Volume 4 - 1999
Editor: Giovanni Torello


Dezembro de 1999 - Vol.4 - Nş 12

Psicanálise em debate

Cem anos de "a interpretação dos sonhos", sua vigência teórica, clínica e metodológica

João Sérgio Siqueira Telles

(Trabalho apresentado no XVII Congresso Brasileiro de Psiquiatria – Fortaleza, outubro de 1999)

 

Comemora-se o centenário do lançamento daquela que é considerada a mais importante obra de Freud, aquela que marca a instalação da psicanálise como um campo específico de conhecimento do psiquismo humano. Trata-se de "A Interpretação dos Sonhos".(1)

É interessante lembrar algumas coincidências entre o momento que vivemos e o do lançamento do livro.

Em 1899, a psiquiatria estava largamente fundida com a neurologia. Como lembra Gay (2), a época de Freud considerava indiscutível a primazia do cérebro sobre a mente, com as teorias da hereditariedade, das localizações cerebrais, da frenologia. O próprio Freud tinha escrito trabalhos como neurologista e a primeira versão do livro que ora homenageamos, publicado tardiamente em 1950 e intitulado "Projeto para uma psicologia científica" pelos tradutores ingleses, era chamado pelo próprio Freud de "psicologia para neurologistas". Ali Freud descreve os fenômenos mentais em termos fisiológicos, neurológicos. Os fenômenos psíquicos, dizia Freud, decorriam da circulação de uma energia nervosa (a "quantidade") através de três sistemas de neurônios.

Logo Freud abandona sua "psicologia para neurologistas", por entender que não pode explicar os fenômenos psíquicos em termos orgânicos. Embora suas descobertas abrissem um campo específico próprio, elas tiveram uma grande influência na psiquiatria, ajudando-a a estabelecer um estatuto independente da neurologia, proporcionando-lhe pela primeira vez uma possibilidade de entendimento da etiologia e da aboradagem terapeutica da loucura.

Cem anos depois, aquela diferenciação entre neurologia e psiquiatria, que Freud tinha ajudado a estabelecer, parece ser abandonada em nome de uma "neuro-ciência", uma neuro-psiquiatria com as neuro-imagens, o conhecimento mais acurado dos neuro-transmissores, a aquisição de uma farmacologia mais fina, os estudos genéticos, esta versão nova, revista e melhorada da antiga "hereditariedade", de tão triste memória.

A psiquiatria sente-se orgulhosa com estes novos trunfos. Finalmente sente-se um membro legítimo das especialidades médicas, deixa aliviada aquele lugar incômodo e desconfortável que ocupava ali até então.

Não mais ficará embaraçada ao ter de usar como recursos terapeuticos armas distantes do universo médico, armas provenientes do mundo simbólico, da linguagem, da cultura. Tem agora suas dosagens laboratoriais, seus aparelhos com tecnologia de ponta, sua farmacologia moderna.

E assim, agora a psiquiatria olha meio envergonhada para sua vertente psicodinâmica, considerando-a talvez ultrapassada, sem importância, sem "cientificidade".

Em 1899, da neurologia para a psiquiatria. Em 1999, da psiquiatria para a neurociência. Mas talvez tudo isso seja apenas mais um capítulo deste movimento pendular ao qual a psiquiatria parece estar condenada a viver, em função de estar o objeto de seus estudos efetivamente dois campos diversos, o orgânico e o simbólico. Daí a psiquiatria organicista versus psiquiatria "dinâmica", a psicogênese contra a organogênese da doença mental. O desafio que devemos enfrentar é justamente poder integrar estes dois campos, o que nos permitirá utilizar os diversos conhecimentos por eles produzidos.

