questões relativas à vida sexual. Demonstra-lhes que ele próprio rejeitou uma falsa vergonha sobre esses assuntos, ao dizer-lhes voluntariamente o preço em que avalia seu tempo. O bom senso comum, ademais, adverte-o a não permitir que grandes somas de dinheiro se acumulem, mas a solicitar pagamento a intervalos regulares bastante curtos — mensalmente, talvez. (Constitui fato conhecido que o valor do tratamento não se realça aos olhos do paciente se forem pedidos honorários muito baixos.) Esta, naturalmente, não é a prática usual dos especialistas em nervos e outros médicos em nossa sociedade européia. Mas o psicanalista deve colocar-se na posição do cirurgião, que é franco e caro por ter à sua disposição métodos de tratamento que podem ser úteis.

Parece-me mais respeitável e eticamente menos objetável reconhecer os próprios direitos e necessidades reais do que, como ainda é costume entre os médicos, desempenhar o papel do filantropo desinteressado — posição que não se pode, na realidade, ocupar, sob pena de ficar-se secretamente prejudicado, ou queixar-se em alta voz da falta da consideração e do desejo de exploração evidenciado pelos pacientes. Ao fixar os honorários, o analista deve também considerar o fato de que, por mais que trabalhe, nunca poderá ganhar tanto quanto outros especialistas médicos. Pela mesma razão, deve também abster-se de fornecer tratamento gratuito e não fazer exceções em favor de colegas ou suas famílias. Esta última recomendação parecerá uma transgressão às vantagens profissionais. Deve-se lembrar, contudo, que um tratamento gratuito significa muito mais para um psicanalista do que para qualquer outro médico; significa o sacrifício de uma parte considerável — um sétimo ou um oitavo, talvez — do tempo de trabalho de que dispõe para ganhar a vida, durante um período de muitos meses. Um segundo tratamento gratuito efetuado ao mesmo tempo privá-lo-ia de um quarto ou de um terço de sua capacidade de ganho, o que seria comparável ao prejuízo infligido por um grave acidente.

Surge então a questão de saber se a vantagem obtida pelo paciente não contrabalançaria, até certo ponto, o sacrifício feito pelo médico. Posso aventurar-me a formar julgamento sobre isto, visto que, durante dez anos ou mais separei, uma hora por dia, e às vezes duas, para tratamentos gratuitos, porque desejaria, a fim de penetrar nas neuroses, trabalhar frente a tão pouca resistência quanto possível. As vantagens que busquei por este meio não apareceram. O tratamento gratuito aumenta enormemente algumas das resistências do neurótico — em moças, por exemplo, a tentação inerente à sua relação transferencial, e, em moços, sua oposição à obrigação de se sentirem gratos, oposição oriunda de seu complexo paterno e que apresenta um dos mais perturbadores obstáculos à aceitação de auxílio médico. A ausência do efeito regulador oferecido pelo pagamento de honorários ao médico torna-se, ela própria, muito penosamente sentida; todo o relacionamento é afastado do mundo real e o paciente é privado de um forte motivo para esforçar-se por dar fim ao tratamento.

Pode-se estar muito longe da visão ascética do dinheiro como sendo uma maldição e ainda lamentar que a terapia analítica seja quase inacessível às pessoas pobres, tanto por razões externas quanto internas. Pouco se pode fazer para remediar isto. (...) No que concerne às classes médias, a despesa envolvida na psicanálise é excessiva apenas na aparência. Inteiramente à parte do fato de nenhuma comparação ser possível entre a saúde e a eficiência restauradas, por um lado, e um moderado dispêndio financeiro por outro, quando adicionamos os custos incessantes das casas de saúde e do tratamento médico e contrastamo-los com o aumento de eficiência e de capacidade de ganhar a vida que resulta de uma análise inteiramente bem sucedida, temos o direito de dizer que os pacientes fizeram um bom negócio. Nada na vida é tão caro quanto a doença — e a estupidez.(6).

D.S.: O Sr. defende os psicanalistas como se fosse pai de todos eles. A psicanálise foi mesmo criação sua ou de Breuer? Ele nunca reivindicou isso?

