Sérgio Telles

 

Apesar de não ser crítico de literatura, penso que esse livro de Maria Valéria Resende (MVR), “Carta à rainha louca”, bem se prestaria às discussões que já foram mais calorosas mas que, a meu ver, mantêm seu interesse, sobre a existência de uma literatura especificamente feminina, reveladora da condição da mulher num mundo controlado pelos homens. Helène Cixous, que foi muito próxima do filósofo Jacques Derrida, cunhou a expressão “escriture féminine” (escrita/escritura feminina) propondo que haveria um discurso próprio da mulher que fugiria à lógica fálica do discurso do homem e que se expressaria na literatura abordando temas próprios das mulheres dos quais os homens se apropriaram, como se apropriaram de tudo, autorizados pelo regime patriarcal imperante.

Segundo Cixous e outras teóricas francesas que abordaram essas questões, o discurso (e a escrita) da mulher, que se organiza de forma arborizada e sinuosa, diferente do discurso linear e centrado do homem, refletiria a própria diferença sexual. Nos homens, a sexualidade é centrada e unificada no pênis, na mulher é difusa e espalhada por todo o corpo, sem que necessariamente alguma área do corpo exija para si especial atenção. O falogocentrismo – palavrão criado por Derrida que intimida a muitos, mas que sintetiza a primazia do falo e do logos (razão, lógica) na sexualidade e no pensamento filosófico – que domina há séculos a cultura ocidental tem cerceado ou impossibilitado outras formas de ser e representar/simbolizar não regidas por tais princípios. A força do falogocentrismo é tamanha que quase não há repertório simbólico para expressar o propriamente feminino. Por exemplo, só muito recentemente foi possível articular coerente e sistematicamente o questionamento do poder patriarcal, de forma a desnaturalizá-lo. Até há pouco, tal questionamento feito pelas mulheres era visto pelos homens como manifestação de “loucura” ou “histeria”, maneira de sumariamente desautorizá-lo e calá-lo.

Mas voltemos ao livro de MVR e em que ele se adequaria como exemplo de “escriture féminine”.

MVR estruturou seu livro de forma engenhosa. Dividido em quatro capítulos, nomeados com os anos 1789, 1790, 1791 e 1792, o que situa a ação dos personagens num tempo específico e estabelece sua obra no gênero do romance histórico. Nele lemos uma longa carta que Isabel Maria das Virgens escreve para a Rainha de Portugal, Dona Maria I, clamando por justiça. Para tanto, relata suas aventuras, venturas e desventuras (na verdade, mais desventuras) decorrentes do fato de ser mulher deserdada e desamparada nas lonjuras e selvageria da colônia,  o que a forçou a perambular pelos rincões da Bahia, Pernambuco e Minas Gerais, muitas vezes disfarçada de homem e exercendo ofícios considerados exclusivos desse sexo, como o ler e escrever – quer seja como escriturário,  copista ou falsificador de documentos ou como autor(a) dos textos que escrevia.

MVR mostra grande habilidade no manejo do receituário do romance histórico. Espalha os condimentos de forma sutil e delicada, de modo que a interessante massa de informações sobre usos e costumes do Brasil colonial e os acontecimentos da Metrópole portuguesa estão perfeitamente integrados no entrecho narrativo, sem aquele insípido sabor de verbete de enciclopédia, frequente em romances do gênero. Com fluidez desfilam no texto a violência do poder patriarcal, as mulheres como objeto de posse, troca e negociações por parte dos homens, as seduções e estupros, a escravatura, as peculiaridades dos negócios da colônia controlados pela coroa portuguesa, seus efeitos sobre as transações comerciais do sal, do papel e tinta para escrever. Como pano de fundo, estão a Revolução Francesa, já anunciada no título do capítulo inicial – 1789 –, o Processo dos Távoras (nobres que teriam tentado matar Dom José I, pai de Dona Maria I e punidos de forma exemplar pelo Marques de Pombal), a Inconfidência Mineira.

MVR usa o estratagema de rasurar nas páginas da carta trechos que a missivista considera a posteriori como inconvenientes. São saborosas críticas e ironias que poderiam comprometê-la frente a Rainha.

O mais interessante do livro de MVR é que ela, tal como a missivista Isabel Maria das Virgens, é cheia de expedientes e, como quem não quer nada, no contexto do romance histórico contrabandeia outras mercadorias, como a denúncia do patriarcado e reiteradas reflexões sobre o ato de escrever – o prazer daí auferido e suas propriedades terapêuticas. As longas descrições de Isabel Maria das Virgens sobre as dificuldades de arranjar papel e tinta para fazê-lo – itens sob estrito controle do poder estabelecido – valem também como metáfora, expressam a denúncia desse exilio do mundo simbólico regido pelos homens, que lhe nega instrumentos para expressar o que é próprio das mulheres.

No final do livro, Isabel Maria das Virgens descobre que a Rainha, a quem recorria contra os desmandos e injustiças dos homens e a quem atribui todo o poder, fora deposta como louca e  cedera a regência para seu filho, que viria a ser D. João VI, que logo mais arribaria com toda a corte por essas plagas tropicais, fugindo do vendaval napoleônico. Sem se desesperar, Isabel transforma seu pedido de socorro à Rainha em disposição de ser sua eventual salvadora, conscientizando-se de que estão – ela e a Rainha – irmanadas e aprisionadas na condição de mulher num mundo onde os homens exercem o poder de forma implacável. Dessa forma, MVR conclui de forma brilhante seu livro, dando-lhe abertura e atualidade que bem agradariam a Cixous.

É sabido que a autora durante longo período se dedicou à vida religiosa. Haveria algum resquício dessa experiência nas sofridas peregrinações de sua personagem por conventos e estabelecimentos afins, que a fizeram ter uma visão descrente e amarga sobre eles? A questão é pertinente no sentido que aponta para uma aguda antinomia – a existente entre os postulados da vida religiosa feminina e os pressupostos do feminismo.

Quem sabe, a leitura do livro de MVR dê mais coragem às mulheres para assumirem o feminismo, sem medo de serem taxadas de “loucas”, “histéricas” ou “lésbicas”.

(*) Publicado no suplemento Eu&FS do jornal “Valor Econômico” em 24/05/2019

Similar Posts