No momento pendular em que vivemos, com a primazia quase exclusiva do tratamento farmacológico, a escuta do sujeito que sofre, do paciente, é quase totalmente abandonada. Não seria difícil que alguém se indagasse, frente a nossa proposição de hoje, até que ponto vale a pena se debruçar sobre algo que foi descrito há 100 anos? Não estaria definitivamente ultrapassado? Teria outra importância além da histórica? Teria cabimento ainda se falar em interpretar os sonhos de alguém, neste mundo das drogas de estilo de vida (life-style drugs), como o Prozac, do "managed care", da "evidence-based medicine"? Terão ainda alguma validade as propostas analíticas na cultura pós-moderna, na era do narcisismo?

Penso que sim e tentarei explicar porque.

Para tanto, é enriquecedor refazer parte do trajeto percorrido por Freud até chegar a descobrir a interpretação dos sonhos.

Nas últimas décadas do século passado, as histéricas desafiavam o saber médico. Diz Freud: "Uma abordagem adequada e uma melhor compreensão da doença apenas tiveram início com os trabalhos de Charcot e da escola da Salpêtriére, inspirada por ele. Até essa época, a histeria tinha sido a "bête noire" da medicina. Os pobres histéricos que, em séculos anteriores tinham sido lançados à fogueira ou exorcizados, em épocas recentes e esclarecidas, estavam sujeitos à calamidade do ridículo; seu estado era tido como indigno da observação médica, como se fosse simulação e exagero"(3).

Charcot assim teve grande importância no estudo da histeria. Fez inúmeras e precisas descrições dos casos clínicos, da "entidades mórbidas", dos "tipos", das "formas frustras", organizando a sintomatologia em ataques convulsivos, zonas histerógenas, distúrbios da sensibilidade, distúrbios da atividade sensorial, paralisias, contraturas e características gerais. A seu ver, tais sintomas decorreriam de "modificações fisiológicas do sistema nervoso", que alterariam as "condições de excitabilidade nas suas diferentes partes ". Charcot descreve um tipo especial de histeria, dito "traumática", onde conseguiu provar que os sintomas histéricos eram causados não pelos "traumas" físicos e sim pela representação psíquica dos mesmos.

A clínica de Charcot era predominantemente visual, ou seja, as histéricas eram vistas, observadas, davam grandes espetáculos. As aulas de Charcot eram assistidas pelas altas rodas intelectuais e financeiras de Paris. Havia as histéricas que ficaram famosas, como Blanche ou Marie Wittman (4).

Em 1885, Freud, atraído pela fama de Charcot, consegue uma bolsa de estudo em Paris, onde fica um ano estudando na Salpêtrière. Vivamente impressionado com as práticas do mestre, ao voltar para Viena põe-se a trabalhar com as histéricas. Nesta época viaja até Nancy, para observar o uso terapeutico da hipnose na histeria, prática defendida por Liébauld e Bernheim, contrária do que preconizava Charcot.

Já antes de ir para Paris, em 1882, Freud acompanhara Breuer em suas experiências com uma paciente histérica, cujos exuberantes sintomas desapareciam depois que ela os relatava sob hipnose, relembrando fatos que estavam até então "esquecidos". Ao voltar de Paris, Freud retoma a colaboração com Breuer e em 1893, os dois publicam o "Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: uma comunicação preliminar", e dois anos depois o "Estudos sobre a Histeria", do qual aquele é o prefácio.(5).

Ali, Freud elabora algumas hipóteses. O sintoma histérico seria causado por um "trauma" - uma experiência desagradável, vexatória, desencadeadora de um afeto intenso. Por este motivo, o "trauma" seria "esquecido", afastado do comércio associativo das idéias. Seu "afeto" seria transformado através das inervações numa descarga motora, a idéia ficaria enfraquecida e em seu lugar apareceria uma outra idéia, um "simbolo mnemico", que configuraria o sintoma. Freud propõe algumas explicações para que tal ocorra assim, mas termina por escolher a hipótese da "defesa". O "trauma" se constitui como tal por ser ele uma experiência incompatível, inaceitável com o ego, que se "defende", afastando-o das outras representações do psiquismo.