S.F.: Seja como for, não tem grande importância que a história da psicanálise seja considerada como tendo início com o método catártico ou com a modificação que nele introduzi; menciono esse detalhe pouco interessante simplesmente porque certos adversários de psicanálise têm o hábito de lembrar vez por outra que, afinal de contas, a arte da psicanálise não foi invenção minha e sim de Breuer. Isto só acontece, naturalmente, quando seus pontos de vista permitem que eles vejam na psicanálise algo merecedor de atenção, pois, quando há uma rejeição absoluta, nem se discute que a psicanálise é obra somente minha. Que eu saiba, a grande participação que teve Breuer na criação da psicanálise jamais fez cair sobre ele o equivalente em críticas e injúrias. Como há muito já reconheci que provocar oposição e despertar rancor é o destino inevitável da psicanálise, cheguei à conclusão de que devo ser eu o verdadeiro criador do que lhe é mais característico. Alegra-me poder acrescentar que nenhuma dessas tentativas de minimizar meu papel na criação desta tão difamada psicanálise jamais partiu de Breuer, nem contou sequer com seu apoio(7).

D.S.: Permita-me uma última curiosidade: aquela história do charuto às vezes ser apenas um charuto, o Sr. disse mesmo ou é apenas folclore?

S.F.: Eu disse mesmo, mas às vezes nego. Eu estava fazendo compras, distraído, meditando sobre a razão de nos supermercados vienenses não haver um só Apffellstrudel decente, e veio uma mulher "gorda e patusca como uma viúva machadiana", diria Nelson Rodrigues, e me perguntou aquela bobagem sobre o meu charuto ser um símbolo fálico e coisa e tal. Quando se é Freud todo mundo fica querendo interpretar alguma coisa. Pensei em mandá-la introduzir o charuto onde melhor lhe satisfizesse a libido, mas me contive e saí com aquela. Nego ou confirmo conforme a conveniência. E tenho certeza que em menos de cem anos serei uma figura folclórica.

Para o barbudo velho de Viena

que deu voz aos pacientes,

que me ensinou a ouvi-los,

que deu voz a mim, enquanto paciente,

Feliz Aniversário!!

C.D.

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As partes em itálico foram psicografadas pelo repórter. As outras falas de Freud e do Homem dos Lobos vem de:

 

  1. Uma breve descrição da psicanálise, 1923 (KURZER ABRISS DER PSYCHOANALYSE)
    TRADUÇÃO INGLESA: ‘Psychoanalysis: Exploring the Hidden Recesses of the Mind’
    Ed. Std. Bras., IMAGO, VOL XIX
  2. El Hombre de los Lobos por el Hombre de los Lobos - Sel., Notas, Introd. e Cap., de Muriel Gardiner - Ediciones Nueva Visión - Buenos Aires - 1976
  3. Escritores criativos e devaneios, 1907 (DER DICHTER UND DAS PHANTASIEREN)
    TRADUÇÃO INGLESA:‘ The Relation of the Poet to Day-Dreaming
    Ed. Std. Bras., IMAGO, VOL IX
  4. A questão da análise leiga: conversações com uma pessoa imparcial, 1926 (DIE FRAGE DER LAIENANALYSE) - Unterredungen mit einem Unparteiischen
    TRADUÇÃO INGLESA: The Problem of Lay-Analyses
    Ed. Std. Bras., IMAGO, VOL XX
  5. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise - conferência XXXI - A dissecção da Personalidade Psíquica, 1933 - (NEUE FOLGE DER VORLESUNGEN ZUR EINFÜHRUNG IN DIE PSYCHOANALYSE )
    TRADUÇÃO INGLESA: New Introductory Lectures on Psycho-Analysis
    Ed. Std.. Bras., IMAGO, VOL XXII
  6. Sobre o início do tratamento - novas recomendações sobre a técnica da psicanálise, 1913 - ZUR EINLEITUNG DER BEHANDLUNG
    TRADUÇÃO INGLESA: ‘Further Recommendations in the Technique of Psycho-Analysis: On Beginning the Treatment. The Question of the First Communications. The Dynamics of the Cure’
    Ed. Std. Bras. IMAGO, VOL XII
  7. A história do Movimento Psicanalítico, 1914 ZUR GESCHICHTE DER PSYCHOANALYTUSCHEN BEWEGUNG
    (b) TRADUÇÃO INGLESA: "The History of the Psychoanalytic Movement"
    Ed. Std. Bras., IMAGO, VOL XIV 

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