Walmor J. Piccinini

 

Fonte Wikipedia
Foto atual maio 2019

Maio de 2019, consegui realizar um sonho acalentado durante muitos anos, visitar a região de origem dos meus antepassados. Lavarone, uma comunidade italiana na região do Trentino-Alto Ádige. Um lugar lindo e mágico, com apenas 1085 habitantes. Centro turístico de alto nível situada há cerca de 30 km. de Trento. Fica numa altitude de 1100 metros e dividida em 19 pequenas frações. Numa delas, Chiesa, ficam os principais hotéis que são o Hotel Du Lac e o Astória. Permaneci neste último, com linda vista para o lago que é o cartão de visitas da cidade. Quando os “piccininis” emigraram para o Brasil, esta região pertencia à Áustria. Eram austríacos de fala italiana. Isto até hoje se presta a confusão, pois a Itália reluta em reconhecê-los como italianos e a Áustria parece não dar muita atenção aos seus filhos de fala italiana. Daí que a região

autônoma de Trento vive entre dois mundos. (para os interessados em conhecer mais sobre o assunto sugiro consultar o Circolo Trentino de São Paulo (ctsp.org.br).

Para Psychiatry online Brasil vou escrever sobre um visitante ilustre de Lavarone, Sigmund Freud. Sua presença foi registrada em placa colocada numa parede externa do Hotel du Lac, a biblioteca comunale leva seu nome. E, como nas suas férias escreveu sobre a Gradiva de Jensen, uma atividade cultural com este nome é realizada anualmente em conjunto com a Associação Psicanalítica Italiana. Os dados sobre as férias de Freud podem ser encontrados num livro editado pela “Comune di Lavarone” e num livro do filho de Freud, Martin Freud que descreve com detalhes sua experiência em Lavarone. (Uma pequena localidade situada num planalto dos Dolomitas, não muito longe da cidade de Trento, foi descoberta por Freud, no verão de 1900, quando, rumo ao sul de Itália, na companhia da cunhada, aí passou uns dias. E diz- se logo agradado, “com o lago, o pinhal, o sossego, os passeios, o acolhimento e a comida” numa carta enviada à mulher Martha durante essa sua primeira estadia.  Aí passou longas férias, no então recém- construído e agora famoso Hotel du Lac, com a família, nos verões de 1906 e 1907.  Foi aí que escreveu o ensaio sobre a Gradiva de Jensen.  Foi igualmente em Lavarone que Freud se refugiou, em agosto do terrível verão de 1923, depois da morte do adorado neto Heinele, convalescente das duas primeiras intervenções cirúrgicas.

Porque Lavarone? Segundo Martin, um amigo do seu tio Alexander, um poeta da Morávia, estava gravemente enfermo e foi visitado por Freud quando restavam poucos dias de vida. No meio da conversa o poeta exclamou num tom melancólico: “Se eu pudesse rever mais uma vez Lavarone, morreria feliz”. Ao que Freud perguntou: Onde fica Lavarone? E o poeta lhe fez uma descrição emocionada. Isto ficou na memória de Freud. Alguns anos depois em viagem ao sul do Tirol com a cunhada Minna e estando perto de Lavarone resolveu visitá-la ficando por alguns dias de 29 de agosto a 3 de setembro. “ . É assim que Freud descreve sua primeira estada em uma carta para sua esposa Martha: “O tratamento bem-vindo e atencioso, a boa comida, a preciosa tranquilidade, o belo pinhal, que descobrimos meia hora depois, os passeios surpreendentes que sempre levam a Lavarone novo, o bem-estar físico que deriva de tudo isso nos conquistou tanto que só sairemos daqui muito mal … Então, por que abandonamos este lugar ideal de beleza e tranquilidade e rico em cogumelos? Só porque resta apenas uma semana e nosso coração, como vimos, vir para o sul, em direção a figos, castanhas, ideal de beleza e tranquilidade e rico em cogumelos?”(tirado de Sigmund Freud, Il nosso coração vira para o sul: cartas de viagem, especialmente da Itália (1895-1923), Bompiani 2003).

Em 1906 Freud retorna a Lavarone com sua família e fica dois meses.