A maneira de curar os sintomas era retirar do "esquecimento" tal experiência traumática, fazer coincidirem novamente o afeto e a idéia (representação), através da "abreação", provocando uma "catarse". Isso faria com que a idéia regressasse ao comércio associativo com as demais, e o afeto sofreria uma descarga a nível psíquico propriamente dito.

Para tanto, era preciso fazer a paciente falar, "lembrar" do trauma para abreagí-lo. Inicialmente Freud, seguindo a conduta da época, usava a hipnose. Mas já então a usava de uma forma diferente. Não a usava para dar "contra-ordens" para extinguir o sintoma, não dava conselhos ou fazia ameaças para convencer a paciente a abandonar o sintoma.

Ele ouvia o que elas tinham a dizer, atitude aliás, imposta por uma paciente, Emmy von N (na verdade, Baronesa Fanny Moser) (6) que exigiu seu silêncio para que ela pudesse falar. Logo Freud viu que não era necessário a hipnose para que as pacientes falassem e, após um rápido estágio na sugestão (técnica da "pressão"), descobriu a associação livre. Simplesmente pedia que as pacientes falassem tudo o que lhe viesse à cabeça, sem nenhuma censura ou preocupação com as normas da boa conversação em sociedade.

Freud observou que nessas associações livres, as pacientes relatam seus sonhos, davam a eles grande importância e passavam espontaneamente a usá-lo, tal como faziam com o sintoma, como ponto de partida para novas associações de idéias. Este fato chamou a atenção de Freud, que passou a se interessar também por seus próprios sonhos e a utilizar com eles o mesmo procedimento que usava com as pacientes, quando pedia-lhes que associassem livremente.

Dizendo de outra forma, o que se evidenciou da escuta deste discurso das pacientes, onde os sonhos ganhavam um substancial espaço, é que havia um significado oculto nos sintomas histéricos, eles remetiam para "reminiscências", lembranças esquecidas de graves acontecimentos vividos pela paciente, acontecimentos "traumáticos", que se organizavam através de um complicado "mecanismo psíquico". É importante ressaltar que em fazendo assim, Freud passou da observação visual, como Charcot, para a escuta do discurso da paciente.

Com o progredir da escuta, Freud descobre que estes acontecimentos "traumáticos" se ligavam à infância e eram de órdem sexual. Ligavam-se a lembranças de um abuso sexual na infância, de uma sedução sexual por parte dos pais, o que o leva a postular uma "teoria da sedução" para a compreensão da histeria.

Freud observou que aquele "mecanismo psíquico" que ele descrevera inicialmente para a histeria era compatível para a compreensão de outros quadros psicopatológicos, como a neurose obcessiva e a paranóia (7) e - mais surpreendente - para o entendimento de vários outros acontecimentos da vida psiquica tidos como "normais" como o esquecimento (8), os atos falhos, as lembranças encobridoras (9) e os próprios sonhos, como ele tinha observado nos relatos das pacientes histéricas e com seus próprios.

Isso proporcionou um salto epistemológico importantissimo, pois Freud entendeu que não estava apenas descrevendo um "mecanismo psiquico" mas tinha descoberto uma nova dimensão do psiquismo, presente em todo ser humano, "normal", neurótico, psicótico. Tratava-se do Inconsciente, cujo inventário, modo de funcionamento, caracteristicas e lógica específica não mais deixará de investigar, criando este novo campo que é a psicanálise.

Através da interpretação de seus próprios sonhos realiza sua auto-análise, tendo como suporte transferencial a presença idealizada de seu amigo Fliess. É então que descobre o complexo de Édipo, descoberta que vai ter amplas consequências, a primeira dela sendo o abandono da "teoria da sedução", por permitir relativizar a importância da realidade fática e estabelecer a primazia da fantasia e da realidade psíquica.

O relatório desta grande descoberta científica está exposto em "A Interpretação dos Sonhos". É também um relato de um aventura pessoal, na medida em que nele colhemos fragmentos da auto-análise de Freud. No prefácio da segunda edição do livro, ele diz: "Porquanto este livro tem para mim pessoalmente outro significado subjetivo - um significado que somente apreendi após tê-lo concluído. Foi, assim verifiquei, uma parcela de minha própria auto-análise, minha reação à morte de meu pai - isto é, ao evento mais importante, à perda mais pungente da vida de um homem".

