Janeiro de 2022 – Vol. 27 – Nº 1

Hérika Juliana De Araújo Lucena

Francisco Pascoal Júnior

Alfredo Cataldo Neto

 

RESUMO

Os maus-tratos na infância são um fator importante associado a resultados adversos na saúde mental, incluindo os transtornos ansiosos. O objetivo deste estudo foi avaliar a influência da ocorrência e características dos maus-tratos na infância e a manifestação clínica de transtornos de ansiedade em idosos.

Neste estudo transversal, idosos de bairros socioeconômicos desfavorecidos de Porto Alegre-RS, Brasil (n = 274), completaram o Questionário de Trauma na Infância (CTQ) e a Minientrevista Neuropsiquiátrica Internacional 5.0 (MINI plus).

Os transtornos de ansiedade foram relacionados a maus-tratos na infância, outros transtornos psiquiátricos, condições financeiras desfavorecidas e poucos anos de escolaridade.

Esses achados sustentam a hipótese de que os maus-tratos na infância estão associados a transtornos ansiosos em idosos e a níveis específicos de condições financeiras e escolares. Esses resultados sugerem que a melhoria das condições sociais não adaptativas na infância pode prevenir transtornos de ansiedade em idosos.

 

Palavras-chave: Maus-tratos na infância. Transtornos psiquiátricos e de ansiedade. Saúde pública. Idosos.

 

 

 

ABSTRACT

 

Child maltreatment is a key factor associated with adverse mental health outcomes, including anxiety disorders. The aim of this study was to evaluate the influence of the occurrence and characteristics of maltreatment in childhood and the clinical manifestation of anxiety disorders in the elderly.

In this cross-sectional study, elderly people from disadvantaged socioeconomic neighborhoods of Porto Alegre- RS, Brazil (n = 274) completed the Childhood Trauma Questionnaire (CTQ) and the Mini International Neuropsychiatric Interview 5.0 (MINI plus, Brazilian version).

Anxiety disorders were related to maltreatment in childhood, other psychiatric disorders, underprivileged financial conditions, and few years of schooling.

These findings support the hypothesis that childhood maltreatment is associated with anxiety disorders in the elderly and with specific levels of financial and educational conditions. These results suggest that improving maladaptive social conditions in childhood can prevent anxiety disorders in the elderly.

 

Keywords: Child maltreatment. Psychiatric and anxiety disorders. Public health. Elderly.

 

INTRODUÇAO

Maus-tratos na infância são um problema social universal que frequentemente exercem um impacto negativo devastador sobre as crianças, não apenas na infância, mas durante toda a vida (AL ODHAYANI, 2013). Embora a representação de crianças maltratadas nos meios de comunicação retrate graficamente edemas, queimaduras, traumas cerebrais, abandono e desnutrição, um conjunto crescente de pesquisas sugere que não apenas os danos físicos, mas também os danos emocionais que acompanham atos abusivos e negligentes podem resultar em efeitos prejudiciais significativos e de longo prazo para a criança. Maus-tratos nos primeiros cinco anos de vida podem ser particularmente danosos, devido à vulnerabilidade das crianças pequenas e ao fato de que os primeiros anos de vida se caracterizam por crescimento neurobiológico e psicológico mais rápido do que os anos subsequentes (HUSSEY, 2006).

Em termos de consequências psicológicas da violência infantil no curso da vida do adulto, estudos mostram a persistência do chamado “legado” da violência. MARTSOLF (2015) conduziu um estudo sobre a influência das adversidades na infância no curso da vida dos sobreviventes de abuso sexual infantil e constataram que todos trazem algum legado. Esse legado é passado para a nova família tanto em termos de rejeição dos padrões de violência quanto à perpetração. As autoras ressaltam a importância da atuação das enfermeiras, pois detectaram que os adultos permaneciam com dificuldades de confiar em outros. O estudo de BARKER (2015), realizado no Brasil, México e Chile, mostrou que “os homens que foram testemunhas da violência contra suas mães – por parte de seus parceiros homens – durante a infância exerceram mais violência física contra parceiras íntimas em algum momento da vida do que aqueles que não foram expostos à violência”.

Os maus-tratos na infância estão associados a um espectro diverso de consequências psiquiátricas. Em crianças e adolescentes, aumentam o risco de problemas comportamentais, incluindo comportamento internalizado (ansiedade, depressão) e externalizado (agressão, atuação). Crianças que sofrem maus-tratos possuem um risco moderadamente aumentado de depressão e ansiedade na adolescência e na idade adulta (razões de chance ajustadas variando de 1,3 a 2,4), que irá espelhar em parte o contexto familiar no qual os maus-tratos ocorreram (CURRIE, 2010). Mas e na velhice? Existe essa relação?

Dessa forma, há alguma relação entre os maus tratos na infância e a ocorrência de distúrbios psiquiátrico e ansiosos na idade senil? O que há de consenso sobre essas temáticas na literatura nacional e internacional?

 

 

REVISÃO DA LITERATURA

Epidemiologia do envelhecimento

O Brasil está passando, em termos demográficos, por um período de grandes transformações que terão um peso importante para a situação econômica e social do país nas próximas décadas. Após sucessivos anos de crescimento populacional, o país vem registrando quedas acentuadas da natalidade, o que determina um ritmo cada vez menor de aumento do contingente populacional. A redução do número de nascimentos vem acompanhada pela queda da mortalidade, esses dois componentes juntos intensificam o processo de Envelhecimento Populacional (OLIVEIRA, 2019).

