Volume 4 - 1999
Editor: Giovanni Torello


Setembro de 1999 - Vol.4 - Nš 9

O canto do galo

Rubem Alves

Meu pensamento é um devorador de imagens. Quando uma boa imagem me aparece eu rio de felicidade e o meu pensador se põe a brincar com ela como um menino brinca com uma bola. Se me disserem que esse hábito intelectual não é próprio de um filósofo, que filósofos devem se manter dentro dos limites de uma dieta austera de conceitos puros e sem temperos, invoco em minha defesa Albert Camus, que dizia que "só se pensa através de imagens."

Amo as imagens mas elas me amedrontam. Imagens são entidades incontroláveis que frequentemente produzem associações que o autor não autorizou. Os conceitos, ao contrário, são bem comportados, pássaros engaiolados. As imagens são pássaros em vôo... Dai o seu fascínio e o seu perigo.

Mas eu não consigo resistir à tentação. Assim, vai uma parábola que me apareceu, com todos os riscos que ela implica:

" Era uma vez um granjeiro que criava galinhas. Era um granjeiro incomum, intelectual e progressista. Estudou administração para que sua granja funcionasse cientificamente. Não satisfeito, fez um doutorado em criação de galinhas. No curso de administração aprendeu que, num negócio, o essencial é a produtividade. O improdutivo dá prejuizo; deve, portanto, ser eliminado.

Aplicado à criação de galinhas esse princípio se traduz assim: galinha que não bota ovo não vale a ração que come. Não pode ocupar espaço no galinheiro. Deve, portanto, ser transformada em cubinhos de caldo de galinha.

Com o propósito de garantir a qualidade total de sua granja o granjeiro estabeleceu um rigoroso sistema de controle da produtividade das suas galinhas. Produtividade de galinhas é um conceito matemático que se obtém dividindo-se o número de ovos botados pela unidade de tempo escolhida. Galinhas cujo índice de produtividade fossem iguais ou superiores a 250 ovos por ano podiam continuar a viver na granja como galinhas poedeiras. O granjeiro estabeleceu, inclusive, um sistema de "mérito galináceo": as galinhas que botavam mais ovos recebiam mais ração. As galinhas que botavam menos ovos recebiam menos ração. As galinhas cujo índice de produtividade fosse igual ou inferior a 249 ovos por ano não tinham mérito algum e eram transformadas em cubinhos de caldo de galinha.

Acontece que conviviam, com as galinhas poedeiras, galináceos peculiares que se caracterizavam por um hábito curioso. A intervalos regulares e sem razão aparente, eles esticavam os pescoços, abriam os bicos e emitiam um ruido estridente e, ato contínuo, subiam nas costas das galinhas, seguravam-nas pelas cristas com o bico, e obrigavam-nas a se agachar. Consultados os relatórios de produtividade, verificou o granjeiro que isso era tudo o que os galos - esse era o nome daquelas aves - faziam. Ovos, mesmo, nunca, jamais, em toda a história da granja, qualquer deles havia botado. Lembrou-se o granjeiro, então, das lições que aprendera na escola, e ordenou que todos os galos fossem transformados em cubos de caldo de galinha.

As galinhas continuaram a botar ovos como sempre haviam botado: os números escritos nos relatórios não deixavam margens a dúvidas. Mas uma coisa estranha começou a acontecer. Antes, os ovos eram colocados em chocadeiras e, ao final de vinte e um dias eles se quebravam e de dentro deles saiam pintinhos vivos. Agora, os ovos das mesmas galinhas, depois de vinte um dias, não quebravam. Ficavam lá, inertes. Deles não saiam pintinhos. E se ali continuassem por muito tempo, estouravam e de dentro deles o que saia era um cheiro de coisa podre. Coisa morta.

Aí o granjeiro científico aprendeu duas coisas:

Primeiro: o que importa não é a quantidade dos ovos; o que importa é o que vai dentro deles. A forma dos ovos é enganosa. Muitos ovos lisinhos por fora são podres por dentro.

Dois: há coisas de valor superior aos ovos, que não podem ser medidas por meio de números. Coisas sem as quais os ovos são coisas mortas."

Essa parábola é sobre a universidade. As galinhas poedeiras são os docentes. Corrijo-me: docente, não. Porque docente quer dizer "aquele que ensina". Mas o ensino é, precisamente, uma atividade que não pode ser traduzida em ovos; não pode ser expressa em termos numéricos. A designação correta é pesquisadores isto é, aqueles que produzem artigos e os publicam em revistas internacionais indexadas. Artigos, como os ovos, podem ser contados e computados nas colunas certas dos relatórios. As revistas internacionais indexadas são os ninhos acreditados. Não basta botar ovos. É preciso botá-los nos ninhos acreditados. São os ninhos internacionais, em língua estrangeira, que dão aos ovos a sua dignidade e valor. A comunidade dos produtores de artigos científicos não fala português. Fala inglês.

O resultado da pressão "publish or perish", bote ovos ou sua cabeça será cortada, a docência termina por perder o sentido. Quem, numa universidade, só ensina, não vale nada. Os alunos passam a ser trambolhos para os pesquisadores: estes, ao invés de se dedicarem à tarefa institucionalmente significativa de botar ovos, são obrigados pela presença de alunos a gastar o seu tempo numa tarefa irrelevante: ensino não pode ser quantificado ( quem disser que o ensino se mede pelo número de horas/aula é um idiota).

O que está em jogo é uma questão de valores, uma decisão sobre as prioridades que devem ordenar a vida universitária: se a primeira prioridade é desenvolver, nos jovens, a capacidade de pensar, ou se é produzir artigos para atender a exigência da comunidade científica internacional de "publish or perish".

Eu acho que o objetivo das escolas e universidades é contribuir para o bem estar do povo. Por isso, sua tarefa mais importante é desenvolver, nos cidadãos, a capacidade de pensar. Porque é com o pensamento que se faz um povo. Mas isso não pode ser quantificado como se quantificam ovos botados. Sugiro que as nossas universidades, ao avaliar a produtividade dos que trabalham nela, dêem mais atenção ao canto do galo...


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