O livro "A Interpretação dos Sonhos" está montado em sete capítulos. Pode-se dividir seu corpo em três partes: a primeira é a introdução bibliográfica; a segunda é formada pelo método de interpretação, pela teoria da formação dos sonhos, pelo estudo de sua função e elaboração, e a terceira - o famoso capítulo VII, intitulado "A psicologia dos processos oníricos", onde está feita a primeira descrição do aparelho psíquico, dividido em Inconsciente, Pré-consciente e Consciente, organização também chamada de "Primeira Tópica".

O segundo capítulo chama-se "O Método de Interpretar Sonhos: Uma análise de um sonho modelo". Trata-se do famoso sonho de Irma, o qual continua sendo revisitado por outros analistas, que julgam divisar ali uma série de elementos que Freud propositadamente não interpretou para manter sua privacidade.

Como promete, Freud descreve com grande clareza seu "metodo". Inicia com um contexto das situações vividas que antecederam imediatamente o sonho (o que vem chamar de "restos diurnos"), depois faz o relato completo do sonho e finalmente sua análise a partir de cada um dos diversos fragmentos do sonho.

Seguindo o sonho de Irma e dos demais (no livro são analisados 223 sonhos, 47 do próprio Freud e 176 de pacientes e amigos) vamos entendendo a diferença entre o "conteúdo manifesto", aquilo que o sonhador lembra e relata e o "conteúdo latente", aquilo que só aparece depois de longo trabalho de interpretação. Esta constatação nos mostra como entre os dois conteúdos há uma grande deformação decorrente do que Freud chama de "censura", também responsável pelo esquecimento do sonho. O motivo desta censura é a presença de desejos e idéias que seriam inaceitáveis, pois Freud descobre que todo sonho é a realização de um desejo. Esse desejo é um desejo infantil e de cunho erótico sexual, daí a necessidade da grande deformação para que seja possível seu acesso ao Consciente.

Os responsáveis por esta grande deformação é o chamado "trabalho do sonho" ou "elaboração do sonho". É ele que transforma os materiais do sonho (restos diurnos, estímulos corporais, pensamentos do sonho) através dos mecanismos de condensação, deslocamento, considerações de figurabilidade e elaboração secundária.

O método de deciframento do sonho, que é a interpretação, faz o caminho oposto ao do trabalho do sonho.

Freud fala de que o sonho se passa numa "outra cena", diferente daquela onde se passam as ações da vida consciente ideacional. A "outra cena" implica a formalização de um aparelho psíquico com diferentes localizações e características. A "outra cena" é o Inconsciente, onde o sonho realiza uma regressão tópica, formal e temporal, transformando palavras, idéias verbais em imagens visuais, sensoriais, alucinatórias. E, ao ser interpretado, decifrado, Freud descobre - como dissemos - que o significado oculto do sonho é a realização de um desejo infantil ligado ao complexo de édipo.

Isso tudo fica detalhadamente explicado no Capítulo VII. Ali Freud estabelece os tipos diferentes de funcionamento de cada uma das três instâncias - a energia livre e o processo primário - característicos do Inconsciente, proporcionadores da realização alucinatória do desejo, regida pelo principio do prazer, funcionamento este cindido pela censura de vigorar no Pré-Consciente e Consciente, onde regem a energia vinculada, quiescente, o processo secundário e o principio da realidade.

Freud diz que o sonho é a "via regia para o inconsciente", sua formação mais acessível, e, por isso mesmo, de enorme importância prática, clinica.

Com "A Interpretação dos Sonhos", de um só golpe Freud estabelece um modelo do aparelho psíquico e de seu funcionamento, uma descrição extremamente acurada do Inconsciente, um método de investigação deste Inconsciente, constituido pela associação livre e pela interpretação, e uma forma de terapia nele baseada.