Em 2025, o Brasil, provavelmente, será o 6º país em número de idosos em todo o planeta. Dessa forma, evidencia-se uma alteração no perfil de saúde da população, com elevação das doenças crônico-degenerativas não-transmissíveis (DCNT), que hoje são as principais responsáveis por incapacidades e mortalidade na população brasileira. Esta modificação acelerada traz um enorme desafio para o sistema de saúde brasileiro, que precisa encontrar soluções para o tratamento, manejo, diagnóstico, prognóstico e para os altos custos.

 

Alterações patológicas no envelhecimento

O aumento da longevidade, embora seja um aspecto positivo, na maioria das vezes, traz consigo um acúmulo de disfunções e morbidades, que atingem o organismo de forma sistêmica, ocasionando o surgimento de doenças crônicas, o que onera os indivíduos, os sistemas de saúde e previdenciário (ALLEGRI, 2007). Dentro do conjunto de doenças crônicas, os transtornos psiquiátricos e sobretudo os ansiosos ocupam papel de destaque, pois são altamente incapacitantes e afetam negativamente a autonomia, independência e qualidade de vida dos idosos portadores.

O processo de envelhecimento é um processo natural, no qual são observados uma série de eventos fisiológicos responsáveis por uma ampla cadeia de alterações e mudanças na capacidade física e mental do indivíduo. Estas alterações fisiológicas ocorrem de forma gradativa, natural, associada ou não à ocorrência de patologias que se manifestam com o envelhecimento.

Por outro lado, em muitos casos, determinados fatores de natureza exógena, ou seja, fatores ambientais, sociais, comportamentais, podem trazer importante contribuição no processo de envelhecimento, promovendo impactos para a sua saúde e qualidade de vida.

Segundo destacado por Ponce et al (2019), além dos problemas biológicos e fisiológicos, o envelhecimento causa uma diminuição das funções do sistema nervoso central, relacionadas especialmente com o aumento dos transtornos psiquiátricos em adultos idosos. Entre essas doenças relacionadas à idade estão os transtornos ansiosos.

 

Maus tratos na infância

O abuso infantil, ou maltrato infantil, é o abuso físico e/ou psicológico de uma criança, por parte de seus pais – sejam biológicos, padrastos ou adotivos – por outro adulto que possui a guarda da criança, ou mesmo por outros adultos próximos da criança (ALLEN, 2008).

Maus-tratos emocionais incluem, de forma intencional, provocar sentimentos de culpa, vergonha ou medo de atender às necessidades emocionais do perpetrador; persuadir as crianças a praticar atos impróprios; denegrir ou destruir coisas que valorizam; ou colocando-os em situações passivas, como testemunhar violência Inter parental (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2013).

Negligência física é definida como a incapacidade de fornecer as necessidades básicas como comida, roupa limpa, abrigo, supervisão e cuidados odontológico e pediátrico. Negligência emocional é a incapacidade de prover as necessidades emocionais fundamentais, ser emocionalmente indiferente ao sofrimento das crianças, deixando de atender às suas necessidades sociais ou passando para as crianças a responsabilidade de gerir as situações que estão além de seu nível de maturidade ou capacidade. Alguns estudos também incluem a exposição a várias formas de disfunção familiar, como conviver com pais que abusam de substâncias (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2013).

 

 

 

Maus tratos na infância e transtornos psiquiátricos e ansiosos na velhice

De igual forma, uma série de estudos realizados especialmente ao longo dos últimos anos tem atribuído, como parte integrante deste grupo de fatores exógenos que interferem no processo natural de envelhecimento, a ocorrência de maus-tratos vividos na infância como um fator capaz de influenciar negativamente o aspecto psicológico do indivíduo e resultar no desencadeamento dos transtornos psiquiátricos na idade senil.

Conforme destacado por Takahashi et al (2018), os transtornos psiquiátricos – também conhecidos por transtornos mentais ou doença mental – são caracterizados por condições de anormalidade psíquica que gera intenso sofrimento, resultado de disfunções cerebrais que, de acordo com o grau de comprometimento intelectual, requerem ou não internação hospitalar. Conforme a visão de Ponce et al (2019), essas patologias mentais têm impactos econômicos, sociais e de saúde pública nas comunidades.

Estimativas apontam que ao menos 5,5 milhões de brasileiros apresentem transtornos psiquiátricos graves e persistentes e necessitam de cuidados intensivos e contínuos em saúde mental. Além disso, cerca de 22 milhões de pessoas que apresentam transtornos psiquiátricos leves ou moderados requerem algum tipo de tratamento ocasional ou contínuo em serviços especializados (TREICHEL et al, 2019).

A fobia é um transtorno psiquiátrico muito comum na atualidade, afetando todas as faixas etárias. Segundo De Vries et al (2019), este distúrbio é associado a altos níveis de comorbidade psiquiátrica. Nos casos com seu início precoce, a fobia pode ser um marcador inicial útil da psicopatologia internalizante, especialmente se generalizada para várias situações.

De igual forma, os transtornos de ansiedade são muito comuns na atualidade, atingindo muitas pessoas nas mais variadas idades e classes sociais. Por certo, tendo em vista a incidência de casos na atualidade, pode-se configurar estes como verdadeiros problemas de saúde pública. Na visão de De Oliveira et al (2017), os transtornos de ansiedade são responsáveis por importante custo social, tanto em função do sofrimento individual quanto em virtude dos custos sociais indiretos.

Zuardi (2017) citou que a síndrome do pânico é um dos transtornos de ansiedade mais conhecidos, que se caracteriza por ataques de pânico recorrentes acompanhados por uma persistente preocupação com ataques adicionais e alterações mal adaptativas do comportamento (Associação Americana de Psiquiatria – DSM-5). Sua etiologia ainda não é conhecida, mas deve envolver uma interação de fatores genéticos, de desenvolvimento e ambientais que resultam em alterações no funcionamento de algumas áreas cerebrais.

