Volume 4 - 1999
Editor: Giovanni Torello


Dezembro de 1999 - Vol.4 - Nš 12

"Seja um salvador daqui"

Rubem Alves

Chegou-me, pelo correio, um envelope grande. O remetente era o meu amigo Carlos Rodrigues Brandão. Cartas de amigos devem ser lidas com pachorra. E como eu estava de saída para uma viagem, coloquei o envelope fechado na minha pasta. Iria ver o conteúdo calmamente, nas longas esperas dos aeroportos. Feito o check-in, assentei-me e abri o envelope. Do Brandão só um bilhetinho curto escrito com letra que exige habilidades de adivinhação, como é o seu costume. Mesmo sem decifrar tudo, um bilhete de amigo é sempre um abraço. O bilhetinho me encaminhava dois recortes de jornal que me fizeram retomar umas idéias com que tenho estado brincando, faz tempo.

Pensei sobre o jeito como os jornais são feitos. Vocês sabem que sou dono de restaurante. Imaginei, então que, se eu fosse dono de jornal, o meu jornal se pareceria com um cardápio. Os poetas sabem que as pessoas lêem não por razões intelectuais mas por razões gastronômicas. Gulliver, em uma de suas famosas viagens, visitou o departamento de uma universidade em que a aprendizagem acontecia não pela leitura mas pela devoração dos livros. A Emília, do sítio do Picapau Amarelo, no seu projeto de reforma do mundo, -além de colocar os rabos das vacas no meio das costas ( para que pudessem abanar as moscas que as atormentam no focinho) , imaginou que os livros deveriam ser feitos de materiais comestíveis: lida uma página, ela seria rasgada e degustada. Na mesma linha, imaginei jornal que seria preparado como se prepara um prato, para dar prazer ao gosto dos leitores. Tenho alguns amigos que passam os domingos "devorando" jornais. Assim, imaginei um jornal para ser comido!

Já citei aqui o filósofo alemão Ludwig Feuerbach que dizia que "somos o que comemos". Se, no meu restaurante, o DALI, aos domingos eu sirvo biscoitão de polvilho com caldinho de feijão, é porque em mim existe um buraco chamado "cozinha das casas velhas das Minas Gerais". Biscoitão de polvilho com caldinho de feijão era coisa da cozinha mineira. Como biscoitão com caldinho de feijão para me curar da saudade. Biscoitão com caldinho de feijão são uma revelação da minha alma: sou o que como. Dize-me o que comes e dir-te-ei quem és.

Posso, então, dizer: "Dize-me o que lês e dir-te-ei quem és" . Assim, pode-se fazer psicanálise examinando aquilo que uma pessoa come com a boca e come com os olhos. Sugiro aos meus colegas de ofício que, na falta de sonhos sonhados à noite para serem analisados, eles puxem conversa sobre comidas e leituras. Quando me submetí, como parte do meu treinamento, à análise didática, eu e minha analista conversávamos longamente sobre livros e comidas. Cheguei mesmo a lhe ensinar algumas receitas, a moqueca capixaba, o frango com quiabo, a sopa de coentro.

Como seria um jornal inspirado num cardápio de restaurante? Um cardápio de restaurante tem várias seções, para orientar o cliente: aperitivos, sopas, carnes, aves, peixes, massas, sobremesas, etc. Elas não devem ser misturadas, para não causar confusão. . Assim, imaginei um jornal que fosse uma refeição. Na primeira página estaria o cardápio, com os vários pratos organizados segundo suas afinidades gustativas.

A seção "Sangue e violência" conteria uma variedade de pratos que, pelo tempero forte e apimentado, provocaria aquilo que de mais profundo existe no nosso apetite. Freud constatou, espantado e sem conseguir explicar, que dentro de todos nós existe um prazer pelo mórbido. A fantasia do deputado Hildebrando matando os inimigos com uma serra de árvore é mais excitante que a descrição de crianças brincando num parquinho. É mais emocionante ler sobre os assassinatos dos traficantes que sobre a recuperação de um jovem que conseguiu parar de cheirar cocaina. São poucos os que vão ao cinema para ver um filme vagaroso como "Nunca te vi, sempre te amei". Mas as filas se formam para os filmes de guerra. A seção "Sangue e violência" , assim, seria importantíssima do ponto de vista econômico: ela garantiria o público. Violência local, violência nacional, violência internacional. Nela se encontrariam notícias sobre agressões, crimes, guerras, genocídios, torturas, assassinatos, linchamentos, estupros, queimas de mendigos, violências contra crianças, hooligans, gangues que matam por prazer, estudantes que metralham colegas de escola e pessoas felizes que foram ver um filme, rachas de carro que terminam em morte, desastres, chacinas em praças, favelas, penitenciárias, FEBEMs, informações sobre o crime organizado empresarialmente por homens de negócios e policiais defensores da lei, etc. Para aqueles cuja fome não fosse satisfeita haveria sugestões bibliográficas para leitura posterior, bem como anúncios sobre armas, suas fábricas ( ver o filme de Charles Chaplin, "Monsier Verdoux ), suas lojas nos shoppings, e indicações de cursos de artes marciais que ensinam a técnica científica de matar.