Interpretação de sonhos, interpretação, psicanálise. São termos quase sinônimos. A interpretação é o instrumento mais importante da psicanálise e levanta importantes questões epistemológicas.

É o mais importante instrumento por que, interpretar é criar sentido para aquilo que é um aparente não-sentido. É também decifrar o significado oculto, é desvendar a significação inconsciente, é ver além do manifesto o latente. É evidenciar o conflito defensivo entre as várias instâncias psíquicas em torno do desejo inconciente, é integrar na consciência do sujeito aspectos de sua realidade psíquica que até então estavam reprimidos, cindidos, isolados, projetados, negados.

Ao conceito de interpretação, Freud posteriormente acrescenta o de construção, fazendo da primeira parte constituinte da segunda. Desta forma, o objetivo da análise é descrito como a reconstituição, em seus aspectos simultaneamente reais e fantasmáticos, da história infantil e insconsciente do sujeito (10), o que é obtido através das interpretações dos diversos materiais trazidos pela associação livre (sonhos, atos falhos, sintomas, fantasias, resistências, transferências) e sua posterior construção, ou melhor dizendo, sua reconstrução pelo analista.

Nisso repousaria o aspecto terapeutico da análise, por permitir ao analisando a compreensão de sua dimensão inconsciente, estabelecendo a possibilidade de decifrar suas ininterruptas manifestações, num permanente significar e ressignificar de sua história simbólica.

A produção de conhecimentos psicanalíticos se dá exatamente através da interpretação, por isso mesmo levantam-se muitas questões epistemológicas. A interpretação, por suas próprias características, está fundada na mais profunda subjetividade tanto do analisando quanto do analista. Dizendo de outra forma, estamos muito longe do paradigma científico onde a produção de conhecimento deve ser regida pela objetividade total do observador ("sujeito cognocente"), que mantem uma neutra distância do objeto estudado ("objeto de conhecimento"). O que está em jogo é todo o critério de cientificidade da psicanálise. Como ter certeza de não ser ela uma "folie a deux"?

Tal fato levou epistemólogos neo-positivistas como Karl Popper a negar à psicanálise a categoria de ciência. Outros epistemólogos, que refutam a linha neo-positivista, discordam de tal posição, postulando para a psicanálise novos enquadres que respeitem suas características e peculiaridades.

Kalinowski é um epistemólogo que estuda as hipóteses interpretativas psicanalíticas com grande respeito, achando-as perfeitamente compatíveis com as exigências de padrão científico: "Porque, no final de contas, se a psicanálise se desenvolver como ciência madura, terminará por achar que os modelos que a levaram ao êxito são os os que lhe são próprios e não os que saíram por analogia das outras disciplinas e, então, assim como a biologia tem seus modelos homeostáticos e a sociologia tem seus modelos estruturais, a psicanálise terá seus modelos psicanalíticos. Em tal sentido diremos que, em última instância e como nas outras ciências, a peculiaridade do material psicanalítico não muda a estrutura lógica profunda do problema da validade das teorias, mas sim muda o tipo de imaginação, o ato criativo do investigador para propor suas hipóteses, para formar seus teoremas, suas teorias. Aqui é onde nos encontramos com algo sui generis da psicanálise e quem não tenha trabalhado em psicanálise e não entenda bem sua metodologia não se dá conta de como se produzem seus modelos, nem se fará a par das dificuldades inerentes ao problema com que a psicanálise trata"(11).

Uma boa abordagem mais aprofundada nos é dada por Perrés, quando mostra que os critérios neo-positivistas da neutralidade científica não se sustentam nem mesmo nas chamadas disciplinas "duras", além de contestar o modelo usado por Popper para caracterizar a ciência como única, "A" ciência, não reconhecendo que são "AS" ciências, cada uma com suas especificidades a serem respeitadas.