 

 

OBJETIVO

Estudar a influência da ocorrência e das características dos maus-tratos na infância no desenvolvimento e manifestação clínica dos transtornos psiquiátricos no idoso, com enfoque nos transtornos ansiosos, analisar os tipos de transtornos psiquiátricos e ansiosos mais frequentes; analisar a presença e a carga de maus-tratos na infância em idosos com e sem transtornos psiquiátricos e com e sem transtornos ansiosos; comparar a presença de maus-tratos entre idosos com e sem transtornos psiquiátricos e com e sem transtornos ansiosos em relação a escolaridade, estado civil e renda; e comparar os subtipos de maus-tratos na infância entre idosos com e sem transtornos psiquiátricos e com e sem transtornos ansiosos.

  

 

METODOLOGIA

Descritiva, transversal, de base populacional, com coleta prospectiva de dados, sendo 274 indivíduos com idade igual ou superior a 60 anos, cadastrados na Estratégia de Saúde da Família (ESF) do município de Porto Alegre-RS, Brasil. A coleta de dados ocorreu de março de 2016 a novembro de 2019.

Os critérios de inclusão adotados para os pacientes com transtornos ansiosos foram: indivíduos com mais de 60 anos; grupo racialmente misto; diagnóstico de transtornos ansiosos ou de sintomas ansiosos com base no CID-10 e DSM-5; ter assinado termo de consentimento livre e esclarecido; e ter um acompanhante.

A equipe de coleta constou de 5 médicos (3 psiquiatras, 1 neurologista e 1 geriatra). Da mesma forma, 3 profissionais da saúde que trabalhavam na área da gerontologia (2 psicólogos e 1 fonoaudióloga) fizeram as entrevistas com os informantes.

Instrumentos Utilizados: questionário geral, contendo informações sobre características sociodemoráficas, como dados de escolaridade, econômicos, de espiritualidade/religião e de saúde; MINI Plus 5; Neuropsychiatric Inventory Questionnaire (NPI-Q); Questionário Sobre Traumas na Infância (CTQ).

O projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da PUCRS e ao Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde do município de Porto Alegre, atendendo as Diretrizes e Normas Regulamentadoras em Pesquisa, conforme a Resolução 466/12 do CNS/MS.

RESULTADOS

Foram analisados os dados de 274 pacientes, 58 do sexo masculino (21,2%) e 216 do sexo feminino (78,8%). Quando comparada a prevalência de transtornos psiquiátricos por sexo, foi possível detectar uma diferença estatisticamente significativa entre homens e mulheres para depressão (P=0,004), transtorno de ansiedade generalizada (P=0,034) e a presença de algum transtorno (P<0,001). As mulheres têm maior frequência destes transtornos citados quando comparadas com os homens. Na Tabela 1, são apresentados estes resultados.

 

Tabela 1- Tabela comparativa dos transtornos entre os sexos.
  Masculino

n=58

Feminino

n=216

P
Depressão 19 (32,8) 119 (55,3) 0,004
Risco de suicídio 4 (7,4) 31 (14,9) 0,223
Mania 2 (3,6) 9 (4,4) 0,999
Hipomania 2 (0,9) 0,999
Transtornos ansiosos 5 (8,6) 31 (14,4) 0,347
Transtorno obsessivo compulsivo 2 (1,3) 0,999
Transtorno de estresse pós-traumático 12 (5,7) 0,075
Transtorno de ansiedade generalizada 6 (10,3) 52 (24,3) 0,034
Abuso de álcool 1 (1,7) 0,216
Algum dos transtornos 22 (37,9) 138 (64,2) <0,001
Dados apresentados pelo n (%) e comparados pelo teste de Qui-quadrado com correção de Yates.

P: valor-p (também chamado de nível descritivo ou probabilidade de significância). Quanto menor, maior o valor estatístico confiável do resultado encontrado

 

No Gráfico 1, é apresentada a relação do CTQ com ter atualmente, ou ter tido na vida algum transtorno psiquiátrico.

Gráfico 1. Gráfico da pontuação do CTQ para pacientes com e sem transtorno psiquiátrico.

 

Quando avaliada a correlação entre o número de transtornos psiquiátricos e o CTQ foi possível observar que houve uma correlação positiva, estatisticamente significativa e fraca entre o CTQ e o número de transtornos desenvolvidos atual ou no passado (rs=0,28; P<0,001).

Foi encontrada também uma diferença estatisticamente significativa entre os pacientes com e sem TAG (transtorno de ansiedade generalizada). No subtipo PA, houve pontuações maiores nos pacientes com TAG comparados com os pacientes sem TAG. E pontuações maiores foram obtidas nestes pacientes com TAG para o subtipo AS (sexual abuse ou abuso sexual).

Finalmente, quando comparados pacientes com algum transtorno em relação àqueles que não tem transtorno, houve diferenças nos subtipos PN, EA e PA, sendo as pontuações dos pacientes com algum transtorno mais altas que aqueles sem transtornos.