“A viagem em si era uma epopeia. Os Freud são uma família numerosa: os pais, seis filhos, aos quais são adicionados a cunhada do professor, Minna, e seu irmão, Alexander.
Eles se movem ao longo das íngremes e sinuosas estradas montanhosas usando dois carros alugados, um para dois cavalos para Freud e sua esposa com as meninas menores, outro para quatro cavalos para o restante da brigada, além da grande quantidade de bagagem. O feriado tem um longo tempo, como é habitual, então dura alguns meses e você tem que trazer tudo que você precisa.
Os cavalos usam armadilhas especiais e uma pluma na cabeça contra moscas, e sinos como chifres. Os rostos dos passageiros tornam-se irreconhecíveis devido ao pó depositado nos rostos e sobretudo nos cílios.”
O Hotel Du Lac foi o local escolhido para ficar, um hotel novo (construído entre 1902-1903) com vista para o espelho do lago abaixo. “Nas memórias de seu filho Martin os dias passam serenos entre os banhos no pequeno lago, as excursões nas montanhas circundantes, as viagens para os lugares vizinhos, como Caldonazzo, Molveno, Trento, Sirmione e Lago Garda, conversas com os outros convidados do hotel, reuniões com tropas austríacas que estavam treinando na área, visitas de amigos e ‘discípulos’, incluindo Otto Rank e Sandor Ferenczi, Ernst Jones, e o futuro Prêmio Nobel de Medicina, o húngaro Robert Barany . Durante esta primeira estada em Lavarone, Freud compôs Il delirio e sogni na “Gradiva” de Wilhelm Jensen, a primeira análise psicanalítica completa de uma obra literária, logo assumida como um paradigma da relação entre arte e psicanálise. O assunto, mais do que nunca propício para confirmar as teorias que Freud havia apresentado nos anos anteriores, foi oferecido pela novela Gradiva, publicada pelo escritor alemão W. Jensen em 1903. Para recordar a ocasião da composição da obra, em 9 de julho 1994 o Município de Lavarone oficialmente intitulou “Passeggiata Gradiva” o passeio pedestre ao longo da estrada provinciana”.

As férias foram tão agradáveis que os Freud retornaram em 1907 permanecendo no mesmo hotel por um mês. Com a Primeira Guerra Mundial, Freud teve que interromper suas viagens à Itália. Depois da guerra, a epidemia de influenza, só em 1923 Freud voltou a Lavarone. Nesta altura o Trentino deixa de ser austríaco e fazia parte da Itália

“Muitas coisas mudaram e muitas mais teriam mudado nos anos seguintes. Diferentemente dos anteriores, o feriado de 1923 foi uma triste estada, marcada pela dor pela perda de seu neto e preocupações com a grave doença diagnosticada a ele no mesmo ano, revelada em toda a sua dramática realidade”.(https://www.alpecimbra.it/it/scopri-l-alpe-cimbra/località/sigmund-freud/309-0.html)

Freud nunca mais voltaria a Lavarone, contudo, o seu nome continua a ser recordado na avenida que bordeja o lago, na biblioteca municipal Sigmund Freud, inaugurada em 1970, e numa lápide aposta no Hotel du Lac. Além disso, ciente do impacto cultural promovido pela ligação de Freud ao seu território, a autarquia  de Lavarone, em parceria com a universidade de Pádua, criou um centro cultural denominado “Centro de Estudos de Psicanálise Aplicada Gradiva”  que promove, desde 1990, conjuntamente com a Sociedade Italiana de Psicanálise, um congresso anual, multi – disciplinar, com inscrição gratuita e aberto ao público em geral, com a finalidade de debater temas de interesse comuns à psicanálise e a outras aéreas do saber.

Minha estada em Lavarone foi curta, fiquei no Hotel Astória que oferece uma magnífica vista sobre o lago (laguetto). Tirei uma foto da sacada do meu apartamento. Os dias foram frios e chuvosos, mesmo assim pude caminhar pelas trilhas do interior. Bem diferente do tempo dos meus ancestrais, hoje, Lavarone é uma cidade rica, com muitos hotéis de turismo e, com muitos Piccinini ainda morando por lá. Os nomes das outras famílias são os mesmos encontrados pelo interior do Rio Grande do Sul, demonstrando que mudaram de país, mas continuaram as tradições familiares.

 

 

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