Radicalizando ainda mais, Perrés afirma que a própria psicanálise inaugura uma nova epistemologia não só incluindo o observador na observação, mas centrando nele a ênfase da observação nos dois sentidos, de atribuir-lhe o poder de observar o objeto e a si mesmo. Diz ele: "...Freud mais além do que pensava estar fazendo (continuando as linhas de seus mestres), fundava uma nova concepção epistemológica. Esta, que ele produziu, conduz a um modo muito "sui generis" de pensar a relação sujeito-objeto, tão cara a toda teoria do conhecimento, que revolucionou definitivamente as epistemologias vigentes e nos introduziu numa nova dimensão, até então inédita (...) nela resulta impossível separar o "objeto de conhecimento" do "sujeito cognocente". Já não se trata então de tentar eliminar toda a "subjetividade" do investigador (que, se supõe poderia distorcer a necessária "objetividade" da ciência), mas de incorporá-la definitivamente, em uma nova forma de cientificidade, imprescindível na especificidade de todas as ciências "humanas" ou "sociais" (...) Mais ainda, Freud como ninguém havia ido tão longe nesta revolução epistemológica ao mostrar que o proprio sujeito cognocente está profundamente cindido e que só da compreensão da dimensão inconsciente presente nele nos permitirá entender o próprio processo de conhecimento, e também todas os obstáculos que à dita produção de conhecimento se opõem destes níveis internos do próprio investigador....Não seria possível agora abordar as enormes repercussões para todas as ciências e disciplinas, em suma, para toda criação de conhecimento desta nova modalidade epistemológica". (grifos meus) (12).

Estas considerações sobre os problemas epistemológicos da interpretação e, por extensão, da psicanálise, com as quais encerro minha exposição, não são um desvio desnecessário e aborrecido do nosso tema. Pelo contrário, como lembramos no início, vivendo neste momento das neurociências, a psicanálise não só é vista como algo meio supérfluo ou ultrapassado, como também tem sua cientificidade questionada. Para tanto, sempre é lembrada a crítica de Popper. O que desejo aqui então é mostrar que há outras opiniões epistemológicas que enfocam a questão sob outros prismas, revelando como o problema é mais complexo do que se pensa e tem desdobramentos surpreendentes, a crer nas opiniões de Perrés.

Bibliografia

  1. Freud S. - A Interpretação dos Sonhos – Obras Completas de S. Freud – vols. IV e V – Rio – Imago –1972
  2. Gay, Peter - Freud a life for our time - W.W. Norton & Co - New York London –1988 – p.123
  3. Freud S. – Histeria – Obras Completas de S. Freud – vol. I - 1977
  4. Roudinesco, Elizabeth - História da Psicanálise na França - vol. 1 – Rio – Jorge Zahar Editor – 1989 – p. 57 e s.
  5. Freud S. - Estudos sobre a Histeria – Obras Completas de S. Freud – vol.II – Rio – Imago - 1974
  6. Gay, Peter – op. cit. – p.70
  7. Freud S - As neuropsicoses de defesa e Novos Comentários sobre as neuropsicoses de defesa – Obras Completas de S. Freud – vol. III – Rio – Imago - 1976
  8. Freud S. - O Mecanismo Psiquico do Esquecimento – Obras Completas de S. Freud – vol. III – Rio – Imago - 1976
  9. Freud S. - Lembranças Encobridoras – Obras Completas de S. Freud – vol. III – Rio – Imago - 1976
  10. Roudinesco, E. e Plon, Michel - Dicionário de Psicanálise – Rio - Jorge Zahar Editor – 1998
  11. Klimovsky, G - Aspectos Epistemológicos da Interpretação psicanalítica - in Etchegoyen, R. Horácio - Fundamentos da Técnica Psicanalítica - Artes Médicas - Porto Alegre – 1987
  12. Perrés, José - La epistemologia del Psicoanalisis: Introducción a sus núcleos problemáticos y encrucijadas - José Perrés - in Acheronta – no. 7 – http://www.acheronta.org

Sergio Telles é psicanalista e escritor, membro do Depto. de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae – São Paulo

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