 

Tabela 2. Tabela da comparação dos subtipos de maus tratos na infância entre sujeitos com e sem transtornos psiquiátricos
PN P EA P EN P PA P AS P
Com Transtornos ansiosos 9 (6-14) 0,043 8 (6-15) 0,002 17 (14-17) 0,368 6 (5-12) 0,660 5 (5-5) 0,410
Sem Transtornos ansiosos 8 (5-11) 6 (5-9) 16 (14-17) 6 (5-8) 5 (5-5)
                     
Com TAG 9 (6-11) 0,072 6 (5-11) 0,416 17 (14-17) 0,793 6 (5-11) 0,006 5 (5-5) 0,013
Sem TAG 8 (5-11)   6 (5-9)   16 (14-17)   5 (5-8)   5 (5-5)  
                     
Com algum transtorno 9 (6-12) 0,001 6 (5-11) 0,011 16 (15-17) 0,612 6 (5-10) 0,020 5 (5-5) 0,280
Sem transtornos 7 (5-10)   6 (5-8)   17 (14-17)   5 (5-7)   5 (5-5)  
 

Dados apresentados pela mediana e intervalo interquartil (percentis 25 e 75) e comparados pelo teste de Mann Whitney.

TAG: Transtornos de ansiedade generalizada.

EA: emotional abuse (abuso emocional)
EN: emotional neglect (negligência emocional)
PA: physical abuse (abuso físico)
PN: physical neglect (negligência física)
AS: sexual abuse (abuso sexual)

P: valor-p (também chamado de nível descritivo ou probabilidade de significância). Quanto menor, maior o valor estatístico confiável do resultado encontrado.

 

No Gráfico 2, são apresentadas as pontuações para os subtipos de CTQ entre pacientes com e sem nenhum transtorno psiquiátrico.

Gráfico 2. Gráfico das pontuações dos subtipos de CTQ entre pacientes com e sem nenhum transtorno psiquiátrico.

 

Quando comparado o CTQ entre pacientes com ou sem transtornos psiquiátricos estratificando por categorias de escolaridade, houve uma diferença estatisticamente significativa na categoria de 1 a 5 anos. Sujeitos com 1 a 5 anos de escolaridade, na presença de transtorno tiveram pontuações mais altas de maus-tratos medidos através do CTQ quando comparados com aqueles sem transtornos (P=0,002). Nas outras categorias de escolaridade, apesar das pontuações de CTQ serem mais altas para aqueles com transtorno, esta diferença não foi estatisticamente significativa.

 

 

Tabela 3. Tabela da comparação do CTQ entre sujeitos com e sem transtorno psiquiátrico nas diferentes escolaridades.

Escolaridade (anos) Com transtorno Sem transtorno P
0 46 (39-59) 41 (39-48) 0,101
1-5 44 (40-51) 41 (37-45) 0,002
6-11 42 (38-52) 40 (37-44) 0,136
>11 44 (38-52) 40 (37-48) 0,184
CTQ descrito pela mediana e intervalo interquartil (percentis 25 e 75) e comparados pelo teste de Mann Whitney.

 

Os pacientes com renda inferior a 2 salários-mínimos tiveram uma mediana de 42 pontos (38 a 51), aqueles com renda entre 2 e 4 salários-mínimos tiveram mediana de 44 pontos (40-55) e aqueles com renda acima de 4 salários-mínimos, tiveram uma mediana de 38 (37-45 pontos), encontrando uma diferença estatisticamente significativa de pontuação no CTQ conforme a renda (P=0,006). Esta diferença foi detectada entre o grupo que ganha de 2 a 4 salários-mínimos e aqueles que ganham mais de 4, tendo estes últimos, pontuações menores de CTQ.

Na Tabela 4, foram comparados os pacientes com e sem transtorno psiquiátrico em relação ao estado civil, renda e CTQ. Houve uma pontuação mais alta de CTQ para renda e estado civil entre pacientes com transtorno, evidenciando uma carga maior de maus-tratos nesses indivíduos.

 

Tabela 4. Tabela comparativa de pacientes com e sem transtorno psiquiátrico.
  Com transtorno Sem transtorno P
Estado civil com companheiro, n (%) 50 (40,3) 45 (50,6) 0,179*
Renda, n (%)     0,856*
< 2 salários-mínimos 60 (55,0) 42 (56,0)  
2 a 4 salários-mínimos 34 (31,2) 21 (28,0)  
> 4 salários-mínimos 15 (13,8) 12 (16,0)  
CTQ, mediana (IIQ) 45 (39-54) 41 (37-45) < 0,001**
* teste de Qui-quadrado com correção de Yates; ** teste de Mann Whitney; IIQ: intervalo interquartil

 

A mediana de NPI para pacientes com transtorno foi de 8 pontos (1 a 24) e a dos pacientes sem transtorno foi de 3 pontos (0 a 12,8), tendo uma pontuação menor estatisticamente (P=0,022). Esta diferença está apresentada no Gráfico 3.

 

Gráfico 3. Gráfico da comparação do NPI entre pacientes com e sem transtorno psiquiátrico.

 

Após ajuste de um modelo com as variáveis sexo, renda, estado civil e CTQ, é possível observar que o sexo está relacionado com a presença de algum transtorno psiquiátrico independentemente da renda, estado civil e CTQ, assim como o CTQ está relacionado com a presença de algum transtorno psiquiátrico independentemente do sexo, do estado civil e a renda. Sexo e CTQ foram as duas variáveis que ficaram significativas no modelo. Mulheres tem 1,8 vezes a prevalência de transtorno psiquiátrico quando comparadas com homens independentemente das outras variáveis incluídas (Razão de Prevalência 1,8; Intervalo de 95% de confiança:1,2 a 2,8; P=0,007) e para um ponto de aumento no CTQ aumenta 1% a prevalência de transtorno psiquiátrico (Razão de Prevalência 1,01; Intervalo de 95% de confiança:1,00 a 1,02; P=0,005). As outras variáveis incluídas não se relacionaram de forma estatisticamente significativas.

Na Tabela 5, são apresentadas as frequências de transtornos ansiosos na amostra.