Uma outra seção, frequentemente ligada à primeira, seria "Corrupção", que também seria dividida em corrupção local, corrupção nacional, corrupção internacional. Dada a situação do Brasil, haveria o perigo de que os leitores se empanturrassem com os pratos dessas duas seções, o que requereria dos redatores um cuidado especial no sentido de escolher as corrupções mais palatáveis, aquelas que envolvem deputados democraticamente eleitos, juizes defensores da justiça, professores universitários com doutorado, pessoas da alta sociedade, homens de negócios, empresas, construtoras, empreiteiras, líderes religiosos. Os pobres, devido à sua condição, não têm condições de ser corruptos. Para se ser corrupto é preciso estar ligado ao poder.

Os "Escândalos sexuais" são também comida picante, que mesmo as pessoas mais religiosas se deleitam em ler em meio a exclamações de reprovação do tipo : " Que vergonha!" "Que imoralidade!" Seria igualmente dividida em escândalos sexuais locais, nacionais e internacionais, incluindo descrições detalhadas de prostituição infantil, para fins de turismo internacional, estupros, violências sexuais contra filhos e filhas, bem como relatos de aventuras amorosas proibidas e conversas telefônicas grampeadas, como aconteceu com o príncipe Charles, da Inglaterra que, num surto de amor pornográfico declarou à sua amante ter inveja do seu tampax. Nessa seção apareceriam, também, as sugestões bibliográficas, livros, revistas, filmes, bem como anúncios das instituições e pessoas especialistas no assunto.

Mas é evidente que não ficaria bem para o jornal incluir somente esses pratos de gosto forte e apimentado. Nos cardápios há também as mansas sopas, as saladas verdes, os pratos vegetarianos. Há professoras que educam crianças, médicos que lutam contra as doenças, advogados que acreditam na justiça, artistas que produzem a beleza, palhaços que alegram o público, cientistas que pesquisam problemas relevantes, professores universitários que se preocupam com seus alunos, lugares sagrados onde existe o silêncio, Babettes que cozinham para dar prazer, crianças que brincam, cartunistas que fazem rir ( o Calvin!). Tudo isso faz parte da nossa vida. Merece notícia.

Para efeito de paginação, as primeiras seções mencionadas seriam publicadas nas páginas da esquerda, com manchetes em vermelho ( churrascos!), enquanto as mencionadas por último seriam publicadas nas páginas da direita, com manchetes em verde ( saladas).

Os dois recortes do Brandão que provocaram esses pensamentos:

O primeiro relata a festa da socialite Vera Loyola , para comemorar o aniversário de sua "poodle" "Duda" e que foi notícia destacada nas revistas mais lidas do Brasil ( Estado de Minas, 31 de outubro de 1999, p. 31). Parece que a única nota destoante foi o fato de o decorador Eder Meneghine, socialite também, haver pisado em cocô de cachorro duas vezes. Fiquei em dúvidas sobre a seção onde colocar essa notícia. Não cabe em "Sangue e violência". Não cabe em "Corrupção". Não cabe em "Escândalos sexuais". Pensei que, talvez, devesse haver uma seção com o nome de "Aberrações inomináveis" para notícias desse tipo.

O outro foi um anúncio publicado também o "Estado de Minas": um lindo pretinho, um sorrisinho misterioso, olhos tristes? - suplicantes? esperançosos? ( fiquei com vontade de brincar com ele...) - com enormes bigodes curvos brancos pintados - lembrando os bigodes de Salvador Dali - com o convite: " Seja um Salvador Daqui".

O fato é que, após ler os jornais, com as informações na cabeça, sabendo o que está acontecendo, ficamos possuidos por um horrível sentimento: impotência. Não sabemos o que fazer. Não sabemos por onde começar. A magnitude dos horrores nos paralisa. Não é de se espantar que as pessoas se entreguem aos entusiasmos religiosos que reunem milhões: nesses eventos festivos e místicos, a indignação provocada em nós pelas notícias - e que não conseguimos exprimir de forma política e ativa - encontram expressão e catarse em danças aeróbicas, refrões alegres e entusiasmos místicos. É impossível evitar a comparação: sua função se parece, em tudo, às drogas. Amaldiçoaram Marx mas ele estava certo: a religião pode ser o ópio do povo: transforma o horror em alegria!

A última página do meu jornal não seria de gastronomia. Seguindo o refrão, "barriga cheia, pé na areia", a última página do meu jornal seria um mapa de caminhos que podem ser seguidos. Vários caminhos, cada um conduzindo a um fim bonito - a ser escolhido pelo leitor. Ao longo do caminho, nomes de pessoas, de instituições, de eventos, de programas, de possibilidades! - sim, de possibilidades! - de ação. É preciso sair do horror. O horror paralisa. É preciso apontar para a esperança: a esperança de coisas belas desafia, convida e dá sentido para a vida. Assim, poderíamos aceitar o desafio e ser um Salvador Daqui!


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