 

Tabela 5. Tabela de frequência de transtornos ansiosos
  n (%)
Pânico com agorafobia 11 (4,1)
Pânico sem agorafobia 4 (1,5)
Agorafobia 16 (6,1)
Fobia social 10 (3,7)
Fobia social generalizada 6 (60,0)
Algum Transtorno ansioso 36 (13,2)
 

 

Como apresentado na Tabela 2, pacientes com transtornos ansiosos têm maior carga de maus-tratos na infância do que pacientes sem transtornos ansiosos atuais ou na vida (P=0,005). Esta comparação é apresentada no Gráfico 4.

 

Gráfico 4. Gráfico da pontuação do CTQ para pacientes com e sem transtornos ansiosos.

 

Ao compararmos o CTQ por transtorno, os transtornos mais associados à maior carga de maus-tratos foram a agorafobia e a fobia social. Os pacientes com agorafobia, têm uma mediana de CTQ de 51,5 pontos (42,5-64,0) e os pacientes sem agorafobia têm uma mediana de 41,5 pontos (38,0 a 48,8), tendo diferença estatisticamente significativa (P=0,008). Os pacientes com fobia social, têm uma mediana de CTQ de 57,0 pontos (44,0-71,3) e os pacientes sem fobia social tem uma mediana de 42,0 pontos (38,0 a 49,0), tendo diferença estatisticamente significativa (P=0,015).

Como apresentado acima na Tabela 3, pacientes com transtornos ansiosos tiveram maiores pontuações de PN e EA do que pacientes sem transtornos ansiosos.

Ao analisar de forma estratificada por escolaridade, na categoria de 1 a 5 anos de escolaridade, pacientes com transtorno tiveram pontuações maiores de CTQ quando comparados com pacientes sem transtornos ansiosos e esta diferença foi estatisticamente significativa (P=0,002). Em outras categorias de escolaridade esta diferença não foi estatisticamente significativa. Estes resultados são apresentados na Tabela 6.

 

Tabela 6. Tabela da comparação do CTQ entre sujeitos com e sem transtornos ansiosos diferentes categorias de escolaridade.
Escolaridade (anos) Com transtornos ansiosos Sem transtornos ansiosos P
0 45 (37-61) 44 (39-55) 0,980
1-5 50 (43-67) 41 (38-46) 0,002
6-11 47 (40-63) 41 (37-48) 0,106
>11 41 (37-55) 42 (37-49) 0,900
CTQ descrito pela mediana e intervalo interquartil (percentis 25 e 75) e comparados pelo teste de Mann Whitney.

 

Na categoria de 1 a 5 anos de escolaridade, houve diferença estatisticamente significativa da carga de maus-tratos entre aqueles pacientes com e sem agorafobia (mediana de 52 versus mediana de 42 pontos; P=0,007). Também nesta categoria de escolaridade houve diferença estatisticamente significativa entre pacientes com e sem fobia social (mediana de 69 versus mediana de 42 pontos; P=0,002).

A mediana de NPI para pacientes com transtornos ansiosos foi de 7,5 pontos (2,0 a 31,5) e a dos pacientes sem transtornos ansiosos foi de 6,0 pontos (0 a 22,0), não havendo diferenças estatisticamente significativas entre pacientes com e sem transtornos ansiosos (P=0,384). Também não se relacionaram os diferentes tipos de transtornos ansiosos com o NPI. Como citado anteriormente, o NPI não se correlacionou com o CTQ.

Após ajuste de um modelo com as variáveis sexo, renda, estado civil e CTQ, é possível observar que só o CTQ está relacionado com a presença de transtornos ansiosos independente do sexo, do estado civil e a renda. Para um ponto de aumento no CTQ aumenta 3% a prevalência de transtornos ansiosos (Razão de Prevalência 1,03; Intervalo de 95% de confiança:1,01 a 1,05; P=0,010). As outras variáveis incluídas não se relacionaram de forma estatisticamente significativas.

  

DISCUSSÃO

Muitos estudos têm exposto, de forma clara, o impacto que adversidades durante tais períodos podem exercer sobre o estabelecimento de vulnerabilidades específicas ao desenvolvimento de transtornos mentais, conforme destacaram Costa et al (2019). De fato, esta é uma temática de grande relevância, que tem despertado cada vez mais o interesse não somente em medicina, mas em psiquiatria, psicossomática, entre outras especialidades.

Em relação ao nosso estudo, o questionário CTQ para obtenção dos dados foi semelhante ao utilizado por Nunes et al (2015), que consideram que este é um questionário de grande valia para mensurar diversas formas de eventos traumáticos, como abuso emocional, abuso físico, abuso sexual, negligência emocional e negligência física, sendo de grande eficiência para esta finalidade. Também, Liebschutz et al (2018), Innamorati et al (2016) e Dovran et al (2016) concordam que o CTQ é uma medida retrospectiva de trauma na infância que foi psicometricamente avaliada em diversas populações. Assim sendo, não há dúvidas de que esta é uma das ferramentas mais usadas e mais fidedignas para aplicação em estudos que avaliam os impactos dos maus tratos na infância sobre saúde e qualidade de vida dos indivíduos, sejam estes ainda na infância, na adolescência, na vida adulta ou senilidade.

Especificamente analisando a questão dos maus tratos na infância, estudos têm demonstrado que estes estão associados a traumas para a vida toda de uma pessoa, resultando em mudanças de formas diversas, atingindo todo o ciclo vital, sendo, portanto, de grande relevância tornar conhecidos os impactos e consequências que estes podem trazer na vida do ser humano nas idades mais avançadas. Conforme a visão de Nunes et al (2015), os maus tratos na infância podem ser entendidos como qualquer atitude, geralmente proveniente de um cuidador, que cause danos físicos e/ou psicológicos a crianças e adolescentes menores de 18 anos. Os abusos podem ser físicos, sexuais ou psicológicos. De acordo com a visão de Costa et al (2019), os eventos estressores precoces, bem como os abusos físico, sexual, emocional e as negligências física e emocional têm sido amplamente investigados, tendo sido encontradas diversas evidências e comprovação cientifica da associação com transtornos mentais diversos como depressão, transtorno bipolar, transtornos de ansiedade, esquizofrenia, abuso de substâncias, transtornos de personalidade e risco de suicídio.

Esta afirmação foi corroborada por Mello et al (2009), que afirmaram a existência, atualmente, de um número significativo de achados científicos pré-clínicos e clínicos derivados de paradigmas experimentais, que demonstram que o estresse precoce está relacionado à função do eixo hipotálamo-pituitária-adrenal e a estados psicológicos no indivíduo adulto, e como esta relação pode ser modulada por outros fatores. No estudo realizado por Costa et al (2019), os dados obtidos sugeriram que a presença do que chamaram de eventos estressores precoces tem sim o poder de influenciar o desenvolvimento de características da personalidade, que atuariam como fatores de vulnerabilidade importantes sobre o desenvolvimento de sintomas psiquiátricos.

O nosso estudo se centrou nas conseqüências e nos impactos que os maus tratos podem trazer ao idoso. A amostra utilizada para o desenvolvimento deste estudo foi composta por 274 idosos, com idade acima de 60 anos, sendo 21,2% de homens e 78,8% de mulheres. Foi possível observar que a amostra utilizada neste estudo é semelhante à amostra utilizada por Paulo et al (2019) que também realizaram o estudo somente com idosos, num total de 364 entre homens e mulheres. Diferentemente, o estudo de Schilling et al (2016), realizado na Alemanha, utilizou uma amostra bem maior, com 2504 participantes de variadas idades, não somente da terceira idade, enquanto o estudo de Tonmyr e Schields (2017) apresentou uma amostra muito maior, com 14.063 entrevistados com idades entre 18 e 76 anos, o que foge, de certa forma, da maioria dos estudos realizados na área envolvendo esta temática.

Em relação à variável sexo, nosso estudo apresentou uma amostra composta por 21,2% de homens e 78,8% de mulheres, diferentemente do estudo realizado por Innamorati et al (2016), que dividiram bem sua amostra, com um total de 206 homens e 265 mulheres, embora a amostra deste estudo não seja apenas de idosos, mas sim com indivíduos entre 16 e 80 anos. Já o estudo de Steiner et al (2017) utilizou uma amostra predominantemente feminina, com um total de 95,3% de mulheres participantes.

Observou-se também que a maioria dos estudos encontrados na literatura traz uma abrangência grande no fator idade da amostra, sendo realizada a análise a partir da adolescência até a idade senil. Isto foi observado no estudo realizado por Hovens et al (2016), na qual os autores utilizaram uma amostra com faixa etária bem variada, compreendendo indivíduos dos 18 aos 65 anos, e também no estudo realizado por Schilling et al (2016), que utilizaram uma amostra que compreendeu a faixa etária entre os 14 e os 92 anos, ou seja, uma ampla faixa etária, enquanto o estudo de Innamorati et al (2016) utilizou a amostra com idades entre os 16 e os 80 anos.

Analisando os resultados do nosso estudo, foi possível observar que as mulheres têm maior frequência de transtornos, com diferença expressiva, em relação aos homens. Expondo a predominância do fator sexo, observou-se que as mulheres têm 1,8 vezes a prevalência de transtorno psiquiátrico quando comparadas com homens independentemente das outras variáveis incluídas, conforme será destacado mais adiante.

Mostra-se relevante, em nosso estudo, que alguns transtornos, mais precisamente o transtorno de estresse pós-traumático e o transtorno obsessivo compulsivo foram diagnosticados em mulheres, enquanto nos homens, nenhum destes transtornos foi observado. Esta constatação é especialmente importante, uma vez que, assim, observa-se a maior frequência destes transtornos ansiosos em mulheres. Analisando mais a fundo esta constatação e somando-se o número de idosas com pelo menos 1 destes 3 transtornos, obtêm-se um total de 16 mulheres para nenhum homem com pelo menos 1 destes transtornos.

Isto é particularmente importante ao observarmos que especialmente o transtorno de estresse pós-traumático e o transtorno obsessivo compulsivo são sobremodo importantes, sendo dois dos mais comuns que atingem a população em geral. Borges e Dell´Aglio (2008) citaram um estudo de neuroimagem em adultos e crianças, vítimas de abuso sexual, com transtorno de estresse pós-traumático que revelam a presença de alterações no hipocampo, no giro cingulado, no corpo caloso, na amígdala, no córtex pré-frontal e na simetria hemisférica, sendo que prejuízos neuropsicológicos podem ainda permanecer na vida adulta. Particularmente, tais áreas parecem estar envolvidas no processamento da memória traumática e nas respostas de medo.

Agora, analisando especificamente a relação entre traumas vivenciados na infância e a presença ou não de transtornos psiquiátricos, foi possível detectar que aqueles pacientes que se apresentaram com depressão, com risco de suicídio, com transtornos ansiosos, como transtorno de ansiedade generalizada ou algum outro transtorno tiveram pontuações (maior carga de maus-tratos) significativamente maiores do que aqueles pacientes sem os transtornos. Esse resultado pode ser uma evidência significativa e importante da relação existente entre o episódio ou os eventos cotidianos de maus tratos vividos na infância e a maior probabilidade do desenvolvimento de algum tipo de transtorno psiquiátrico ou mesmo mais de um transtorno psiquiátrico, seja na atualidade ou no passado.

Observou-se também que o tipo e natureza do abuso / maus-tratos sofrido na infância apresenta uma relação comprovada no tipo de transtorno apresentado. Corroborando com Schilling et al (2016), a partir do conhecimento específico dos maus tratos sofridos, pode-se ter e examinar as consequências psicológicas especificas que serão causadas a longo prazo. PN (negligência física) e EA (abuso emocional) esteve associado à ocorrência de transtornos ansiosos.

O transtorno de ansiedade generalizada esteve também associado a maiores pontuações no subtipo PA (abuso físico) e para o subtipo AS (abuso sexual). Observou-se ainda que o fator escolaridade, em nosso estudo, não teve influência importante sobre os impactos dos maus tratos na infância para a ocorrência de transtornos. Isto porque, em todas as escolaridades analisadas, observou-se pontuação mais alta de maus tratos em relação aos indivíduos com transtornos, que em relação aos indivíduos sem transtornos, o que não permite uma conclusão definitiva sobre esta variável.

Observou-se que o fato de ter recebido uma carga elevada de maus-tratos na infância mostrou relação com o desencadeamento de algum transtorno psiquiátrico e, em relação à presença de transtornos ansiosos e a correlação com as variáveis sexo, renda, estado civil e maus-tratos na infância, foi possível observar que somente a ocorrência de maus-tratos esteve relacionada com a presença de transtornos ansiosos, e não teve nenhuma relação com o sexo, estado civil e renda. Mesmo assim, há uma nítida e importante mudança estatística quando se fala em carga de maus-tratos, ocorrendo com maior intensidade em pessoas de menor renda salarial, escolaridade e sem companheiros.

Uma outra constatação importante e que pode ser motivo de novos estudos dentro desta temática, foi a conclusão obtida no estudo realizado por Paul et al (2019), onde os autores encontraram a possibilidade de transmissão dos impactos para gerações futuras, mais precisamente os pais que sofreram abusos e maus tratos na infância, ao crescerem desenvolvem transtornos psiquiátricos e ao gerarem filhos, transmitem características e possíveis associações homotípicas e heterotípicas aos seus descendentes, em um processo de continuidade geracional. No entanto, esta hipótese ainda requer mais estudos para sua comprovação, mas já abre novas perspectivas para o entendimento do processo.

Na visão de Mello et al (2009), o estresse precoce pode alterar a função do eixo hipotálamo-pituitária-adrenal assim como o comportamento, porém, o padrão da disfunção do eixo hipotálamo-pituitária-adrenal e a evolução psicológica na vida adulta refletem ambas as características do estressor e outros fatores modificadores. Também, no estudo de Radcliff et al (2019), os autores analisaram as experiências adversas (eventos traumáticos, causadores de estresse, agressões, humilhações, entre outros) na infância tendo estas como uma estrutura valiosa para a compreensão de associações entre maus-tratos na infância e disfunção familiar e, posteriormente, maus resultados para a saúde. Os autores analisaram a exposição à maus tratos na infância entre adultos que tiveram falta de moradia na infância, outro tipo de adversidade infantil. Os dados de 7.490 entrevistados foram ponderados para análises. Entre os 215, entrevistados que relataram falta de moradia na infância, 68,1% relataram ter quatro ou mais experiências adversas na infância. Por outro lado, apenas 16,3% dos entrevistados que não relataram falta de moradia na infância relataram 4 ou mais experiências adversas na infância. Concluiu-se que aqueles adultos que relataram falta de moradia na infância também relataram uma exposição significativamente maior a números e tipos de experiências traumáticas na infância do que os adultos que não relataram falta de moradia na infância. Para os autores, os resultados deste estudo podem ser importantes para informar indicadores adicionais na mensuração dos eventos adversos e traumáticos na infância e os impactos destes para a vida adulta.

Kotiaho et al (2019) afirmaram que a depressão se mostrou, frequentemente, acompanhada de comorbidades. Os autores analisaram as características, diagnósticos psiquiátricos e comorbidade psiquiátrica de pacientes da atenção primária que foram rastreados para depressão e encaminhados para tratamento de depressão. Os sujeitos do estudo eram pacientes da atenção primária, com idade ≥ 35 anos com sintomas depressivos (BDI-21> 9). Dos 705 sujeitos do estudo, 617 (87,5%) tiveram pelo menos um e 66,1% tiveram pelo menos dois diagnósticos psiquiátricos. O diagnóstico mais comum foi depressão (63,4%). Os próximos diagnósticos mais comuns foram transtorno de ansiedade generalizada (TAG) (48,1%) e transtorno do pânico (22,8%). Apenas 8,8% dos sujeitos do estudo apresentaram depressão sem outros transtornos psiquiátricos. Um total de 10% dos indivíduos tinha depressão e um transtorno de ansiedade generalizada (TAG). Também outras comorbidades psiquiátricas eram comuns. A idade foi inversamente associada ao diagnóstico psiquiátrico no M.I.N.I.

Apesar dos resultados aqui levantados serem relevantes, observou-se que, na literatura nacional, há uma grande carência de estudos que abordem esta temática em específico, priorizando-se o tema “maus-tratos” a fases tenras da vida humana e com um pouco maior de ênfase no período do adulto jovem. Observa-se, então, uma lacuna neste sentido, o estudo desse tema e suas consequências em idosos, e isso aponta para a necessidade da realização de mais estudos nesta área.

Foram estudadas as várias formas de violência praticadas, bem como a violência dentro da família e como romper com o silêncio denunciando tais abusos, além de compreender a atuação da sociedade e do Estado, junto a esta demanda. Um dos grandes desafios para os estudos sobre os maus tratos, não apenas especificamente em relação as crianças, reside na definição das categorias e tipologias que designem as suas várias nuances.

É importante ressaltar, no entanto, que a violência doméstica e os maus tratos na infância e suas consequências não devem ser entendidos fora do contexto da violência social/estrutural em que os indivíduos e as comunidades estão inseridos. Corroborando com a visão de Treichel et al (2019), a unidade familiar, em toda a sua complexidade, passa a ser entendida como um membro essencial no tratamento do paciente e um importante objeto de estudo no campo da atenção em saúde mental.

Os transtornos ansiosos também têm importante relevância no contexto da saúde pública na atualidade. Sabe-se que inúmeras são as pessoas, nas mais variadas idades, que sofrem destes transtornos. Especificamente na população idosa não é diferente.

Analisando os transtornos de ansiedade, individualmente, sabe-se que no caso da Síndrome do Pânico, o indivíduo vivencia momentos de desespero, onde a fuga apresenta-se como a única solução, acompanhada de pensamentos de, conforme Montiel et al (2014), de suposição, catastrofização, generalização e subestimação/ superestimação.

Analisando os dados obtidos em nossa amostra, foi possível observar, também, uma prevalência maior de transtornos ansiosos na população feminina. Destaque especial para os transtornos ansiosos e o transtorno de ansiedade generalizada.

Analisando a relação entre os transtornos de ansiedade e a ocorrência de maus tratos na infância, foi também possível observar uma escassez de estudos que abordem esta temática. Corroborando com Mello et al (2009), a elucidação desses fatores e a natureza dessas relações com desfechos na idade adulta é um grande desafio. Daí observa-se a importância da realização de estudos como este, do qual se busca “juntar as peças de um quebra-cabeça” e encontrar as ligações e fatores envolvidos nestes processos.

Na visão de Costa et al (2019), as relações entre a presença de eventos estressores precoces ou traumas na infância e adolescência e o desenvolvimento de transtornos mentais na vida adulta têm se mostrado um campo de investigação esclarecedor nos últimos anos.

Em relação à ocorrência de transtornos ansiosos, foi possível observar uma prevalência elevada entre aqueles indivíduos que sofreram maus tratos na infância. Destaque especial para a constatação de que os transtornos mais associados à maior carga de maus-tratos foram a agorafobia e a fobia social.

Ainda, em nosso estudo, os pacientes que possuem transtornos ansiosos, apresentaram maiores pontuações de PN (negligência física) e EA (abuso emocional) do que pacientes sem transtornos ansiosos.

Nosso levantamento não analisou a probabilidade de remissão do quadro de transtornos de ansiedade ou depressão, sendo esta uma variável que pode ser examinada em estudos futuros, assim como foi analisado no estudo de Hovens et al (2016), que observaram os maus tratos na infância sendo preditores significativos de uma menor probabilidade de remissão de transtornos depressivos e ou de ansiedade, ou seja, quem sofreu maus tratos na infância e sofre com transtornos de ansiedade ou depressivos tem uma tendência a perpetuação do problema, sendo mais difícil nestes a cura ou controle efetivo mesmo após abordagens terapêuticas variadas. De fato, este tema é de grande relevância, servindo de sugestão para estudos futuros na área. Resultados semelhantes foram encontrados por Williams et al (2016), ao concluírem que os maus tratos quando realizados em crianças com menos de 7 anos, tendem a ter um tratamento mais complicado, demorado e com menor probabilidade de resultados satisfatórios.

Assim, esta reflexão sobre a violência contra crianças e os impactos na vida adulta e senil, apoiada em artigos científicos publicados quanto ao tema, encontra perspectiva social e perfeita justificativa.

Isto implica em contemplar a integralidade da pessoa idosa em suas dimensões: física, moral, psicológica, cognitiva afetiva e espiritual, observando-se a necessidade de atendimento sócio – psíquico – pedagógico terapêutico e interdisciplinar, entendendo e compreendendo o seu passado, suas experiências traumáticas, para assim compreender o seu presente e até mesmo o seu futuro.

Para esta reestruturação pressupõem-se sensibilizar e mobilizar as famílias, a sociedade e o poder público para que seja assegurada a proteção social efetiva, proteção física e psicológica, no seio de sua família e da sociedade, que possibilitem a redução das desigualdades sociais e a inclusão da criança especialmente, sem que seus direitos sejam violados. 

  

CONCLUSÃO

Com base nos resultados observados na amostra analisada, foi possível concluir que, de fato, os maus-tratos na infância têm evidente relação com o desencadeamento e perpetuação dos transtornos ansiosos em idosos.

O transtorno psiquiátrico mais encontrado foi o transtorno depressivo maior (depressão), seguido pelo transtorno de ansiedade generalizada (TAG) e outros transtornos ansiosos. Dentre esses outros transtornos de ansiedade, o mais prevalente foi a agorafobia, seguida pelo transtorno de pânico com agorafobia e pelo transtorno de ansiedade social (fobia social).

Idosos com transtornos psiquiátricos, bem como com transtornos ansiosos, apresentaram uma maior carga de maus-tratos na infância. O mesmo ocorreu em idosos cuja escolaridade era mais baixa, em idosos sem companheiro e em idosos com menor renda salarial. Negligência física e abusos emocional, físico e sexual foram os subtipos de maus-tratos na infância relacionados a idosos com algum transtorno psiquiátrico ou com algum transtorno ansioso, com ênfase no TAG.

Os resultados observados no presente estudo são semelhantes aos resultados obtidos em estudos nacionais e internacionais, apontando a relação dos eventos traumáticos e estressores precoces como importante comorbidade para os transtornos ansiosos no transcorrer da vida, até a fase senil.

 

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